Ontem, escrevi aqui sobre a (lenta) decadência da TV Globo.
Por uma (triste) ironia, no fim do dia foi anunciada a morte da viúva de Roberto Marinho, Lily. Também no fim do dia ficamos sabendo que o Big Brother terá – na próxima edição - um travesti em cena.
Qual a ligação entre os três fatos?
Vou tentar explicar.
Quinze anos atrás, na velha sede paulista da TV Globo, na praça Marechal, deu-se o rebuliço: a direção da emissora no Rio queria a demissão dos responsáveis pela cena “chocante” levada ao ar um dia antes, no “Fantástico”. Qual era a cena “chocante”? O beijo de dois (ou duas) “drag queens”. Um conhecido repórter do programa resolvera mostrar uma festa num evento gay que acontecia em São Paulo: a transmissão era ao vivo e, lá pelas tantas, deu-se a cena (sobre isso, há mais detalhes aqui, no blog “Doladodelá”).
A história que corria pelos corredores da TV na época era a seguinte: Lily Marinho vira a cena no “Fant[ástico” e considerara uma afronta à família brasileira; pediu providências ao Roberto Marinho. E aí vocês imaginam o resto da história. Quem pagou o pato? Hugo Sá Peixoto (cinegrafista que mostrou a cena) e Amaury Trolize (que, além de ótimo cinegrafista e responsável pela coordenação de imagens na Globo, cumprira naquele dia a função de diretor de TV, fazendo no caminhão o corte de imagens). Os dois perderam o emprego. Eram tempos em que drag queens beijando na boca estavam vetadas. Eram tempos em que a voz aristocrática de Lily Marinho ainda se fazia ouvir na poderosa emissora. Eram tempos, também, de uma hipocrisia violenta.
O que dona Lily diria se soubesse (ou se visse) o travesti que Boninho (diretor do Big Brother) resolveu escalar (leiam aqui o texto de Maurício Stycer) pra aumentar a audiência do BBB? Provavelmente, a opinião dela hoje não contaria muito. Nos corredores do poder da Globo, dona Lily já estava morta. Tanto que – contrariando a linha oficial dos filhos de Roberto Marinho – resolveu abrir a velha mansão do Cosme Velho para receber Dilma durante a recente campanha eleitoral.
Não sei se o Brasil ficou um país melhor porque agora a presença de um travesti já não é considerada uma “afronta” na Globo. Provavelmente, sim. O que sei é que hoje o Hugo e o Trolize não perderiam o emprego se filmassem o beijo.
A decadência pode ter suas vantagens: não é preciso mais prestar contas à hipocrisia.
Mais uma página virada.