Ministro da Saúde na primeira gestão Lula e coordenador do programa de governo para a Saúde da candidata Dilma Rousseff, Humberto Costa aponta as diferenças nas visões dos dois principais postulantes à Presidência do país em relação ao setor. Nesta entrevista ao Vermelho, ele questiona o fato de o tucano José Serra tentar se apropriar de políticas que não criou e adverte que o Sistema Único de Saúde é uma construção de muitos governos.
Atual candidato ao Senado por Pernambuco, Humberto destaca os avanços do SUS, em especial nos últimos oito anos, mas aponta ainda muitos desafios. Entre eles, a prioridade é conquistar mais recursos para a saúde. Liderando com folga todas as pesquisas de intenção de voto, o petista defende a regulamentação da Emenda 29 e a aprovação da Lei de Responsabilidade Sanitária. Veja abaixo.
Portal Vermelho: O SUS foi criado há 22 anos. Nesse período houve avanços, mas até agora o sistema não consegue atender à demanda e seus princípios não são respeitados. Por quê?
Humberto Costa: O SUS avançou muito. Incluiu milhões de pessoas que antes da Constituição de 88 eram atendidas pelo serviço de saúde meramente por caridade. Criamos um sistema universal que busca atender a todos de forma igual. Tivemos resultados importantes, como a ampliação da atenção básica, com o Programa Saúde da Família (PSF), que antes não existia.
Também foram criadas políticas de saúde exitosas, como a política nacional de humanização, a política nacional de prevenção a doenças sexualmente transmissíveis – em especial a AIDS -, a política de transplantes, a política de assistência farmacêutica… No governo Lula, os avanços foram ainda maiores com a expansão do PSF, a criação do Brasil Sorridente, o investimento no Sistema Nacional de Transplantes (SNT), Farmácia Popular, além da ampliação do Samu.
Mas, naturalmente, um sistema complexo, que foi implantado de forma imediata, tem muitas limitações. As principais dizem respeito, primeiramente, à falta de recursos, que impede o SUS de cumprir a contento as suas responsabilidades.
Em segundo lugar, há alguns entraves, no que diz respeito a áreas específicas. Entre eles, o atendimento de urgência e emergência de média complexidade e o atendimento especializado são problemas que precisam ser enfrentados e demandam resolver outras questões , como a política de recursos humanos, com a formação de mais profissionais e sua interiorização.
Há problemas também de gestão. Apesar de termos avançado muito, ainda há gastos desnecessários, ineficiência, e esses problemas precisam ser enfrentados. Contudo, o que já foi feito no SUS justifica o fato de ele ser considerado uma das políticas mais exitosas do País.
Vermelho: Como medir essa questão do subfinanciamento?
Humberto: O financiamento do setor saúde no Brasil representa cerca de 8% do PIB. E o gasto privado é maior que o público. Ou seja, as famílias precisam gastar mais do seu orçamento com a saúde, numa proporção em que o gasto privado supera os 55% e o público não chega a 45% do total da Saúde.
E a gente não precisa ir longe para saber que este investimento não é suficiente. Se formos comparar com países da América Latina, só ficamos na frente, no que se refere ao financiamento da Saúde, de dois países: Argentina e Uruguai. Temos que criar mecanismos para sanar os dois problemas: melhorar a qualidade dos gastos e aumentar os recursos. Além disso, o fim da CPMF acabou gerando dificuldade a mais, no que diz respeito aos recursos.
Vermelho: Como tapar o buraco deixado pelo fim da CPMF?
Humberto: A queda da CPMF precisa ser recompensada na saúde de alguma forma, seja com mais recursos de impostos, do orçamento da União, seja pela regulamentação da Emenda 29, que vai determinar o que pode ser enquadrado como gasto na Saúde.
A proposta da Emenda é muito boa, mas é claro que gera ruídos, em parte, porque vai obrigar estados e municípios a cumprirem a obrigação de gastar o percentual mínimo das suas receitas com saúde. E também porque vai mostrar claramente o que são os gastos, ações e serviços na saúde, limitando artifícios contábeis que acabam incluindo, nessa conta, despesas com saneamento e programas assistenciais, e que desviam os recursos do setor de sua função final.
Vermelho: A relação entre municípios, estados e união tem funcionado bem para o SUS?
Humberto: Em muitos aspectos, sim, como na questão da definição dos objetivos estratégicos, no cumprimento do papel constitucional que cada um deles tem e também na criação de um sistema em que estados e municípios tenham autonomia, em especial, no que se refere à distribuição de recursos.
Mas é preciso avançar. E o principal é fazer com que os pactos e os acordos que são celebrados entre os estados, municípios e união, com divisão de responsabilidades, deixem de ser meramente cartoriais e passem a ter força de lei. Por isso, defendemos a Lei de Responsabilidade com a Saúde, ou Lei de Responsabilidade Sanitária, tema que eu pretendo ajudar a construir no Senado.
Vermelho: Como resolver a carência de profissionais e a precarização do trabalho na saúde?
Humberto: Primeiramente, é necessário eliminar a precarização, pelo respeito à adoção dos direitos previdenciários e trabalhistas, em todas as relações de trabalho entre o setor público e os profissionais. E precisamos, para sanar a carência, de mais profissionais formados, entre técnicos e profissionais de nível superior, que possam, inclusive, vivenciar um processo de educação continuada.
É importante aprimorar o currículo dos profissionais, fazendo com que eles sejam formados para atender às necessidades da população. Além disso, podemos criar alguns mecanismos, como o serviço social obrigatório, para estabelecer a interiorização dos profissionais e receber destes profissionais uma contrapartida pelos gastos públicos com a sua formação.
Vermelho: Grupos privados de alguma forma atrapalham a evolução do SUS?
Humberto: Pela Constituição brasileira, a atividade privada é possível tanto na área de saúde suplementar, como também no credenciamento de serviços privados pelo SUS. Nós achamos que é perfeitamente possível a atuação privada no sistema. Agora, é importante que haja uma forte regulação do Estado, em relação ao setor privado. As agências cumprem esse papel, é o caso Agência Nacional de Saúde (ANS) e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Vermelho: A dependência de produtos e tecnologias estrangeiras atrapalha o SUS?
Humberto: Sem dúvida, o Brasil ainda é muito dependente neste sentido. Especialmente no que se refere às novas tecnologias, e é claro que isso interfere no SUS. Principalmente, porque somos sempre obrigados a incorporar essas tecnologias sem que novos recursos sejam incorporados ao SUS. Além disso, quando não dominamos esta tecnologia, a gente deixa de ter um controle estratégico sobre algumas áreas fundamentais para a própria soberania do país.
Vermelho: O tema da Saúde tem sido muito abordado nesta campanha presidencial pelo candidato José Serra, que se apresenta como o pai de várias ações. ..
Humberto: Inegavelmente, todos os governos que passaram deram uma contribuição ao SUS. Todos colocaram um tijolo nessa construção importante que é o SUS, que não foi fruto exclusivo de nenhum governo e no qual todos tiveram méritos. O que me parece equivocado, na abordagem do candidato Serra, é que ele procura se apropriar de determinadas políticas, que não foram criadas por ele, mas que ele pretende apresentar como iniciativas suas, apesar de que ele possa ter contribuído para elas terem se desenvolvido.
É o caso de ele dizer que criou o Saúde da Família, que criou o genérico e que é o pai do programa de combate a AIDS, o que não é verdadeiro. Mas, naturalmente, ele teve seu mérito de contribuir também para que o SUS crescesse e avançasse.
Vermelho: Qual a principal diferença na forma como Serra e Dilma tratam a saúde?
Humberto: A rigor, todo mundo defende o SUS. Agora, claro que existem diferenças entre os dois projetos. Parte dos tucanos defende a flexibilização de alguns direitos universais do SUS. Embora o Serra não tenha se posicionado oficialmente assim, alguns projetos de partidários dele já circularam no Congresso neste sentido, inclusive ao longo do governo FHC.
Outra diferença básica entre o projeto de Dilma e o de Serra diz respeito à gestão pública dos serviços de saúde. Os tucanos têm uma postura de delegar ao setor privado ações, especialmente na gestão de serviços, que comprometem o controle público. Um exemplo disso é a maneira como eles utilizam as parecerias com as Organizações Sociais (OS).
Vermelho: Quais os principais desafios para o próximo presidente do Brasil?
Humberto: O principal desafio do próximo governo é ter dinheiro para fazer o sistema funcionar. E isso vai ser obtido pela regulamentação da Emenda 29. E o próprio governo deve estabelecer, dentro do seu orçamento global, mais recursos, com a priorização do setor Saúde.
Afora isso, a gente tem que resolver os problemas de acesso, criar novos serviços para atender às demandas da população, especialmente na área de média complexidade, o atendimento de urgência, o atendimento especializado. Também temos que melhorar a política de recursos humanos e adotar novos modelos de gestão para melhorar a eficácia do Sistema.
Da Redação,
Joana Rozowykwiat