O Conversa Afiada tem o prazer de republicar texto do respeitado economista José Carlos de Assis, enviado ao Senador Roberto Requião, sobre os sinistros planos do Traíra, ou Trambolho, ou Tinhoso.
(Não deixe de ler também "assim seria o "Governo" Temer")
DOIS PROJETOS QUE LIQUIDAM COM O SETOR PÚBLICO E PERPETUAM A DEPRESSÃO
Encontram-se no Congresso dois projetos - PLs 241 e 257/16 - com o
objetivo comum de congelar os orçamentos primários da União, dos Estados
e dos Municípios. É difícil imaginar como isso possa ter sido pensado
por parte de autoridades eleitas ou de burocratas públicos que
respondem, de alguma forma, pelo interesse público e o bem estar da
sociedade brasileira. Entretanto, isso não só foi pensado, para espanto
geral, como foi materializado na forma de projetos de lei que
surpreendentemente estão merecendo a simpatia de parte do Congresso.
É preciso dizer que esse surto de imaginação legislativa tem um
precedente, embora indireto. No caso do congelamento do orçamento
primário da União, o precedente externo é a atitude recorrente do
Partido Republicano norte-americano, sob pressão de sua extrema direita,
o Tea Party, de tentar congelar o teto da dívida pública – o que
implica indiretamente congelar o próprio orçamento. Contudo, embora a
imposição de teto tenha sido tentada várias vezes, nunca passou. O
Congresso norte-amercano é conservador, mas não é suicida.
É
ilustrativo considerar a luta de interesses em torno do projeto
republicano nos Estados Unidos para iluminar o que acontece aqui. Embora
o congelamento da dívida afetaria toda a sociedade, na forma de cortes
generalizados de serviços públicos da União financiados por déficit, o
principal bloco de interesses afetado seriam os titulares da gigantesca
dívida pública norte-americana. Uma vez congelado teto da dívida, o
Estado simplesmente daria calote em parte da dívida que não pudesse ser
financiada por emissão de novos títulos públicos.
É que,
diferentemente do Brasil, o orçamento da União nos EUA não criou a
figura esdrúxula do orçamento primário, que não considera os custos
financeiros da dívida pública, principalmente juros. Se, para limitar a
dívida, fosse forçado legalmente a cortar o déficit público, inclusive a
parte dos juros, o Governo teria, como observado, de dar o calote na
dívida, cortando ao mesmo tempo inúmeras despesas públicas. Quando Wall
Street percebeu o risco, forçou os republicanos, seus representantes
tradicionais, a voltarem atrás. E o projeto não passou.
No caso
desse projeto brasileiro, seus formuladores aproveitaram a figura
esdrúxula do orçamento primário para garantir que apenas os serviços
públicos sejam afetados pela rigidez do teto, por inacreditáveis 20
anos. É um acinte que isso se faça nas barbas do Senado. Se fizermos um
exercício de memória, vamos nos recordar de que a figura do orçamento
primário aparece na contabilidade fiscal brasileira na época da primeira
renegociação da dívida externa, nos anos 80, em plena crise
inflacionária. O orçamento primário era a forma de gerar recursos reais,
isto é, a diferença entre receitas e despesas correntes da União, para
pagar o serviço da dívida pública, que se tornou, desde então, sagrado,
tomando a forma de superávit primário permanente.
Portanto, a
proposta de estabelecimento de um congelamento de 20 anos para o
orçamento social implica congelar todas as despesas correntes e de
investimento da União, excetuando apenas as despesas financeiras com o
serviço da dívida pública. Mais uma vez, tudo se faz pelo deus Mamon, o
deus-dinheiro, conforme a expressão bíblica tantas vezes ciadas pelo
papa Francisco. É como se não houvesse crescimento da população,
aposentadoria de trabalhadores, melhor qualificação de serviços de saúde
e de educação, investimento público em áreas prioritárias, enfim, como
se não apenas o orçamento, mas a própria sociedade ficasse congelada.
Mas ainda não tínhamos despertado do susto representado por esse
projeto relativo à dívida pública e a Câmara dos Deputados, trabalhando
freneticamente em tempos de golpe, decidiu aprovar o projeto PLC 257/16,
neste caso trocando um pífio adiamento por dois anos no pagamento das
parcelas das infames dívidas estaduais junto à União por um
inacreditável dispositivo legal de congelamento em termos reais dos
orçamentos públicos primários dos Estados. É a superposição de duas
imposições monstruosas no regime fiscal do país, de cujas nefastas
consequência escapam apenas os financistas, devotos do deus Mamon.
É preciso que o Senado introduza um elemento de sanidade em todo esse
processo pois do contrário o país vai sucumbir, não só à degradação de
seus serviços públicos, mas a uma depressão indefinida. É que, desde
Keynes, sabe-se que uma economia em recessão não sai da crise exceto
pelo aumento do investimento público. Sim, senhores Senadores e
Senadoras, sem aumento de investimento público é literalmente impossível
recuperar a demanda, já que o setor privado em depressão não tem como
gerar demanda para si mesmo. De fato, só o setor público pode investir,
sobretudo em infraestrutura, sem esperar pelo aumento anterior da
demanda.
Investindo, de preferência deficitariamente, na
infraestrutura e mesmo em gastos correntes, o Estado cria demanda para o
setor privado; havendo demanda – e não uma fantasiosa “confiança” – o
setor privado investe, cria emprego, cria mais demanda, num círculo
virtuoso objetivo, não ideológico, que restitui as condições de
crescimento da economia. Entretanto, os dois projetos em pauta destroem
as possibilidades de o setor público investir, com isso mobilizando
recursos financeiros que estão ociosos na sociedade. É uma crime contra a
economia, um crime contra a sociedade. Esses projetos, se transformados
em lei, liquidam o setor público e perpetuam a depressão em que nos
encontramos.
É importante deixar claro, por outro lado, que o
suposto alívio das dívidas estaduais oferecido pelo Governo federal
nesse projeto inominável não passa de um truque para garrotear os
Estados em várias armadilhas, além do congelamento orçamentário. É
importante que os governadores, e os senadores que representam os
Estados tenham uma visão republicana desse processo. A dívida dos
Estados foi paga na origem, já que o Governo federal apenas intermediou
os recursos provindos dos cidadãos para pagar bancos credores, sem
negociação. Não faz sentido que a dívida seja paga de novo pelos mesmos
cidadãos. Assim, mudar indexadores da dívida, como se persegue
judicialmente, não é suficiente. Essas dívidas devem ser dadas como
quitadas, e o Governo federal deve ressarcir os Estados daquilo que lhes
foi cobrado indevidamente. Nessa hipótese, teríamos um importante
influxo de recursos na economia, através dos Estados, convertendo a
depressão em crescimento econômico.