As relações entre a Lava Jato, a Globo e a Mossack & Fonseca
O envolvimento da emissora com a lavanderia de dinheiro panamenha explicaria o recuo da força-tarefa em Curitiba?
Atropelada por outros fatos e providencialmente esquecida pela mídia, a 22ª fase da Lava Jato continua um mistério. Por que ela destoa tanto dos padrões de outras ações do juiz Sergio Moro e da força-tarefa?
E por que a missão organizada para ser a cereja do bolo após dois anos de intensas investigações tornou-se uma letra morta, um arquivo incômodo nos escaninhos da Justiça Federal em Curitiba?
A 22ª fase, batizada de Triplo X, referência pouco sutil ao apartamento triplex em um edifício na praia paulista do Guarujá atribuído ao ex-presidente Lula, ganhou as ruas em 27 de janeiro.
Não era, portanto, uma ação qualquer. Investia-se naquele momento contra o alvo mais cobiçado desde o início da Lava Jato. As coisas não saíram, porém, como planejado.
Um dos endereços visitados por agentes da Polícia Federal ficava no Conjunto Nacional, prédio de escritórios e lojas na Avenida Paulista, centro financeiro de São Paulo.
A busca e apreensão aconteceu mais precisamente na filial brasileira da Mossack & Fonseca, banca de advocacia panamenha internacionalmente conhecida por assessorar traficantes, ditadores, corruptos e sonegadores no ato de esconder dinheiro em paraísos fiscais.
Qual a relação da empresa com o apartamento no Guarujá? Uma offshore aberta pela Mossack & Fonseca, a Murray Holdings LCC, tinha em seu nome outro tríplex no mesmo prédio. Ao esbarrar na firma panamenha durante a fase preliminar da investigação, a força-tarefa acreditou ter encontrado o elo para provar que Lula havia cometido o crime de ocultação de patrimônio.
Em resumo: por meio de laranjas, a empreiteira OAS esconderia os verdadeiros proprietários dos imóveis no Edifício Solaris. Bingo? Longe disso. Logo no primeiro dia, a Triplo X identificou 40 indivíduos e empresas no Brasil que fizeram negócios com a Mossack & Fonseca. E aí começa o mistério.
Ao contrário de outras fases e do padrão de comportamento do juiz Moro, os representantes do escritório panamenho não amargaram longos períodos na cadeia nem tiveram os pedidos de prisões temporárias convertidos em detenções preventivas, cuja suspensão fica a critério da Justiça. Foram soltos em tempo recorde, menos de dez dias após a operação.Entre os libertados perfilava-se o principal representante da companhia no Brasil, Ricardo Honório Neto.
O executivo trabalha na Mossack & Fonseca há ao menos dez anos e é bem relacionado, com contatos na própria Polícia Federal. Em 2007, um e-mail interceptado prova que Honório Neto havia sido informado a respeito de uma operação da PF no escritório da empresa.
Na mensagem, ele avisa da ação e orienta subordinados a destruir e ocultar documentos antes da chegada dos federais. Esconder informações é, aliás, uma prática corriqueira e contínua na companhia. Escutas telefônicas recentemente autorizadas que embasaram a Triplo X flagraram Ademir Auada, um dos presos em 27 de janeiro e logo liberado, a confessar a destruição de papéis do escritório.
A eclosão do escândalo internacional que envolve diretamente a empresa panamenha, a partir do megavazamento de 11,5 milhões de documentos sobre as offshore pertencentes a políticos, ditadores, celebridades e afins, todas criadas com o intuito de no mínimo sonegar impostos, causou constrangimentos na força-tarefa da Lava Jato.
Os investigadores sabem que serão cobrados por causa do “desinteresse” em relação às atividades da Mossack & Fonseca. O juiz Moro não atendeu aos pedidos de explicação de CartaCapital. Teria sido apenas desatenção ou algum interesse específico explicaria o comportamento incomum da turma de Curitiba no episódio?
Raciocinemos: Moro já afirmou mais de uma vez que o apoio dos meios de comunicação é essencial na cruzada contra a corrupção. A parceria mídia-Justiça, entende o magistrado, serve para impedir o sistema político de barrar as investigações. Mas e se um dos aliados na imprensa cair por acaso na rede de apuração? O que fazer?
Não se sabe. Fato é que entre os documentos apreendidos durante a Triplo X aparecem os registros de offshore ligadas a Alexandre Chiapetta de Azevedo. O empresário foi casado até recentemente com Paula Marinho Azevedo, filha de João Roberto Marinho, um dos herdeiros da Globo, que apoia de forma acrítica a Lava Jato e até concedeu um prêmio ao juiz Moro. Na lista encontrada na sede da Mossack & Fonseca desponta a Vaincre LLC.
A offshore integra uma complexa estrutura patrimonial: é sócia da Agropecuária Veine Patrimonial, que por sua vez é dona de uma imponente e moderna casa em uma praia exclusiva de Paraty, litoral do Rio de Janeiro, que pertenceria à família Marinho.
A propriedade é alvo de uma ação do Ministério Púbico Federal por crime ambiental. Os Marinho, assim como o ex-presidente Lula no caso do triplex no Guarujá, negam ser os donos do imóvel.
Diferentemente do que acontece no caso de Lula, as relações dos herdeiros da Globo com a casa em Paraty se avolumam. Na mesma lista apreendida no escritório da Mossack & Fonseca, ao lado do registro a respeito da Vaincre LLC aparece o nome de outra empresa, a Glem Participações, que detém um contrato com o governo estadual do Rio de Janeiro para a exploração do parque de remo da Lagoa Rodrigo de Freitas.
Segundo o blog Viomundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, a Glem pertence a Azevedo, ex-marido de Paula Marinho. A neta de Roberto Marinho aparece ainda como fiadora do contrato entre o governo fluminense e a Glem.
Outro documento revela que a Agropecuária Veine é dona de uma cota de um helicóptero do modelo Augusta A-109, matrícula PT-SDA, utilizado pela família Marinho. O endereço para entrega de correspondências no contrato de importação do helicóptero é o mesmo da empresa de Azevedo.
Só para esclarecer: a empresa dona do triplex em Paraty recebe suas correspondências no escritório do ex-marido de uma das herdeiras da Rede Globo.
As Organizações Globo enviaram nota a CartaCapital explicando a situação das offshore, do helicóptero e do triplex em Paraty. Diz a nota que ninguém da família é proprietário da empresa que administra o sítio. Diz também que Paula Marinho não é dona da offshore Vaincre, mas pela primeira vez confirma que a empresa é de propriedade do ex-marido.
Ou seja, o triplex serviu, sim, à família, uma vez que a offshore é uma das sócias da propriedade em Paraty. A emissora afirma também que Paula não tem ligação nenhuma com a Glem Participações e diz que o helicóptero pertenceu ao ex-genro, tendo sido fiadora da aeronave a pedido de Alexandre.
O ex-genro global foi procurado pela revista, mas não se manifestou sobre o assunto.
A história da casa em Paraty não é a única relação dos Marinho com a Mossack & Fonseca e os Panama Papers.
Segundo o jornal holandês deVerdieping Trouw, com base em documentos vazados, a emissora brasileira teria usado empresas de fachada para pagar intermediários na compra de direitos de transmissão da Copa Libertadores da América.
O diário argentino La Nación trouxe outras revelações: “Por razões fiscais, em 2012, a T&T transferiu os seus direitos à empresa Torneios&Traffic Sports Marketing BV, com sede nos Países Baixos. Por trás dessa offshore holandesa, a Mossack & Fonseca criou a Medak Holding Ltd., registrada em Chipre, que, por sua vez, era controlada pela uruguaia Henlets Grupo”.
A reportagem prossegue: “A empresa holandesa, com licença de televisão concedida pela T&T, intermediava a venda dos direitos. A offshore negociou aportes milionários com a TV Globo do Brasil, que eram depositados no ING Bank, em Amsterdã. A empresa holandesa e a TV Globo tiveram contratos negociados de 2004 a 2019, a uma quantia estimada de 10 milhões de dólares”.
Não à toa, a Globo registrou timidamente o escândalo internacional que monopolizou a atenção da mídia estrangeira nos últimos dias. Na segunda-feira 4, por exemplo, o Jornal Nacional tratou do assunto em meros 40 segundos.
Sem imagens, o texto basicamente informava que a Procuradoria-Geral da República investigaria os donos brasileiros de offshore abertas pela Mossack & Fonseca. E ponto.
Há outros ilustres nativos, vários envolvidos em crimes de corrupção, no rol de clientes do escritório panamenho. Robson Marinho, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo e acusado de receber propina durante sua passagem pelo governo do tucano Mário Covas, é dono da Higgins Finance.
Segundo o Ministério Público, Marinho embolsou 2,7 milhões de dólares em troca de contratos fraudulentos assinados com a multinacional francesa Alstom. A propina teria ainda abastecido o caixa 2 de campanhas eleitorais do PSDB paulista.
Além dos Marinho globais e do Marinho tucano, os proprietários de offshore até agora flagrados na enorme pilha de documentos incluem políticos brasileiros de sete partidos: PSDB, PDT, PMDB, PP, PSB, PSD e PTB.
Constam da lista, entre outros, o indefectível Eduardo Cunha, presidente da Câmara, o ex-governador de Minas Gerais Newton Cardoso, o ex-ministro Edison Lobão, o falecido tucano Sérgio Guerra, acusado por um dos delatores da Lava Jato de ter recebido 10 milhões de reais para abafar uma CPI, e o ex-deputado federal João Lyra.
Fora do Brasil, a “lista negra”, conforme definição de parte da mídia estrangeira, também inclui nomes para todos os gostos, de amigos do presidente russo Vladimir Putin ao cunhado do presidente chinês Xi Jinping.
O primeiro-ministro islandês, Sigmundur Gunnlaugsson, viu-se obrigado a renunciar após a descoberta de que mantinha uma offshore em sociedade com a mulher.
Depois de uma entrevista desastrada a um canal de tevê, na qual emudeceu diante das perguntas dos repórteres e encerrou a conversa sem maiores explicações, Gunnlaugsson foi pressionado pelo partido e por protestos de eleitores.
Na América Latina, o nome de maior destaque é o do presidente da Argentina, Mauricio Macri. Dono de duas offshore abertas nos anos 1980, Macri afirma que as operações foram legais e tratavam de uma sociedade com o pai.
Embora os 11,5 milhões de documentos vazados possibilitem a todos entender melhor como funciona o esquema de lavagem de dinheiro no mundo, a atuação da Mossack & Fonseca não é propriamente uma novidade.
O escritório, fundado em 1977 pelo alemão Jurgen Mossack e o panamenho Ramón Fonseca, à época vice-presidente do país, estendeu seus serviços por mais de 40 países.
Em 2014, o jornalista norte-americano Ken Silverstein reconstruiu a história da Mossack & Fonseca e suas relações com ditadores, traficantes e criminosos diversos.
Rami Makhlouf, o homem mais rico da Síria, descreve Silverstein, valeu-se da empresa panamenha para esconder dinheiro sujo do ditador Bashar al-Assad. Muammar Kaddafi, que dominava a Líbia com mão de ferro, e Robert Mugabe, do Zimbábue, também foram clientes.
Os Panama Papers, pelo que se viu até o momento, tendem a se tornar um escândalo de maior proporção do que o vazamento das contas da filial suíça do banco britânico HSBC. Mas, no Brasil atual, como diria o juiz Moro, “não vem ao caso”.
A rede criminosa da Mossack é grande e em outros momentos, curiosamente, chegou a ser alvo de interesse da Lava Jato. Foi quando identificou que a lavanderia panamenha foi responsável pela abertura das offshore em nome do ex-diretor da Petrobras Renato Duque e o lobista Mário Góes.
Todos foram presos e cumprem ou cumpriram longas prisões preventivas até delatar tudo o que sabiam ou até desconheciam.
Caberá ao Conselho Nacional de Justiça, ao Conselho Nacional do Ministério Público e ao Supremo Tribunal Federal, se provocados, se manifestarem sobre tais “peculiaridades” judiciais de Curitiba.
Outro lado: a resposta do Grupo Globo
1- Existe alguma relação entre os proprietários do Grupo Globo e a empresa Agropecuaria Veine Patrimonial?
R: Não. Os proprietários do Grupo Globo não são donos dessa empresa.
2 – Existe alguma relação entre a offshore Vaincre LCC e Paula Marinho Azevedo?
R: Paula Marinho não é proprietária dessa empresa, direta ou indiretamente. O responsável por essa empresa é o ex-marido de Paula Marinho.
3 – Existe alguma relação entre a Glem Participações e Paula Marinho Azevedo?
R: Paula Marinho não é e nunca foi proprietária dessa empresa. A empresa é de propriedade da família do ex-marido de Paula Marinho.
4 – Um contrato do helicóptero Agusta A-109, matrícula PT-DAS, tem como endereço de correspondência a Glem Participações. Paula foi fiadora do termo entre o Estado do Rio e a Glem Participações para a concessão do estádio de remo na Lagoa Rodrigues de Freitas. Qual a relação dela com o helicóptero e com a empresa?
R: O helicóptero que teve as documentações expostas não pertence e nem é utilizado pela família ou pelo Grupo Globo. Quanto à fiança, se operou na época em que esteve casada, a pedido do então marido.
5 – Um heliponto em Paraty foi registrado em nome da Agricultura Veine com o direito de uso de tal aeronave acima mencionada. O ex-marido dela fez ou faz uso da aeronave? Qual a relação de Paula com este heliponto?
R: O Grupo Globo não tem relações com essa empresa nem com o heliponto. O possuidor da aeronave é o ex-marido de Paula.
6 – Tal heliponto fica em uma praia e presta serviço a uma residência a beira mar. Qual a relação da propriedade com a empresária?
R: O Grupo Globo informa que a citada casa não pertence e nunca pertenceu a qualquer membro da família Marinho.
7 -Segundo o jornal holandês deVerdieping Trouw, documentos revelam que a emissora teria usado empresas de fechada para pagar intermediários em direitos de transmissão da Libertadores da América. Qual o posicionamento da empresa?
R: A Globo adquiriu os direitos de transmissão da Copa Libertadores da América da empresa detentora e autorizada a cedê-los. Toda a movimentação financeira foi registrada e realizada via Banco Central e todos os impostos recolhidos conforme a regulação vigente.
PS do Viomundo: Auada, o destruidor de documentos, não é funcionário, mas intermediário da Mossack. O juiz Moro livrou-se da batata quente. Remeteu a apreensão da Mossack ao STF para providências.
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