Numa mudança de posição drástica, o jornal O Globo acaba de denunciar seu apoio histórico à Revolução de 1964. Alega, como justificativa para renegar sua posição de décadas, que se tratou de um “equívoco redacional”.
Dos grandes jornais existentes à época, o único sobrevivente carioca como mídia diária impressa é O Globo. Depositário de artigos que relatam a história da cidade, do país e do mundo por mais de oitenta anos, acaba de lançar um portal na Internet com todas as edições digitalizadas, o que facilita sobremaneira a pesquisa de sua visão da história.
Pouca gente tinha paciência e tempo para buscar nas coleções das bibliotecas, muitas vezes incompletas, os artigos do passado. Agora, porém, com a facilidade de poder pesquisar em casa ou no trabalho, por meio do portal eletrônico, muitos puderam ler o que foi publicado na década de 60 pelo jornalão, e por certo ficaram surpresos pelo apoio irrestrito e entusiasta que o mesmo prestou à derrubada do governo Goulart e aos governos dos militares. Nisso, aliás, era acompanhado pela grande maioria da população e dos órgãos de imprensa.
Pressionado pelo poder político e econômico do governo, sob a constante ameaça do “controle social da mídia” – no jargão politicamente correto que encobre as diversas tentativas petistas de censurar a imprensa – o periódico sucumbiu e renega, hoje, o que defendeu ardorosamente ontem.
Alega, assim, que sua posição naqueles dias difíceis foi resultado de um equívoco da redação, talvez desorientada pela rapidez dos acontecimentos e pela variedade de versões que corriam sobre a situação do país.
Dupla mentira: em primeiro lugar, o apoio ao Movimento de 64 ocorreu antes, durante e por muito tempo depois da deposição de Jango; em segundo lugar, não se trata de posição equivocada “da redação”, mas de posicionamento político firmemente defendido por seu proprietário, diretor e redator chefe, Roberto Marinho, como comprovam as edições da época; em segundo lugar, não foi, também, como fica insinuado, uma posição passageira revista depois de curto período de engano, pois dez anos depois da revolução, na edição de 31 de março de 1974, em editorial de primeira página, o jornal publica derramados elogios ao Movimento; e em 7 de abril de 1984, vinte anos passados, Roberto Marinho publicou editorial assinado, na primeira página, intitulado “Julgamento da Revolução”, cuja leitura não deixa dúvida sobre a adesão e firme participação do jornal nos acontecimentos de 1964 e nas décadas seguintes.
Declarar agora que se tratou de um “equívoco da redação” é mentira deslavada.
Equívoco, uma ova! Trata-se de revisionismo, adesismo e covardia do último grande jornal carioca.
Nossos pêsames aos leitores.
A Globo se defende em Nuremberg
Herman Göering, ao ser perguntado pelo juiz Francis Beverley Biddle, no Tribunal de Nuremberg, se declarava-se culpado ou inocente das acusações de crimes de guerra, entre eles o extermínio de judeus, disse, simplesmente:
“No sentido da acusação, declaro-me não culpado”.
A Globo, na esteira do editorial onde abjura de suas ligações com o golpe militar, lançou um site Memória Globo onde, em uma área especial, pretende defender-se do que chama de “erros” e de “acusações injustas”.
A visão deste site, quero confessar aos leitores, paralisou-me pelas recordações e, talvez, até isso me impeça de ser aqui tão claro quanto desejaria.
Afinal, em várias das situações, sou testemunha, não apenas um narrador.
Começo pela edição do debate Lula x Collor, no segundo turno das eleições de 1989, quando eu era assessor de imprensa de Leonel Brizola, com quem assisti o debate da Globo. E não vou ser falso, e Lula sabe disso, que nos decepcionamos com o fato de sua inexperiência não tê-lo ajudado a voar na garganta de Collor pelo episódio Míriam Cordeiro.
Frustrados? Sim, porque achava Brizola – e não sem razão – que , ali, ele teria feito – como às vezes dizia no falar gauchesco, embora sempre pedisse perdão pelo chulo – Fernando Collor “se enfiar no cu de um burro”.
Mas não houve o massacre que se diz ter havido, em nenhuma hipótese. E Lula vinha numa linha francamente ascendente, a qual, inclusive, tinha feito com que ele, por 0,5% dos votos, tivesse tirado Brizola do enfrentamento final das eleições.
Eu, pessoalmente, acompanhava o andamento da campanha, porque – numa surpresa até para mim – havia sido escolhido para formar uma comissão, ao lado do professor Cibilis Vianna (um dos melhores caráteres que já conheci) e do então deputado Vivaldo Barbosa, que administrava o apoio do PDT ao PT, que se representava por Luiz Gushiken, José Dirceu e Plínio de Arruda Sampaio.
E todos os informes que nos chegavam era de um avanço sólido da candidatura Lula.
Naquela noite, ou melhor, naquela madrugada, toca-me o telefone.
Não me recordo se a uma ou às duas da manhã.
“Morreu alguém”, disse a minha então mulher, Flávia.
De alguma forma, a premonição era verdadeira.
Do outro lado da linha, Octavio Tostes, meu querido e melhor amigo nos tempos de faculdade.
Aos prantos.
Conta-me da edição do debate, que ele fizera com as próprias mãos, mas sob ordens alheias.
Fala das determinações de Ronald de Carvalho (que, nos vìdeos da Memória Globo, você verá negando isso) e de Alberico Souza Cruz, para que o debate fosse editado com um massacre de Collor sobre Lula.
Diz que fez porque outro que o fizesse, faria pior ainda, sem as objeções de consciência que tinha àquilo.
Chorava -perdão, Octavio, por revelar-lhe essa intimidade – copiosamente.
Naquele momento, confesso, não fui nada condescendente. Frio e seco, agi assim.
Disse-lhe, apenas, que cada um teria de viver com sua consciência.
E vi o quanto ele sofreu com isso, até sublimar-se pela verdade.
Octavio segue sendo, apesar da distância, meu querido amigo. O “primo”, como nos tratávamos e, espero, sempre nos trataremos.
Não falei com ele antes de narrar esta história. Estamos velhos o suficiente para que ela se escreva com letra maiúscula e vejo, orgulhoso do meu sempre companheiro de sonhos, o quanto ele assume toda a verdade no video que gravou para o site da Globo. Nada do que fala se contradiz àquilo que ouvi dele há 24 anos.
Acho que é a primeira vez que, neste blog, falo de vivência pessoal.
Sou antiquado, do tempo em que se dizia, nas redações, que “jornalista não é notìcia”.
Talvez um companheiro queira ouvir e relatar estas histórias, mas para mim é muito doloroso narrá-las.
É como ver Göeringer dizendo que não sabia dos campos de extermínio.
Não posso ser objetivo e equilibrado.
Só posso ser ouvido como testemunha, não posso ser narrador.
Somos sobreviventes de um massacre, da ditadura e de sua expressão midiática, a Globo.
Não se nos espere imparcialidade.
Como jornalista, posso e devo escrever com paixão, mas nunca sem dar voz ao outro lado.
E, neste caso, sinto-em como o juiz Francis Biddle, que, quando Göering começou a falar, reduziu-o à ordem: declara-se culpado ou inocente?
Eu não tenho dúvidas sobre o que declarar sobre a Globo.
Por: Fernando Brito