Hoje, se completam 20 anos do dia em que Cid Moreira, com seu ar
afetado e seus cabelos brancos (nem os muito velhos se lembram dele de
cabelos pretos…), começou a ler o histórico direito de resposta de
Leonel Brizola no Jornal Nacional.
Foi a penúltima vitória do guri que saiu de Carazinho para enfrentar
o mundo, um quixote gaúcho, do tempo em que os gaúchos eram quixotes e
provocavam os versos geniais do pernambucano Ascenso Ferreira:
Riscando os cavalos!/Tinindo as esporas!/Través das cochilhas!/Sai de meus pagos em louca arrancada!/— Para que?/— Pra nada!
Durante 22, 23 anos, convivi com ele, 19 dos quais diariamente.
Praticamente formei, com ele, a minha vida adulta, pois era um garoto
de 22 anos quando esse contato começou, numa reunião num apartamento na
Rua Cabuçu, no Lins de Vasconcellos, subúrbio da Zona Norte carioca.
Deste convívio, de muita coisa mantenho reserva. Sei que estava ao
lado de um mito – e via o mito nos raros instantes em que ele conseguia
se despir do personagem que poucos minutos lhe deixava viver de outra
maneira.
Mas chega a hora em que estes detalhes, que antes serviriam para a
intriga e o desmerecimento político, só fazem enriquecer a trajetória de
quem era, como ele próprio dizia, “o rei do improviso”.
Porque era assim: se tinha visão estratégica, Brizola não era um calculista, muito menos frio.
As coisas iam acontecendo e ele, certo ou errado, farejava os caminhos, alguns exatos, outros não, mas todos coerentes.
O impacto daquele texto – minto, não do texto, mas de Brizola obrigar
a Globo a ler uma mensagem sua – também não teve nada de planejado, mas
resultou do inconformismo que ele, com seu exemplo, injetou em alguns
de seus companheiros.
Um pouco antes de sua segunda eleição, Brizola passou a ser atacado, sistematicamente, com artigos em
O Globo,
escritos – ou apenas assinados – por um certo Alcides Fonseca, um
ex-deputado estadual eleito do nada pelo PDT e que se bandeou para a
oposição a Brizola e, daí, para a poeira da história.
Por orientação do querido amigo Nilo Batista, Brizola passou a pedir, um por um, direito de resposta em
O Globo.
E, ao pedir, tinha-se já de oferecer o texto, e a tarefa me cabia,
porque os anos e anos escrevendo com ele os “tijolaços” me fizeram
absorver um pouco do estilo e da alma inconfundíveis.
Dr. Nilo começou a vencer as causas, alguns artigos foram publicados e
o “Fonsequinha” , como era chamado, foi despachado do jornal.
Já no Governo, em 1992, Brizola dá uma entrevista, dizendo que por
toda a sabotagem que a Globo fizera à Passarela do Samba, o prefeito da
cidade, Marcello Alencar deveria negar à emissora a exclusividade da
transmissão do Carnaval.
Foi o que bastou para que o jornal
O Globo publicasse um
editorial violentíssimo contra Brizola – o título era ”Para Entender a
Fúria de Brizola”, acusando-o de senilidade, “declínio da saúde
mental”, e por suas relações, sempre institucionais, com o Presidente da
República, Fernando Collor.
À noite, o
Jornal Nacional reproduziu, na voz de Moreira, o texto insultuoso.
Naquela noite, Brizola conversou com dois advogados: Arthur Lavigne e
Carlos Roberto Siqueira Castro, seu chefe da Casa Civil no governo
estadual.
No dia seguinte, Siqueira me chamou e disse que Brizola tinha me
encarregado de fazer o texto de resposta, que teria de ser apresentado
ainda naquela tarde. Falei com ele, que se mostrou completamente cético
em relação ao resultado do pedido judicial e, como fazia quando se
sentia assim, despachava o auxiliar:
“olha, Brito, você fala com o Dr. Siqueira e façam como acharem melhor.”
Lá fui eu fazer o texto: tinha que ter três minutos, não podia ter
“compensação de injúria” – isto é, devolver na mesma moeda os
impropérios – e tinha de sair rápido, porque era uma sexta-feira (7 de
fevereiro) e havia prazo judicial.
Chamei dois companheiros de velha cepa, que me auxiliavam na
Assessoria de Comunicação do Governo, o Luiz Augusto Erthal e o Ápio
Gomes, para cumprirem um dupla função: anotar o que eu ditava e
“segurar” a minha “viagem”.
Porque – começo aqui as difíceis confissões, que não são um segredo
porque uma boa meia-dúzia de companheiros sabem disso – quando eu tinha
de escrever pelo Brizola, eu não escrevia, “incorporava” . Parece coisa
de doido? Não, e ele próprio sempre dizia: o bem escrito é o bem falado.
E, na hora destes textos carregados, era assim que eu fazia, ditando,
falando no ritmo dele, com o milhar de vírgulas e os períodos longos com
que se expressava.
Era um exercício extenuante, massacrante, do qual não raro eu saía às lágrimas, mal conseguindo falar, de tão embargada a voz.
Qualquer redator publicitário jogaria fora o que saía disto, e com razão.
Porque não era um texto jornalístico ou publicitário.
Era o Brizola, não eu.
Feito o primeiro texto, mandamos ao Dr. Siqueira que fez algumas correções de bom-senso e um veto.
Eu não podia devolver o “senil” com que Marinho brindara Brizola. Mas isso eu tinha de devolver, ah, tinha.
E aí saiu uma obra de engenharia redacional.
“Quinta-feira, neste mesmo Jornal Nacional, a pretexto de citar
editorial de ‘O Globo’, fui acusado na minha honra e, pior, apontado
como alguém de mente senil. Ora, tenho 70 anos, 16 a menos que o meu
difamador Roberto Marinho, que tem 86 anos. Se é esse o conceito que tem
sobre os homens de cabelos brancos, que os use para si.”
Na verdade, eu tinha escrito “encanecidos”, mas o bom-senso do Erthal me travou:
pô, Brito, ninguém mais sabe o que é encanecido. É verdade, mas é o que o velho teria dito.
Bem, o texto foi para o Tribunal sem que Brizola lesse o que ele estava “dizendo” na resposta.
Foram dois anos e um mês de espera pela Justiça.
Brizola levantava a sobrancelha, cético, quando Lavigne e Siqueira Castro, teimosos e dedicados, diziam que íamos ganhar.
Passou tanto tempo que, dos 70, Brizola já tinha 72 anos e Marinho, 88.
No final do dia 9 de março chega a notícia da vitória no Superior
Tribunal de Justiça, mas ainda havia um recurso possível e um
“notificaram a Globo ou não notificaram?”. O ceticismo, confesso, era
maior que a ansiedade.
No próprio dia 15, terça da semana seguinte, quando o texto foi ao
ar, não críamos – nem eu, nem Brizola – que aquilo iria acontecer.
Tanto que nem montamos esquema algum para gravar o Jornal Nacional, senão o de um videocassete doméstico.
E foi o que se viu e que ficou na história.
Termina o texto, toca o telefone:
‘Olha, Brito, que maravilha. Nós acertamos o tiro no cu de um mosquito”.
E assim foi. Não fiquei aborrecido, ao contrário. Porque era nós, mesmo: era o Brizola introjetado em mim que escrevera.
Elogio mesmo – e maior não poderia haver – foi o de Roberto Marinho,
falando ao querido amigo Neri Victor Eich, da Folha, por telefone, no mesmo dia do terremoto:
“Que nunca mais se reproduza isso. O direito de resposta teve o tom de Brizola.”
Teve sim.
Foi a última vitória de Brizola, em vida e em memória, despertando
consciências que não se acovardam, não se ajoelham e não gaguejam, como a
dele, a minha e a sua.
Até hoje, a não ser pelos testemunhos dos personagens desta história,
a ninguém tinha revelado estes detalhes. Faço-o agora, porque já são
história e porque só aumentam o tamanho de um homem a quem eu devo
grande parte do que sou.
Um homem que era tão grande que estar à sua sombra foi também – e é para sempre – estar sob sua luz.
Direito de Resposta
‘Todos sabem que eu, Leonel Brizola, só posso ocupar espaço na
Globo quando amparado pela Justiça. Aqui citam o meu nome para ser
intrigado, desmerecido e achincalhado perante o povo brasileiro.
Quinta-feira, neste mesmo Jornal Nacional, a pretexto de citar
editorial de ‘O Globo’, fui acusado na minha honra e, pior, apontado
como alguém de mente senil.
Ora, tenho 70 anos, 16 a menos que o meu difamador Roberto Marinho,
que tem 86 anos. Se é esse o conceito que tem sobre os homens de
cabelos brancos, que o use para si.
Não reconheço à Globo autoridade em matéria de liberdade de
imprensa, e basta para isso olhar a sua longa e cordial convivência com
os regimes autoritários e com a ditadura de 20 anos, que dominou o nosso
país.
Todos sabem que critico há muito tempo a TV Globo, seu
poder imperial e suas manipulações. Mas a ira da Globo, que se
manifestou na quinta-feira, não tem nenhuma relação com posições éticas
ou de princípios. É apenas o temor de perder o negócio bilionário, que
para ela representa a transmissão do Carnaval.
Dinheiro, acima de tudo.
Em 83, quando construí a passarela, a Globo sabotou,
boicotou, não quis transmitir e tentou inviabilizar de todas as formas o
ponto alto do Carnaval carioca. Também aí não tem autoridade moral para
questionar. E mais, reagi contra a Globo em defesa do Estado do Rio de
Janeiro que por duas vezes, contra a vontade da Globo, elegeu-me como
seu representante maior.
E isso é que não perdoarão nunca.
Até mesmo a pesquisa mostrada na quinta-feira revela
como tudo na Globo é tendencioso e manipulado. Ninguém questiona o
direito da Globo mostrar os problemas da cidade. Seria antes um dever
para qualquer órgão de imprensa, dever que a Globo jamais cumpriu quando
se encontravam no Palácio Guanabara governantes de sua predileção.
Quando ela diz que denuncia os maus administradores
deveria dizer, sim, que ataca e tenta desmoralizar os homens públicos
que não se vergam diante do seu poder.
Se eu tivesse as pretensões eleitoreiras, de que tentam me acusar, não estaria aqui lutando contra um gigante como a Rede Globo.
Faço-o porque não cheguei aos 70 anos de idade para ser um acomodado.
Quando me insulta por nossas relações de cooperação
administrativa com o governo federal, a Globo remorde-se de inveja e
rancor e só vê nisso bajulação e servilismo. É compreensível: quem
sempre viveu de concessões e favores do Poder Público não é capaz de ver
nos outros senão os vícios que carrega em si mesma.
Que o povo brasileiro faça o seu julgamento e na sua
consciência lúcida e honrada separe os que são dignos e coerentes
daqueles que sempre foram servis, gananciosos e interesseiros.’