247 – Diante da admissão de manobra do julgamento da AP 470 pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, e do incentivo da mídia pela agitação política no Brasil, jornalista Luís Nassif diz que estamos diante de um cenário semelhante ao de 1964, ano do golpe militar. Leia:
Luis Nassif
Santos Vahlis, hoje em dia, é mais conhecido pelos edifícios que deixou no Rio de Janeiro e pelas festas que proporcionou nos anos 50. Foi um dos grandes construtores do bairro de Copacabana.
Venezuelano, mudou-se para o Brasil, trabalhou com a importação de gasolina e tentou se engatar nas concessões de refinarias no governo Dutra. Foi derrotado pela maior influência dos grupos cariocas já estabelecidos.
Nos anos seguintes, foi um dos financiadores da campanha do general Estillac Leal para a presidência do Clube Militar, em torno da bandeira do monopólio estatal. Torna-se amigo de Leonel Brizola, defensor de Jango.
Provavelmente graças ao fato de ser bom cliente dos jornais, com seus anúncios imobiliários, tinha uma coluna no Correio da Manhã, cujo ghost writer era o grande Franklin de Oliveira.
Tentou adquirir o jornal “A Noite” para fortalecer a imprensa pró-Jango. Foi atropelado pelo pessoal do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) que, em vez de comprar o jornal, comprou sua opinião por Cr$ 5 milhões. A CPI que investigou a transação teve como integrante o deputado Ruben Paiva.
Por sua atuação, Vahlis sofreu ataques de toda ordem. Contra ele, levantaram a história de que teria feito uma naturalização ilegal. Em 1961 foi preso e jogado nu em uma cela de cadeia, em pleno inverno, a ponto do detetive que o prendeu temer por sua vida.
Como era possível a perseguição implacável dos IPMs (Inquéritos Policial Militares), de delegados e dos Ministérios Públicos estaduais, contra aliados do próprio governo?
Esse mesmo fenômeno observou-se nos últimos anos, com os abusos cometidos no julgamento da AP 470, envolvendo não um ou dois Ministros do STF (Supremo Tribunal Federal), mas cinco, seis deles, endossando arbitrariedades que escandalizaram juristas conservadores.
Características da democracia
Para tentar entender o fenômeno, andei trabalhando em um estudo que pretendo apresentar no evento “50 anos da ditadura”, que ocorrerá a partir da semana que vem no Recife.
Aqui, um pequeno quadro esquemático que explica porque 2014 é tão semelhante a 1964 – embora torçamos por um desfecho diferente.
1. A democracia é um processo permanente de inclusões sucessivas. Também é o regime de maior instabilidade (e medo) das pessoas. Nos regimes autoritários, na monarquia, nos sistemas de castas, não há ascensão vertical das pessoas – nem sua queda. Na democracia de mercado há a instabilidade permanente, mesmo para os bem situados. Teme-se o dia seguinte, a perda do emprego, das posses, do status.
2. Além disso, há repartição entre os poderes que abre espaço para a montagem de alianças e acordos econômicos, nos quais os grandes grupos econômicos se aliam aos grupos de mídia, através deles aos diversos poderes de Estado.
3. Cada época de inclusão gera novas classes de incluídos que cumprem seu papel de entrar no mercado de trabalho, ganhar capacidade de consumo e, no momento seguinte, cidadania e capacidade de organização. Gera resistências tanto na classe média (medo da perda de status) quanto nos de cima (perda de influência).
Aí, cria-se uma divisão no mercado de opinião que será explorado a seguir.
O mercado de opinião
Simplificadamente, dividi o mercado de opinião em dois grupos.
O primeiro é o mercado liderado pelos Grupos de Mídia. Por definição, é um mercado que influencia preponderantemente os setores já estabelecidos que já passaram pela fase da inclusão, do emprego, da carreira, integrando-se aos estabelecidos da fase anterior.
Por suas características, os grupos mais resistentes ao novo são os estamentos militar, jurídico e a alta e média classes médias – especialmente os estamentos que trabalham em grandes companhias hierarquizadas.
A razão é simples. Vivem em estruturas burocráticas, hierarquizadas, nas quais cumprem uma carreira, sujeitando-se a promoções ao longo de sua vida útil. Por isso mesmo, a renovação se dá de forma muito lenta, proporcional à lentidão com que mudam os lugares nessas corporações.
Por todas essas características – da insegurança, da carreira construída passo a passo – esses grupos são extremamente influenciados por movimentos de manada. Por segurança, querem pensar do mesmo modo que a maioria, ou que o status quo do seu grupo (ou de suas chefias).
Esse grupo pode ser denominado conceitualmente de opinião pública midiática. Ele detém o poder, a capacidade de influenciar leis, julgamentos, posições.
É o grupo que detém poder. Mas não detém voto. Mesmo porque, quem têm votos é a maioria; quem recebe votos são os políticos.
O segundo grupo é o dos novos incluídos econômicos e dos incluídos políticos mas que não tem posição de hegemonia. Entram aí sindicatos, organizações sociais, o povão pré-organização etc, enfim, a maioria da população – especialmente em países com tão grandes diferenças de renda.
Os canais de informação desse público são os sindicatos, organizações sociais e os partidos políticos.
É um público que detém os votos, mas não detém poder.
O conflito entre poder e voto
Em cada período de inclusão, o partido que entende as necessidades dos incluídos ganha as eleições. Foi assim nos EUA com o Partido Republicano no século 19, com o Partido Democrata no século 20.
Processos de inclusão diminuem as diferenças de renda, ampliam a classe média e, quando o país se civiliza, garantem a estabilidade política – porque a maioria se torna classe média.
Em países socialmente atrasados – como o Brasil – qualquer gesto em direção à inclusão sofre enormes resistências dos setores tradicionais.
Não se trata de viés político, ideológico (no sentido mais amplo), mas de atraso mesmo, um atraso entranhado, anti-civilizatório, que atinge não apenas os hommers simpsons, mas acadêmicos conservadores, magistrados, empresários sem visão. E, especialmente, os grupos de mídia. Os de baixo temem perder status; os de cima, temem perder poder.
O partido que entende os novos movimentos colhe leitor de baciada.
O único fator capaz de derrubá-lo são as crises econômicas (o fenômeno do populismo é o de procurar satisfazer de qualquer maneira as massas descuidando-se da economia) ou o golpe.
A reação através do golpe
Sem perspectivas eleitorais, os segmentos incluídos na chamada opinião pública midiática recorrem ao golpismo puro e simples.
Consiste em fomentar diuturnamente o discurso do ódio e levar a vendetta para o campo jurídico-policial. É o que levou à prisão de Santos Vahlis e aos abusos da AP 470.
O movimento foi bem sucedido em 1964 e consistia no seguinte:
1. Para mobilizar a classe média, a mídia levanta fantasmas capazes de despertar medos ancestrais: o fantasma do comunismo, que destroi famílias e propriedades, do golpe que estaria sendo preparado pelo governo, da corrupção que se alastra etc.
2. A campanha midiática cria o clima de ódio que se torna cada vez mais vociferante quanto menores são as chances eleitorais de mudar o governo.
3. Com a influência sobre o Judiciário e o Ministério Público, além de denúncias concretas, qualquer fato vira denúncia grave e, na ponta, haverá um inquérito para criminaliza-lo.
4. Aí se entra no ponto central: as agressões, os atentados ao direito, as manipulações provocam reações entre aliados do governo. Qualquer reação, por mais insignificante, serve para alimentar a versão de que o governo planeja um golpe. O ponto central do golpe consiste em fomentar reações que materializem as suspeitas de que é o governo que planeja o golpe.
Confiram esse vídeo aqui do Arnaldo Jabor, sobre uma proposta de um deputado obscuro do PT. O próprio Jabor considera-o obscuro. Mas repare nas conclusões que tira. Ele foi buscá-las em uma nave do tempo diretamente de 1964
O grande problema de Jango foram os aliados iludidos pela revolução cubana e pela própria campanha da mídia – que superestimava, intencionalmente, os poderes da liga camponesas e quetais.
O histórico trabalho de Wanderley Guilherme dos Santos, em 1962, expos de forma magistral e trágica como se dava essa manipulação das reações.
Esse mesmo clima em relação às ligas camponesas, a mídia tentou recriar com as fantasias sobre a influências das Farcs no Brasil, sobre os dólares cubanos transportados em garrafas de rum e um sem-número de artigos de colunistas denunciando o suposto autoritarismo de Lula.
Lula e Dilma fugiram à armadilha, recorrendo ao que chamei, na época, de republicanismo ingênuo, às vezes até com um cuidado excessivo.
Não tomaram nenhuma atitude contra a mídia; não pressionaram o STF; têm sido cautelosos de maneira até exagerada; não permitiram que o PT saísse às ruas em protesto contra os abusos da AP 470.
Apesar de entender esse caminho, Jango não conseguiu segurar os seus. Houve radicalização intensa, conduzida por Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, pelo PCB de Luiz Carlos Prestes e por lideranças sindicais, que acabaram proporcionando o álibi de que os golpistas precisavam.
No entanto, há um ponto em comum nos dois períodos: o ódio que a campanha midiática provocou em diversos setores de classe média crescerá em razão inversamente proporcional ao crescimento eleitoral da oposição. E o mote central será essa a Copa do Mundo e o mote de que o governo gastou em estádios o dinheiro da saúde.
Há uma guerra de comunicação central.
FOLHA INCENTIVA
AGiTAÇÃO POLÍTICA
CONTRA DILMA
Editorial do jornal de Otavio Frias diz que protestos são a luz no fim do túnel para os que disputarão a Presidência com a presidente Dilma Rousseff; apresentadora do SBT Rachel Sheherazade também convocou seus seguidores a participar da "Marcha da Família", que resgata golpe militar pela "luta contra a tirania do PT"; para Eduardo Guimarães, do Blog da Cidadania, "coalização bizarra que reúne mídia, extremistas de esquerda e de direita não se dá conta de que se desmoralizou com a violência nos protestos"
Se fosse necessária mais alguma prova de que no ano em que o golpe militar de 1964 completa 50 anos a situação política no Brasil se parece como nunca com a daquele período trágico de nossa história, a convocação de uma segunda edição da infame Marcha da Família com Deus pela Liberdade no mesmo mês em que aquele golpe aniversaria elimina qualquer dúvida.
Como há meio século, a imprensa brada contra a “incompetência do governo” na gestão da economia e “contra a corrupção”, porta-vozes da extrema direita reclamam (abertamente) uma “intervenção militar já”, as ruas são transformadas em praças de guerra com incêndios e depredações na via pública enquanto manifestantes portam cartazes e repetem frases insultantes a quem governa o país…
O que tudo isso faz lembrar a você que viveu os anos de chumbo?
Este ano, em pleno processo eleitoral, o povo brasileiro estará sob intensa pressão, como há 50 anos. Um grupo diminuto de extremistas políticos reuniu-se em alguma salinha e decretou que, a despeito de todos os investimentos em um evento de extrema visibilidade internacional, irá impedir, através da violência, a realização desse evento.
Manifestantes prometem atacar delegações de atletas estrangeiros com coquetéis molotov, prometem sabotar estádios de futebol para deixá-los sem luz durante os jogos da Copa e garantem que irão impedir as pessoas de se locomoverem pelas cidades-sede da competição…
O vexame internacional está sendo buscado com sofreguidão. Desmoralizar o Brasil tornou-se objeto de desejo de partidos políticos ditos “de esquerda” que, através do voto popular, não conseguem obter mandatos para implementarem seu ideário. Dizem, claramente, que querem mostrar ao mundo que não é seguro vir a este país.
Não obstante a ideologia “de esquerda” alardeada por esses partidos que estão convulsionando o país com seu repúdio tardio à Copa – esperaram as obras para o evento estarem quase todas prontas para começarem a protestar –, agora o movimento deles acaba de receber um reforço de peso.
Apresentadora de telejornal da emissora que Silvio Santos ganhou da ditadura militar vem entoando o mesmo discurso dos “esquerdistas” que acusam o governo Dilma Rousseff de ser responsável pela histórica situação de penúria dos serviços públicos no país.
Agora, a apresentadora Rachel Sheherazade se junta a esses “esquerdistas” no repúdio à Copa e convoca seus seguidores a participar de uma “marcha” que também promete protestar contra o evento no mesmo mês em que o golpe de 1964 completa 50 anos.
A página dessa “marcha” infame no Facebook diz, claramente, que o protesto, entre outras coisas, é contra “contratação de médicos cubanos e os gastos para a realização de grandes eventos esportivos no Brasil”. E qualifica essa “luta” como sendo “contra a tirania do PT”.
É nesse contexto que, no segundo dia útil desta semana, o jornal Folha de São Paulo publica editorial em que lamenta a perenidade da aprovação e das altas intenções de voto de que desfruta a presidente Dilma Rousseff, mas lembra que há uma luz no fim do túnel para os que disputarão com ela a Presidência da República. Leia, abaixo, o último parágrafo do editorial.
“Incapazes de entusiasmar o país com um projeto de mudança, os adversários de Dilma terão de confiar nos embates de campanha e na propaganda eleitoral para conquistar terreno. Sua maior esperança, porém, reside no clima de instabilidade política que se vê em todo o país –algo que nenhum candidato controla, mas que afeta sobretudo aqueles que estão no poder”
A Folha tem certa razão. A “instabilidade política” de 2013, gerada pelo que chamam de “jornadas de junho”, prejudicou a todos os que governam, mas foi Dilma quem mais perdeu. O jornal conta com a repetição do fenômeno.
Qualquer um que se der ao trabalho de ler o que dizem no Facebook os que querem impedir a Copa de 2014 na marra, ou seja, sob o bordão “não vai ter Copa”, sabe que prometem “derrubar Dilma” e até “não reconhecer” o resultado da eleição caso ela se reeleja. É por isso que Sheherazade e a “Marcha da Família” aderiram ao “não vai ter Copa”.
Entretanto, a Folha e o resto da grande mídia oposicionista, os partidos de oposição à esquerda (?) e os extremistas de direita que pedem golpe militar erram ao confiar em que, neste ano, a “instabilidade política” vá operar o mesmo que operou ano passado.
Essa coalização bizarra que reúne mídia, extremistas de esquerda e de direita não se dá conta de que se desmoralizou com a violência nos protestos. Recente pesquisa Datafolha mostra que esse movimento é cada vez mais repudiado. Mas, claro, não se sabe que nível de “instabilidade política” essa coalização entre os extremos do espectro político pode pretender.
Com efeito, se ameaças como a de atentar contra a vida de delegações estrangeiras forem levadas a cabo, se a violência dos que protestam contra a Copa causar mais vítimas fatais, se conseguirem desmoralizar o Brasil internacionalmente, não há dúvida de que tudo pode acontecer. Isso em um momento em que os brasileiros desfrutam de emprego farto, salários altos como nunca e forte queda da pobreza e da desigualdade.
Do ponto de vista político, portanto, o Brasil mudou muito pouco em meio século, não?