Na condição de ex-professor de jornalismo, mais especificamente da disciplina de Planejamento Editorial, tive a paciência de ler por diversas vezes o artigo do diretor de redação da revista VEJA, Eurípedes Alcântara, intitulado “Ética jornalistica: uma reflexão permanente”, onde procura justificar a relação do veículo com Carlinhos Cachoeira. Poderiamos escrever uma tese para demonstrar que longe de nos oferecer ensinamentos de jornalismo e ética, o referido diretor nos agracia com uma verdadeira aula de hipocrisia. Nos basta, porém, analisar exclusivamente o argumento principal de Alcântara para confirmamos esta hipótese.
Para justificar a relação do veículo com o referido personagem, o senhor Eurípedes usa como alicerce para o seu texto a afirmação de que “o ensinamento para o bom jornalismo é claro: maus cidadãos podem, em muitos casos, ser portadores de boas informações”. Para sustentar a sua tese, o mesmo faz uma analogia de tal situação com a de um conhecido intrumento judicial, afirmando que “um assassino que revela na cadeia um plano para assassinar o presidente da República é possuidor de uma informação de interesse público – e pelo mecanismo da delação premiada ele pode ter sua pena atenuada ao dar uma informação que impeça um crime ainda pior do que o cometido por ele. Portanto, temos aqui uma situação em que a informação é de qualidade e o informante não, por ser um assassino”. Desta forma, o diretor da Veja procura nos convencer de que o relacionamento do veículo com Cachoeira foi ético e que a revista visava exclusivamente o interesse público.
De imediato, não podemos prosseguir sem deixar claro que a concessão do benefício da delação premiada compete exclusivamente ao poder judiciário, e não a quaquer policial e muito menos a um jornalista ou veículo de imprensa. Faz-se necessário esclarecermos também que tal benefício só pode ser concedido a indivíduo que não só se dispõe a delatar, mas que também demonstre arrempendimento de seus crimes e que ofereça garantias de abandono da atividade criminosa. A mesma é firmada por escrito e na forma de contrato.
Fica claro, portanto, para qualquer pessoa com um mínimo de inteligência, que a analogia proposta por Eurípedes Alcântara é absolutamente descabida. Mas uma vez que a mesma foi feita, podemos utilizá-la para aprofundar a demonstração de o quanto é hipócrita a argumentação do referido diretor.
Suponhamos que um determinado criminoso procure um juiz ou promotor e se disponha a delatar um rival, oferendo provas da atividade criminosa. A condição da delação proposta é a de que, caso venha a ocupar a atividade criminosa deste rival, não será denunciado ou perseguido por este juiz ou promotor. Convenhamos, não é preciso ser jurista para afirmar categoricamente que tal juiz ou promotor que aceite referida proposta estará se associando ao crime, tornando-se criminoso tanto quanto o delator ou delatado. Não há a menor margem para que os mesmos afirmem que agiram na defesa do interesse público aceitando tal pacto.
Sobre a figura de Carlinhos Cachoeira, a quem a grande imprensa rotula de “contraventor”, há muito é de conhecimento público que suas atividades vão da operação de jogos de azar (contravenção propriamente dita) ao aliciamento de agentes públicos para fraudes licitatórias (crime), passando por todos os tipos de atividades ilegais entre estes dois extremos. Em resumo, fosse “The Godfather” uma obra brasileira e recente, não seria exagero afirmar que Mario Puzo se inspirou no Cachoeira para criar os personagens Vito e Michael Corleone.
Desde a reportagem em 2005, que desencadeou a crise do mensalão, é de conhecimento público que o flagra no Maurício Marinho foi armado e fornecido à Veja por funcionários de Cachoeira e que o objetivo dos mesmos foi o de retomar o espaço que haviam perdido nos correios para fraudes e outros crimes. Também fica claro hoje, a partir do vazamento dos telefonemas entre Cachoeira e jornalistas da revista, que praticamente todas as reportagens publicadas pela Veja envolvendo corrupção no governo federal tiveram por fonte o “contraventor”. Mais, que todas as informações fornecidas pelo “contraventor” ao semanário tinham por objetivo remover obstáculos ou rivais de posições públicas para ocupar espaços para suas atividades criminosas. As gravações mostram que Cachoeira inclusive influenciava a revista sobre a melhor ocasião e forma de publicar as suas denúncias.
Alguém deve estar se perguntando se os editores da revista são tão ingênuos, ou até mesmo imbecis, a ponto de não perceberem que foram instrumento da atividade criminosa do senhor Carlinhos Cachoeira nestes últimos sete ou oito anos. Obviamente que não. Tinham plena e total consciência de que estavam se associando a atividade criminosa.
Estaria eu afirmando que a revista Veja operava também com ações de fraudes em parceria com o Cachoeira?
Não, pois não acredito nesta hipótese.
Como é possível então explicar esta associação ao crime por parte da revista?
Carlinhos Cachoeira não tem cor política, partidária ou ideológia. Entre outras atividades criminosas, atua em todos os níveis dos poderes públicos, independente de que quem esteja no poder seja vermelho, amarelo, laranja, verde, roxo ou preto. Quando queria detonar algum esquema rival que atuava em um governo de uma cor, usava um determinado meio, quando queria detonar um rival que atuava em um governo de outra cor, usava a revista Veja.
Para a Veja, pouco importava se o esquema de Carlinhos Cachoeira iria roubar mais, menos ou igual àqueles a quem a revista estava detonando no interesse do “contraventor”. O que interessava é que sua associação ao criminoso lhe fornecia artilharia contra os inimigos de seus aliados políticos. Em síntese, esta é a lógica da associação promiscua e criminosa entre as partes.
Assim, seria mais produtivo ao senhor Eurípedes Alcântara, ao invés de tentar nos dar uma aula de boas práticas jornalísticas para justificar a relação da Veja com Cachoeira, simplesmente afirmar que a ética da revista é a mesma de Franklin Roosevelt. Certa feita um assessor do ex-presidente norte-americano o questionou sobre sua aliança com o saguinário ditador nicaraguense Anastácio Somoza, afirmando que o mesmo não passava de um “son of a bitch”. Roosevelt respondeu de bate-pronto que “he´s a son of a bitch, but he's our son of a bitch”.
No mínimo seria menos hipócrita.
Jorge Gregory, jornalista, consultor em gestão de educação superior, foi professor de jornalismo.
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