O Brasil dos protestos de rua se assemelha a um trem desgovernado. Enquanto manifestantes exigiam recuo de Estados e municípios no aumento das passagens de ônibus e metrô, tinham uma causa concreta. A partir da vitória deles sobre prefeitos e governadores que ignoraram as contas públicas e cederam, as manifestações perderam completamente o rumo.
Há que lembrar que reduzir ou ao menos não aumentar o preço das passagens do transporte público é um sonho de consumo para qualquer prefeito ou governador. Assim sendo, tomemos como exemplo o caso de São Paulo, a partir de onde os protestos ganharam dimensão e se espalharam pelo resto do país.
Alguém consegue negar que seria a glória para o prefeito Fernando Haddad vir a público dizer que interromperia os aumentos das passagens que o seu antecessor impunha e que, em sua gestão, não haveria aumento algum? Por que Haddad não fez isso? Por maldade? Para se locupletar com propinas pagas pelos concessionários para que lhes concedesse aumentos?
Quem acha que o povo vai pagar menos pelas passagens não entende nada de administração pública. O povo vai pagar o aumento das passagens, sim. Não diretamente, mas através de seus impostos. As empresas de ônibus não vão perder nada, pois as prefeituras que cederam aos protestos irão subsidiá-las.
Dirão que é melhor o dinheiro no bolso do povo do que nas mãos do Estado. Essa, porém, não passa de desculpa que os sonegadores dão em meios sociais e até empresariais para fugirem do dever cívico de pagar impostos, quando se gabam de como enganaram o fisco – quem já não ouviu alguém contando, orgulhoso, como driblou o imposto de renda, por exemplo?
Os centavos que cada cidadão economizará nas passagens irão faltar em alguma outra área sob administração pública. Como as verbas da Saúde ou da Educação já estão autorizadas, os recursos que irão do mesmo jeito para o bolso dos empresários sairão dos investimentos.
Alguém consegue adivinhar que investimentos deixarão de ser feitos por conta da dinheirama oriunda de impostos que irá para o bolso dos concessionários de empresas de ônibus?
Os investimentos em transporte público irão diminuir. E, quando as demandas por esses investimentos tomar as ruas, aí se produzirá o impasse, porque existe uma coisinha chamada lei de responsabilidade fiscal, a qual impedirá que os diversos níveis de governo se endividem para fazer investimentos que não terão como fazer sem gastar mais do que arrecadam.
Tomemos, agora, o exemplo do governo do Estado de São Paulo. O governador Geraldo Alckmin, tentando se antecipar a mais protestos contra o aumento contratual dos pedágios, deixou de aumentar a tarifa. Quem vai bancar o que os concessionários de rodovias tinham “direito” (por contrato) em termos de reajuste? Adivinhe, leitor…
O povo obteve uma gorjeta fictícia, portanto. E o que mais?
Bem, a Câmara rejeitou a PEC 37. Foi bom para você? Independentemente da sua opinião – a favor da proposta de emenda constitucional ou contra ela –, impedi-la era uma agenda conservadora encampada pela mesma mídia que tem tido no Ministério Público um joguete para seus ataques aos grupos políticos aos quais se opõe.
No Senado, o “clamor das ruas” foi ouvido pelo presidente da Casa, Renan Calheiros, que já promete encampar propostas conservadoras com fim do auxílio-reclusão e transformação de crimes de corrupção em crimes “hediondos”.
Você pode aprovar essas propostas, que, na verdade, distorcem a realidade, pois o auxílio-reclusão é pago a famílias de presos sob financiamento das contribuições ao INSS que eles possam ter feito caso tenham trabalhado com carteira assinada algum dia, e transformar a corrupção em crime hediondo pertence à esfera de propostas conservadoras como redução da maioridade penal e de implantação da pena de morte.
O governo Dilma e o PT vêm tentando impor uma agenda melhor às manifestações, como reforma política (Dilma) e taxação de grandes fortunas (PT), mas a mídia, que está cooptando e manipulando as manifestações, já trata de bombardear a principal causa da reforma, o financiamento público de campanha, e, por certo, fará o mesmo com a taxação.
Uma grande causa que poderia ser encampada pelas manifestações, jamais apareceu nelas – além de em um ou outro cartaz isolado. A democratização da comunicação no Brasil não foi incluída de fato em protesto algum, apesar de o suposto organizador desses protestos, o Movimento Passe Livre, dizer-se de esquerda, corrente ideológica que apoia essa causa.
É bem pouco provável que democratização das comunicações – o que seja, o fim dos oligopólios de mídia que, no Brasil, são os mais concentrados do mundo – venha sequer a ser cogitada pelos pretensos líderes dos protestos, pois eles estão em lua-de-mel com a mídia, sendo exaltados por ela e lhe prestando serviços como o extermínio da PEC 37.