Finalmente chegamos à encruzilhada que se podia vislumbrar lá atrás, quando o Partido dos Trabalhadores chegava ao poder e, a partir de concessões que passara a fazer aos “mercados” e à direita, despertava nos setores partidários mais ideológicos o temor de que a legenda terminaria por trair os ideais que lhe ensejaram a criação.
Apesar da construção de um certo senso comum nesse sentido, discordo de que tal tenha ocorrido. As concessões foram necessárias. O Brasil que Lula passou a governar a partir de 2003 era prisioneiro de uma fragilidade externa que tornaria um rotundo fracasso um governo hostil aos tais “mercados”.
Naquele 2003, o PT não poderia declarar moratória da dívida externa, atacar os lucros de um setor bancário em frangalhos, impor aumentos salariais que um empresariado descrente, assustado e descapitalizado não poderia suportar.
A Globalização tornara-se uma realidade. O capitalismo “derrotara” o socialismo e, agora, era preciso sobreviver na nova realidade que se impunha ao mundo ou deflagrar um processo de derrubada do novo governo trabalhista, provavelmente com o concurso dos militares, que olhavam com lupa a nova experiência político-administrativa que se inaugurava.
O capitalismo social de Lula foi um estrondoso sucesso. Usando as ferramentas de um modelo que dominara o mundo, respeitando as regras do jogo, logrou romper amarras que nada tinham que ver com o capitalismo, como uma espécie de obrigatoriedade de manter relações comerciais preferenciais com os Estados Unidos.
Ora, nunca existiu, no manual capitalista, a obrigatoriedade de uma economia priorizar relações comerciais com a potência hegemônica. Lula, pois, fez um governo capitalista, mas independente da Europa e dos Estados Unidos.
Por tal ousadia, Lula pagou – e ainda paga – um preço alto. No entanto, hoje, enquanto o mundo rico se debate em agonia, com os povos desses países perdendo qualidade de vida, mergulhando no desemprego e na convulsão social, países latino-americanos como o Brasil, que abandonaram o barco primeiro-mundista, distanciam-se do caos.
“Mascate” do capitalismo verde-amarelo, o ex-presidente operou esse milagre peregrinando pelo mundo nas asas de uma premissa envolta em inquestionável sentido: os dólares asiáticos, africanos, do Oriente Médio ou de qualquer parte eram e continuam sendo tão verdes quanto os dos americanos e europeus.
Nesse interim, a governança do país enveredava pelo capitalismo ao fortalecer o sistema bancário, garantindo o direito de propriedade, sendo ponderada em demandas salariais respeitadoras das possibilidades das empresas – que mal se recuperavam da hecatombe tucana que vigeu entre 1997 e 2002.
Ao mesmo tempo, Lula erigiria um sistema de proteção social verdadeiro, em lugar do arremedo de políticas sociais da era tucana que se baseava em ideias corretas, mas nas quais o governo não investia de verdade.
Com programas sociais verdadeiros e política econômica capitalista, mas não entreguista, o país floresceu. Tornou-se uma economia dinâmica, respeitada, com uma confiança internacional que se traduz pelo grau de investimento que lhe foi concedido pelas agências de classificação de risco, que cresceu o dobro do que crescera na era tucana e com metade da inflação média daquele período, sem falar nos avanços sociais mensuráveis e representativos, em proporção adequada ao tamanho da iniquidade social vigente.
Hoje, o Brasil é uma economia sólida, diversificada, que caminha para o meio trilhão de dólares de reservas cambiais, com inflação sob controle – apesar dos picos –, com uma revolução social em curso e com pobreza e desigualdade caindo a olhos vistos ano após ano.
O Brasil de 2013, pois, tanto no aspecto econômico quanto no social pouco lembra o de dez anos antes. Não padece mais das mesmas fragilidades econômicas e, ao invés de concentrar renda, distribui. Para avançar mais a partir de agora, no entanto, terá que contrariar cada vez mais os caprichos do mercado e das elites.
Contudo, sempre há que deixar claro que não se prega, aqui, uma revolução socialista com violação ao direito de propriedade ou a quaisquer outros valores “sagrados” do capitalismo; o que se prega é que os mecanismos de concentração de renda sejam paralisados e desmontados.
A primeira década de governança progressista fez o que tinha que fazer e na velocidade que tinha que fazer, mas, a partir de agora, o ritmo se torna lento demais. Mudanças estruturais que foram postergadas em nome da fragilidade econômica e das desconfianças iniciais dos Donos do Poder, agora têm que entrar na agenda pública.
O formato do sistema político, as relações entre os poderes, a democratização da comunicação de massas – bem como seu enquadramento ao interesse público –, a regulação da distribuição agrária no país e tantas outras questões precisam ser alvo de reestruturação. Tudo isso não pode continuar igual a quando o Brasil era um país em eterna crise e sem perspectivas.
Essa obra – até aqui vitoriosa – de soerguimento nacional partiu de poucas cabeças. Lula e José Dirceu foram os grandes arquitetos da recuperação econômica e social do país.
O primeiro, no entanto, não pôde dar prosseguimento à própria obra pelo fim de seu mandato. O segundo, talvez mais vital do que o primeiro para o projeto de país que fora pensado, foi literalmente destruído pela direita não pelos seus defeitos, mas por seus méritos.
Dilma Rousseff chega ao poder e se descobre que não poderia ser mais distante da realidade a ideia de que seria “um poste”. Cheia de ideias próprias, imprime ao seu governo um ritmo algo diferente do de Lula nos seus anos finais – do ponto de vista político, ela age, após dez anos de PT no poder, como se tivesse chegado hoje.
Politicamente inexperiente, apesar do massacre do mensalão entre 2005 e 2010, acha que pode se entender com os Donos do Poder aproximando-se de seus impérios de comunicação, de forma a que aceitem o processo de distribuição de renda que incrementaria.
Vale a pena discorrer um pouco sobre esse processo
O de Dilma está sendo mais rápido do que o de Lula, até pelas condições que o ex-presidente deixou para que tal ocorresse. A redução nos lucros dos bancos e no preço da energia elétrica é redistribuição de renda na veia. Grupos econômicos os mais privilegiados perderam fortunas, as quais foram divididas entre dezenas e dezenas de milhões de brasileiros.
Que não se enganem os que torcem contra: esse processo se refletirá em estatísticas quando estas apurarem a distribuição de renda ocorrida nos últimos anos.
Todavia, políticas públicas que estão gerando tal distribuição podem ser revertidas por governos sucedâneos. Ou seja: o processo redistributivo não está se fazendo acompanhar de mudanças estruturais que tornarão mais difícil, quando a direita retomar o poder – e seria absurdo ignorar que isso ocorrerá um dia –, desfazer o que foi feito, reconcentrando a renda de forma lenta, gradual e contínua sob silêncio cúmplice da imprensa afinada consigo ideologicamente.
Vale uma reflexão: como se poderia denunciar, em um futuro em que a direita esteja no poder, que medidas para promover concentração de renda estejam sendo adotadas? Se concessões públicas de rádio e televisão voltarem a defender o governo como faziam no tempo de FHC, estará implantada uma ditadura no Brasil.
Seja como for, todos os fatores supra elencados constroem o cenário com que o país vai chegando ao processo eleitoral de 2014.
Políticas sociais de caráter emergencial são bem vindas, mas o que mudará de fato a face deste país? A condução da economia já provou ser eficiente no que interessa à sociedade, promover bem-estar com criação de empregos e aumento da renda. O que haverá que discutir no ano que vem, portanto, será redistribuição dessa renda.
A sociedade precisa entender que tudo que permanece ruim após a década de ouro que o Brasil vem experimentando a partir de 2003 se deve à insuperável concentração de renda brasileira, e que, sem atacar com mais ímpeto essa chaga, não será possível avançar de forma irreversível.
Terá Dilma clarividência e competência para explicar à sociedade que há hoje no Brasil uma guerra entre uma minoria que não quer perder privilégios e uma imensa maioria que quer apenas ter um mínimo de equilíbrio de oportunidades, de forma que se crie uma taxa minimamente aceitável de mobilidade social?