De forma muito gentil, o colunista Rogério Galindo, que mantém o blog Caixa Zero no jornal paranaense Gazeta do povo diz que, sem querer, a jovem deputada estadual Maria Victoria (PP) acabou por se tornar “um símbolo interessante na discussão sobre os gastos sociais do governo”.
Acho, Rogério, que vai mais além.
Mostra como sobrevivem, pelos séculos, a frieza emproada da indiferença, pior, da desumanidade para com nossos semelhantes.
Por que a deputada que defendeu o
corte do Bolsa Família causou tanto mal estar
Rogério Galindo, na Gazeta do Povo
A deputada estadual Maria Victoria (PP) é jovem. Pouco tempo atrás, era uma desconhecida no Paraná, até porque viveu boa parte do tempo fora do país, estudando na Europa. Ninguém pode criticá-la por isso: se a sua família teve condições, dar a ela as melhores oportunidades é quase uma obrigação. Investir em sua educação, idem. Criticá-la por isso seria criticá-la pelos motivos errados.
De volta ao Brasil, Maria Victoria entrou para o PP e se elegeu deputada estadual aos 22 anos. De novo: tudo dentro das regras. Fez campanha, conseguiu votos, entrou para a Assembleia Legislativa. Está em seu direito, que deve ser respeitado. No entanto, é preciso atentar para um detalhe: ela não se elegeu simplesmente por ser quem é, e sim por ser filha de que é.
A deputada é filha de Ricardo Barros, ex-prefeito de Maringá, e de Cida Borghetti, atual vice-governadora do estado. Isso não invalida sua eleição – o sistema político brasileiro permite. Mas mostra como existe na sociedade brasileira (e em quase todas as outras) uma perpetuação da posição social das famílias. Um dado a mais: o avô dela já foi prefeito de Maringá; Como dizia a musiquinha: o de cima sobe e o de baixo desce.
Vem daí o mal-estar causado pela declaração da deputada contra o Bolsa Família. Nesta semana, depois de seu pai, relator-geral do orçamento de 2016 no Congresso, ter optado por cortar R$ 10 bilhões do principal programa de assistência social do governo, a deputada saiu em defesa do pai. Apesar de o governo dizer que isso jogará oito milhões de pessoas na miséria, a deputada apelou para um velho chavão: seria preciso ensinar a pescar ao invés de dar o peixe.
O “peixe” que o governo federal dá são R$ 77 mensais. Segundo a deputada, a maior parte dos beneficiários tem outra fonte de renda, o que mostra que ninguém ficaria na miséria caso ficasse sem o programa. Mas o Bolsa Família é exatamente isso: um programa que complementa a renda de pessoas que, tirado esse dinheiro, ficam abaixo da linha da miséria.
E essa linha é extremamente baixa. Para receber o benefício, é preciso ter renda per capita na família de R$ 77. Ou seja: uma família de cinco pessoas teria de ter renda máxima de R$ 385 para ter acesso ao benefício. É dessas pessoas que se quer cortar ao auxílio. São essas pessoas que a deputada diz que não vão ficar na miséria. Por definição, isso está errado.
Maria Victoria não tem culpa de ter nascido rica. Tem todo o direito de tirar proveito do que sua família tem – todo mundo tem, desde que o dinheiro seja obtido licitamente. Tem direito de representar seus eleitores, de ter sua ideologia. Mas a sociedade também tem todo o direito de ver na declaração dela um descolamento impressionante entre o que pensa a elite econômica (e política) do país e a realidade social.
Se há mau gasto, se há fraudes no Bolsa Família, elas devem ser combatidas. Mas isso precisa ser feito com provas. Precisa ser feito com o mesmo cuidado (ou muito mais!) do que teve Ricardo Barros ao votar contra o prosseguimento do processo contra Eduardo Cunha no Conselho de Ética. Se para Cunha ser processado (nem estamos falando de condenado) é preciso ter provas, para o pobre perder seus R$ 77 não é necessário nem indícios?
Os R$ 77 do Bolsa Família são menos de 0,4% do salário de um deputado estadual. Maria Victoria tem todo o direito de receber o que recebe, mesmo que isso tenha a ver muito mais com o que a loteria da vida lhe destinou do que com uma ascensão social – ela nunca precisou “subir”, já nasceu no alto. Mas nada justifica a defesa de um corte que afeta quem mais precisa, de quem pela mesma loteria, nasceu no fundo do poço.