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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O Império (da alta finança) contra-ataca

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O contra-ataque da alta finança se efetua, em plano global, mediante uma série de combates encadeados. Um deles, estratégico, está sendo travado no Brasil.

Sebastião Velasco

 A melhor defesa é o ataque. Certo?  Nem sempre. Mas quando o agente em causa detém posição de força, quando é - ou ainda é - mais poderoso que seus oponentes, a contra-ofensiva pode ser uma estratégia vitoriosa.

Esta, pelo menos, tem sido a aposta do capital financeiro,  e de seus acólitos - no Brasil e por toda parte.

Senão, vejamos. Nos anos 30 do século passado, Keynes chegou a falar em eutanásia do rentista. Dissipadas as cinzas da segunda guerra, assentadas finalmente as bases para um novo – e sob muitos aspectos surpreendente - surto de desenvolvimento capitalista em escala internacional (os “30 anos gloriosos”) , logo se viu que os representantes dessa espécie não foram levados a nada tão drástico.

É verdade, foram submetidos a disciplinas rígidas e a uma dieta parcimoniosa. E quando saíam da linha eram chamados à ordem por vigilantes severos. Mas podiam se dedicar tranquilamente às suas atividades rotineiras  - que eram tidas por socialmente úteis, ainda que nada heróicas.

Foi assim até que as contradições da ordem político-econômica instaurada sob a batuta dos Estados Unidos - que lhe garantiam a proteção e  lhe emprestavam a moeda - estalaram na grande crise da década de 1970, que tem na estagflação o seu traço característico mais notório.

Não há lugar aqui para discutir os movimentos profundos que levaram a esse estado de coisas, nem para inquirir sobre a relação que porventura mantenham com os grandes deslocamentos produzidos simultaneamente no plano da geopolítica mundial. 

Importa é registrar que, no desenrolar da crise - em parte pelas medidas sem precedentes adotadas em reação a ela (a ruptura do regime de Bretton Woods, pela decisão unilateral dos Estados Unidos de por fim à convertibilidade do dólar), em parte pelo reiterado fracasso dos instrumentos de política econômica consagrados  - pouco a pouco a credibilidade das instituições que calçavam a antiga ordem foram sendo minadas. E a disciplina de internato (para meninos ricos, é certo, mas internato quand même) a que foram submetidos os nossos personagens passou a ser cada vez mais fortemente criticada. Contra a “repressão financeira”, a liberdade dos mercados auto-regulados -- esse o adágio.



Liberdade...  o que não se abriga na generosidade dessa idéia? Liberados das regulações administradas por burocratas cinzentos, os gênios das finanças saíram a campo, e logo puseram em prática suas idéias maravilhosas. A cada dia uma nova. As conseqüências são conhecidas. Depois de um longo período de monotonia, a economia mundial passou a conviver novamente com as emoções das crises financeiras, os altos e baixos da bolsa, as disparadas nos mercados de moedas.... É certo, muitos dos financistas ficavam no caminho. Mas outros saíam do turbilhão ainda mais fortes  - o que só lhes aumentava a aura. Super-ricos, distintos, sedutores, heróicos.

Aos poucos, a relação peculiar que os agentes do capital financeiro mantêm com a vida  - a prevalência do cálculo de oportunidades no curto prazo, a auto-referência, a abstração exacerbada  – invade o capital produtivo, e extravasa para outras esferas de atividade, como uma doença viral.  Nesse processo, o capitalismo muda de figura, e ganha traços distintos, que os analistas procuraram sintetizar com a ajuda de fórmulas mais ou menos sugestivas, mais ou menos elegantes, como “capitalismo patrimonial”, “capitalismo financeirizado”, ou simplesmente “capitalismo neoliberal”.

Sabemos todos onde vai dar a história (ou melhor, esse capítulo da história, porque essa é uma história sem fim,  pelo menos até o momento em que a humanidade consiga colocar em prática uma  forma de organização sócio-econômica alternativa ao capitalismo,  em escala global). O estouro da bolha hipotecária nos Estados Unidos, a descoberta aterradora de que - dada a opacidade dos instrumentos gerados pela imaginação criadora dos financistas (os chamados ativos tóxicos) - ninguém sabia ao certo em que posição encontrava-se na cadeia de débito e crédito; a corrida aos bancos  que se segue, em setembro de 2008, à falência do Lehman  Brothers.

No auge da crise, quando o Tesouro americano montava às pressas um plano de salvamento dos grandes bancos e enfrentava uma verdadeira tempestade para fazê-lo aprovar no Congresso parecia que a festa do  capital financeiro estava acabada. Nesse momento, com milhões de famílias descobrindo, atônitas, que suas poupanças tinham se esfumado, vozes das mais autorizadas anteviam o colapso do fundamentalismo de mercado e poucos discordavam de George Soros, segundo o qual se estava a viver o fim de uma era.

Então, economistas aclamados - como Paul Krugman e Joseph Stiglitz, ambos detentores do Prêmio Nobel - defenderam a estatização dos bancos semi-falidos  - para saneá-los e devolve-los mais tarde à iniciativa privada, sem dúvida, mas estatização ainda assim, com tudo que nessa medida havia de chocante para o consenso ideológico prévio. 

Esse período, em que o governo americano transforma um conclave sonolento de ministros de economia em palco de negociações das finanças globais, ficará marcado por essas imagens emblemáticas: na primeira reunião do novo G20, realizada na sede do FMI, em Washington, Bush aparece inopinadamente, e toma acento ao lado de Guido Mantega, que continua a dirigir a reunião como se nada acontecera, tudo isso diante das câmaras de TV, que transmitem para o mundo inteiro a cena quase inacreditável. 

Nas duas esferas – na política doméstica, e nas relações internacionais  -  o capital financeiro estava na berlinda, e os ventos pareciam soprar a favor das propostas de mudanças acentuadas.

De fato, por quase dois anos, o debate sobre programas de reformas financeiras tomou conta do noticiário. Mas, em ambos níveis  - no plano doméstico e na arena internacional  - o resultado alcançado foi pífio.  

Nos Estados Unidos, o Congresso aprovou, em julho de 2010, um projeto de lei que alterava a regulação do sistema financeiro e criava novos mecanismos de defesa do consumidor (a lei Frank-Dodd). Mas apenas depois de renhida batalha, da qual a proposta de reforma saiu com muitos dentes quebrados. Não foram impostos limites ao tamanho dos bancos; a regulação dos derivativos não se tornou mais rigorosa.

Na arena internacional, também, as mudanças foram cosméticas. No início, houve muito alarde a respeito de reformas que poriam  fim ao predomínio absoluto do modelo anglo-saxão de finanças, impondo regras de conduta mais rigorosas aos bancos,  disciplinando a atuação dos hedge funds e das agências de avaliação de risco, justamente suspeitas de cumplicidade com as instituições que deveriam monitorar. Mas, cinco anos depois, as taxas de capital próprio requeridas dos bancos continuavam muito baixas, os fundos especulativos seguiam agindo sem maiores restrições, e as agências de avaliação de risco ainda davam suas notas (a empresas e países) imbuídas de inconteste autoridade. 

Se o que define uma crise (uma grande crise) são os seus efeitos sobre as formas institucionais, não caberia falar, nesse caso, em crise, salvo se apelarmos a um oxímoro e nos referirmos a ela como uma crise normal [1].

Não há como entender esse resultado se não levarmos em conta, além do poder dos banqueiros, o significado estratégico que o controle sobre as engrenagens do mercado financeiro em escala mundial adquire para os Estados Unidos. Se quiserem levantar uma ponta do véu que cobre o fenômeno, reparem na maneira como as sanções unilaterais contra o Irã e, agora, a Rússia operam.

Pois é de mãos dadas com o Estado - não apenas desse Estado – que, vencido o susto e contida a onda, o Império da alta finança contra-ataca. 

A ofensiva se faz em inúmeras frentes, mas vou me ater aqui a uma delas. Refiro-me à negociação do acordo secreto sobre comércio de serviços financeiros, lançada em fevereiro do ano passado, cujos termos vieram à tona recentemente, a partir de um documento vazado pelo Wikileaks.

Como soe acontecer em textos dessa natureza, ele é lacunar e vem repleto de colchetes, com redações alternativas sobre tal ou qual item, acompanhadas de indicações sobre a origem de cada uma delas.

O documento divulgado é parte de uma negociação muito mais ampla (TISA, na sigla em inglês), que envolve uma lista não exaustiva de mais de uma dezena de temas, e 27 países, capitaneados pelos Estados Unidos e pela União Européia. Salta aos olhos a presença, na lista de participantes, de vários países próximos a nós  --  como o Chile, o Paraguai, o Peru, a Colômbia, e o México --  e a ausência de alguns atores de peso: o Brasil, a Índia, a Rússia, a China e a África do Sul (vale dizer, os BRICS), além de um rol de países – da Argentina à Venezuela – que a internacional financeira define como companhias pouco recomendáveis.

Os analistas que se debruçaram sobre esse documento salientam o caráter preliminar de seus comentários, que só poderão ganhar maior solidez quando todo o material relativo à negociação puder ser examinado. A depender da vontade dos governos envolvidos, porém, esse momento não acontecerá tão cedo, pois a regra de estrito sigilo que rege suas tratativas estende-se pelos cinco anos subseqüentes à adoção do acordo negociado.

Mesmo assim, algumas das características do projeto são bastante claras:

Ele procura fazer, em ambiente de clube, o que as partes interessadas não conseguem em fóruns multilaterais.

Contrariando o princípio da não-discriminação, essencial ao regime multilateral de comércio, esse acordo prevê que as regras por ele estabelecidas valerão apenas para os países signatários.  Trata-se, portanto, de um acordo discriminatório, ou, se quiserem, preferencial.

O objetivo geral buscado com ele é o de criar normas internacionais que consagrem a liberalização financeira e dotem os agentes privados de instrumentos hábeis para contestar juridicamente qualquer iniciativa do poder público (nacional ou subnacional) suspeitas de violar as regras acordadas.
 
 Há muitas outras coisas que poderiam ser  - e têm sido - ditas sobre esse acordo, com base no pouco que transpirou a seu respeito até o presente. Mas neste final de artigo, devo limitar-me a este registro sumário, e chamar a atenção do leitor para dois pontos sem conexão aparente com a matéria: a disposição expressa no programa de governo da oposição demo-tucana de aderir à negociação do pacote de serviços (que inclui os “serviços financeiros”), e o enorme contraste entre a ambição que o embala e os móveis dos BRICS, ao criar o seu banco de desenvolvimento e seu fundo de estabilização, na cúpula de Fortaleza, em julho próximo passado.

A convergência desses três movimentos  -  o acordo sobre serviços financeiros, o programa da oposição, e o último lance dos BRICS  -  sugere a conclusão que o tamanho desse artigo já pede: o contra-ataque da alta finança se efetua, em plano global, mediante uma série de combates encadeados. Um deles, de alcance estratégico, está sendo travado aqui no Brasil, exatamente agora.

[1] É o que faz Eric Helleiner, em seu último livro, The Status Quo Crisis. Global financial governance after the 2008 meltdown



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