O
contra-ataque da alta finança se efetua, em plano global, mediante uma
série de combates encadeados. Um deles, estratégico, está sendo travado
no Brasil.
Sebastião Velasco
A melhor defesa é o ataque.
Certo? Nem sempre. Mas quando o agente em causa detém posição de força,
quando é - ou ainda é - mais poderoso que seus oponentes, a
contra-ofensiva pode ser uma estratégia vitoriosa.
Esta, pelo menos, tem sido a aposta do capital financeiro, e de seus acólitos - no Brasil e por toda parte.
Senão,
vejamos. Nos anos 30 do século passado, Keynes chegou a falar em
eutanásia do rentista. Dissipadas as cinzas da segunda guerra,
assentadas finalmente as bases para um novo – e sob muitos aspectos
surpreendente - surto de desenvolvimento capitalista em escala
internacional (os “30 anos gloriosos”) , logo se viu que os
representantes dessa espécie não foram levados a nada tão drástico.
É
verdade, foram submetidos a disciplinas rígidas e a uma dieta
parcimoniosa. E quando saíam da linha eram chamados à ordem por
vigilantes severos. Mas podiam se dedicar tranquilamente às suas
atividades rotineiras - que eram tidas por socialmente úteis, ainda que
nada heróicas.
Foi assim até que as contradições da ordem
político-econômica instaurada sob a batuta dos Estados Unidos - que lhe
garantiam a proteção e lhe emprestavam a moeda - estalaram na grande
crise da década de 1970, que tem na estagflação o seu traço
característico mais notório.
Não há lugar aqui para discutir os
movimentos profundos que levaram a esse estado de coisas, nem para
inquirir sobre a relação que porventura mantenham com os grandes
deslocamentos produzidos simultaneamente no plano da geopolítica
mundial.
Importa é registrar que, no desenrolar da crise - em
parte pelas medidas sem precedentes adotadas em reação a ela (a ruptura
do regime de Bretton Woods, pela decisão unilateral dos Estados Unidos
de por fim à convertibilidade do dólar), em parte pelo reiterado
fracasso dos instrumentos de política econômica consagrados - pouco a
pouco a credibilidade das instituições que calçavam a antiga ordem foram
sendo minadas. E a disciplina de internato (para meninos ricos, é
certo, mas internato quand même) a que foram submetidos os nossos
personagens passou a ser cada vez mais fortemente criticada. Contra a
“repressão financeira”, a liberdade dos mercados auto-regulados -- esse o
adágio.
Liberdade... o que não se abriga na generosidade dessa idéia? Liberados
das regulações administradas por burocratas cinzentos, os gênios das
finanças saíram a campo, e logo puseram em prática suas idéias
maravilhosas. A cada dia uma nova. As conseqüências são conhecidas.
Depois de um longo período de monotonia, a economia mundial passou a
conviver novamente com as emoções das crises financeiras, os altos e
baixos da bolsa, as disparadas nos mercados de moedas.... É certo,
muitos dos financistas ficavam no caminho. Mas outros saíam do turbilhão
ainda mais fortes - o que só lhes aumentava a aura. Super-ricos,
distintos, sedutores, heróicos.
Aos poucos, a relação peculiar
que os agentes do capital financeiro mantêm com a vida - a prevalência
do cálculo de oportunidades no curto prazo, a auto-referência, a
abstração exacerbada – invade o capital produtivo, e extravasa para
outras esferas de atividade, como uma doença viral. Nesse processo, o
capitalismo muda de figura, e ganha traços distintos, que os analistas
procuraram sintetizar com a ajuda de fórmulas mais ou menos sugestivas,
mais ou menos elegantes, como “capitalismo patrimonial”, “capitalismo
financeirizado”, ou simplesmente “capitalismo neoliberal”.
Sabemos
todos onde vai dar a história (ou melhor, esse capítulo da história,
porque essa é uma história sem fim, pelo menos até o momento em que a
humanidade consiga colocar em prática uma forma de organização
sócio-econômica alternativa ao capitalismo, em escala global). O
estouro da bolha hipotecária nos Estados Unidos, a descoberta aterradora
de que - dada a opacidade dos instrumentos gerados pela imaginação
criadora dos financistas (os chamados ativos tóxicos) - ninguém sabia ao
certo em que posição encontrava-se na cadeia de débito e crédito; a
corrida aos bancos que se segue, em setembro de 2008, à falência do
Lehman Brothers.
No auge da crise, quando o Tesouro americano
montava às pressas um plano de salvamento dos grandes bancos e
enfrentava uma verdadeira tempestade para fazê-lo aprovar no Congresso
parecia que a festa do capital financeiro estava acabada. Nesse
momento, com milhões de famílias descobrindo, atônitas, que suas
poupanças tinham se esfumado, vozes das mais autorizadas anteviam o
colapso do fundamentalismo de mercado e poucos discordavam de George
Soros, segundo o qual se estava a viver o fim de uma era.
Então,
economistas aclamados - como Paul Krugman e Joseph Stiglitz, ambos
detentores do Prêmio Nobel - defenderam a estatização dos bancos
semi-falidos - para saneá-los e devolve-los mais tarde à iniciativa
privada, sem dúvida, mas estatização ainda assim, com tudo que nessa
medida havia de chocante para o consenso ideológico prévio.
Esse
período, em que o governo americano transforma um conclave sonolento de
ministros de economia em palco de negociações das finanças globais,
ficará marcado por essas imagens emblemáticas: na primeira reunião do
novo G20, realizada na sede do FMI, em Washington, Bush aparece
inopinadamente, e toma acento ao lado de Guido Mantega, que continua a
dirigir a reunião como se nada acontecera, tudo isso diante das câmaras
de TV, que transmitem para o mundo inteiro a cena quase inacreditável.
Nas
duas esferas – na política doméstica, e nas relações internacionais -
o capital financeiro estava na berlinda, e os ventos pareciam soprar a
favor das propostas de mudanças acentuadas.
De fato, por quase
dois anos, o debate sobre programas de reformas financeiras tomou conta
do noticiário. Mas, em ambos níveis - no plano doméstico e na arena
internacional - o resultado alcançado foi pífio.
Nos Estados
Unidos, o Congresso aprovou, em julho de 2010, um projeto de lei que
alterava a regulação do sistema financeiro e criava novos mecanismos de
defesa do consumidor (a lei Frank-Dodd). Mas apenas depois de renhida
batalha, da qual a proposta de reforma saiu com muitos dentes quebrados.
Não foram impostos limites ao tamanho dos bancos; a regulação dos
derivativos não se tornou mais rigorosa.
Na arena internacional, também, as mudanças foram cosméticas. No início,
houve muito alarde a respeito de reformas que poriam fim ao predomínio
absoluto do modelo anglo-saxão de finanças, impondo regras de conduta
mais rigorosas aos bancos, disciplinando a atuação dos hedge funds e
das agências de avaliação de risco, justamente suspeitas de cumplicidade
com as instituições que deveriam monitorar. Mas, cinco anos depois, as
taxas de capital próprio requeridas dos bancos continuavam muito baixas,
os fundos especulativos seguiam agindo sem maiores restrições, e as
agências de avaliação de risco ainda davam suas notas (a empresas e
países) imbuídas de inconteste autoridade.
Se o que define uma
crise (uma grande crise) são os seus efeitos sobre as formas
institucionais, não caberia falar, nesse caso, em crise, salvo se
apelarmos a um oxímoro e nos referirmos a ela como uma crise normal [1].
Não
há como entender esse resultado se não levarmos em conta, além do poder
dos banqueiros, o significado estratégico que o controle sobre as
engrenagens do mercado financeiro em escala mundial adquire para os
Estados Unidos. Se quiserem levantar uma ponta do véu que cobre o
fenômeno, reparem na maneira como as sanções unilaterais contra o Irã e,
agora, a Rússia operam.
Pois é de mãos dadas com o Estado - não
apenas desse Estado – que, vencido o susto e contida a onda, o Império
da alta finança contra-ataca.
A ofensiva se faz em inúmeras
frentes, mas vou me ater aqui a uma delas. Refiro-me à negociação do
acordo secreto sobre comércio de serviços financeiros, lançada em
fevereiro do ano passado, cujos termos vieram à tona recentemente, a
partir de um documento vazado pelo Wikileaks.
Como soe acontecer
em textos dessa natureza, ele é lacunar e vem repleto de colchetes, com
redações alternativas sobre tal ou qual item, acompanhadas de
indicações sobre a origem de cada uma delas.
O documento
divulgado é parte de uma negociação muito mais ampla (TISA, na sigla em
inglês), que envolve uma lista não exaustiva de mais de uma dezena de
temas, e 27 países, capitaneados pelos Estados Unidos e pela União
Européia. Salta aos olhos a presença, na lista de participantes, de
vários países próximos a nós -- como o Chile, o Paraguai, o Peru, a
Colômbia, e o México -- e a ausência de alguns atores de peso: o
Brasil, a Índia, a Rússia, a China e a África do Sul (vale dizer, os
BRICS), além de um rol de países – da Argentina à Venezuela – que a
internacional financeira define como companhias pouco recomendáveis.
Os
analistas que se debruçaram sobre esse documento salientam o caráter
preliminar de seus comentários, que só poderão ganhar maior solidez
quando todo o material relativo à negociação puder ser examinado. A
depender da vontade dos governos envolvidos, porém, esse momento não
acontecerá tão cedo, pois a regra de estrito sigilo que rege suas
tratativas estende-se pelos cinco anos subseqüentes à adoção do acordo
negociado.
Mesmo assim, algumas das características do projeto são bastante claras:
Ele procura fazer, em ambiente de clube, o que as partes interessadas não conseguem em fóruns multilaterais.
Contrariando
o princípio da não-discriminação, essencial ao regime multilateral de
comércio, esse acordo prevê que as regras por ele estabelecidas valerão
apenas para os países signatários. Trata-se, portanto, de um acordo
discriminatório, ou, se quiserem, preferencial.
O objetivo geral
buscado com ele é o de criar normas internacionais que consagrem a
liberalização financeira e dotem os agentes privados de instrumentos
hábeis para contestar juridicamente qualquer iniciativa do poder público
(nacional ou subnacional) suspeitas de violar as regras acordadas.
Há muitas outras coisas que poderiam ser - e têm sido - ditas sobre
esse acordo, com base no pouco que transpirou a seu respeito até o
presente. Mas neste final de artigo, devo limitar-me a este registro
sumário, e chamar a atenção do leitor para dois pontos sem conexão
aparente com a matéria: a disposição expressa no programa de governo da
oposição demo-tucana de aderir à negociação do pacote de serviços (que
inclui os “serviços financeiros”), e o enorme contraste entre a ambição
que o embala e os móveis dos BRICS, ao criar o seu banco de
desenvolvimento e seu fundo de estabilização, na cúpula de Fortaleza, em
julho próximo passado.
A convergência desses três movimentos
- o acordo sobre serviços financeiros, o programa da oposição, e o
último lance dos BRICS - sugere a conclusão que o tamanho desse artigo
já pede: o contra-ataque da alta finança se efetua, em plano global,
mediante uma série de combates encadeados. Um deles, de alcance
estratégico, está sendo travado aqui no Brasil, exatamente agora.
[1] É o que faz Eric Helleiner, em seu último livro, The Status Quo Crisis. Global financial governance after the 2008 meltdown