Confesso que, passadas mais de duas horas da madrugada, ainda não
consegui ler toda a denúncia que o Ministério Público apresentou, em
Curitiba, contra o ex-presidente Lula, sua esposa e várias outras
pessoas.
Confesso, ainda, que estou com dificuldade mesmo de extrair desta
abundante narrativa quais são exatamente as condutas que são imputadas
aos réus.
São 149 páginas de narrativas, as mais variadas e abrangentes, sobre
esquemas de corrupção que se protraíram por mais de uma década em nosso
país. Algumas passagens são repetidas de forma inexplicável.
O formato desta peça acusatória é totalmente atípico. Mais se parece
com o relatório que os delegados de polícia têm de apresentar ao final
do inquérito … Por vezes, esta denúncia lembra também um longo
arrazoado. Poderia ser uma alegação final ou contra-razões de algum
recurso …, ou seja, uma peça processual postulatória, mas não a peça
inaugural de um processo penal.
Fui promotor de justiça por 26 anos (mais 5 como Procurador de
Justiça) e nunca tinha visto o exercício da ação penal desta forma,
através de uma denúncia com este formato estranho.
Como professor de Direito Processual Penal, em uma prova prática, reprovaria o aluno que redigisse uma denúncia desta forma …
A boa técnica remenda, tendo em vista o disposto no art. 41 do
Cod.Proc.Penal que, na denúncia, o órgão acusador faça imputações certas
e determinadas, individualizando as condutas no tempo e lugar. É
preciso que o réu saiba exatamente do que está sendo acusado para poder
se defender de forma eficaz.
Fica até difícil entender por que a acusação precisa de 149 folhas
para descrever as condutas penalmente típicas que atribui aos réus.
Análises políticas e conjecturais não ficam bem em uma denúncia, como
peça inicial de um processo criminal.
Pelo adiantado da hora, parei de ler estas narrativas infindáveis,
cheias de adjetivos e poucos verbos, (condutas dos imputados).
Confesso que não compreendi bem as acusações. Fiquei meio perplexo
com o que estava lendo. Não é assim que devem ser elaboradas as
denúncias no processo penal. Repito: denúncia é diferente de alegações
finais ou relatório de delegados …
Como levar mais de 3 horas para ler uma denúncia e não conseguir
chegar ao seu final, não conseguir extrair com clareza as acusações, que
devem ser precisas e individualizadas? As argumentações devem ser
feitas ao final do processo, com análise da prova carreada para os
autos.
Tenho a impressão de que a desmedida extensão desta denúncia tem como escopo disfarçar a fragilidade de seu conteúdo acusatório.
Enfim, como ainda não entendi o teor desta infindável acusação, por
ora, limito-me a criticar o formato da denúncia, formato este que torna
quase que impossível serem entendidas as imputações específicas das
condutas de cada um dos acusados. Forçoso é reconhecer que esta peça
processual carece da mais comezinha técnica.
Nada obstante, já podemos dizer algo sobre o mérito das acusações, ainda que de forma resumida e superficial:
1 – Não faz muito sentido dizer que o ex-presidente foi o “general”
ou “maestro” de um esquema bilionário de corrupção e fraudes para
receber de propina benefícios que chegariam a pouco mais de dois milhões
de reais. Tais benefícios se traduziriam em pagar o transporte e
armazenamento de móveis e presentes que o Lula teria recebido como
presidente e mais uma reforma de um apartamento, que sequer ele teve a
posse ou a propriedade;
2 – Mesmo que assim não fosse, tudo isso não caracterizaria o crime
de lavagem de dinheiro, pois tal numerário não entrou no patrimônio do
ex-presidente Lula. Por isso, não usou ele dinheiro de propina de forma a
disfarçar a sua origem criminosa. Nem isto diz a denúncia. Assim, tais
benesses da OAS seriam apenas o próprio pagamento da alegada corrupção
passiva. Corrupção passiva esta, vale a pena repetir, alegada de forma
genérica e imprecisa.
3 – No direito brasileiro, proprietário é quem tem o título
translativo da propriedade registrado na matrícula do imóvel junto ao
Registro Geral de Imóveis. No caso, o apto. de Guarujá está registrado
no RGI em nome da empresa OAS. Note-se que a denúncia não chega sequer a
alegar que o ex-presidente Lula e sua esposa tiveram, ainda que por um
dia, a posse do referido apartamento. Visitar um imóvel e solicitar que
nele seja feita esta ou aquela reforma não transforma o pretendente em
proprietário … Elementar.
4 – Saber que existe um ou vários crimes (e isto não está provado)
não transforma a pessoa em autora ou partícipe de tais crimes. Ademais,
não pode haver participação por omissão em crime comissivo. Também aqui é
elementar …
5 – O direito penal dos povos civilizados não aceita a chamada
responsabilidade penal objetiva. Ninguém pode ser responsabilizado
penalmente pelos crimes que seus subalternos teriam praticado. A
responsabilidade penal é absolutamente pessoal. Nem precisaria dizer que
isto é elementar …
6 – Esta denúncia entra em choque com toda aquela outra narrativa
feita na denúncia contra o ex-presidente Lula pelos promotores de
justiça de São Paulo. Ali eles afirmam que as benesses da OAS não teriam
qualquer ligação com as fraudes da Petrobrás e, sim, com fraudes na
cooperativa que fora administrada pelo sr. Vaccari. Esta denúncia, ao
que se sabe, ainda não foi apreciada pelo poder judiciário, pois ficou
pendente de decisões sobre a competência da recebê-la ou rejeitá-la.
Assim, temos uma estranha e vedada litispendência …
7 – Pelas próprias narrativas constantes da denúncia, complicadas e
muito pouco claras, não teríamos a figura do concurso material de
infrações e, sim, de crimes continuados. Refiro-me às hipóteses em que
se diz que tais ou quais condutas teriam sido praticadas várias vezes
pelo mesmo autor ou partícipe.
Enfim, está tudo muito nebuloso, inconsistente e absolutamente
incorreto e frágil. Isto dizemos mesmo sem um estudo mais aprofundado da
malsinada peça acusatória, que ainda não conseguimos ler em toda a sua
absurda dimensão.
Afranio Silva Jardim, professor associado de Direito Processual Penal da Uerj. Mestre e Livre-Docente em Direito Processual.