Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

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domingo, 27 de outubro de 2013

Os Últimos Párias da Terra




Mauro Santayanna

Há alguns dias, o mundo acompanha, com atenção, o drama de duas meninas. Uma, chama-se Leonarda. A outra, Maria. Leonarda, de quinze anos, foi tirada à força de dentro de um ônibus, em uma excursão escolar, e expulsa da França, junto com sua família.

Maria, de quatro, foi encontrada, há alguns dias, em uma cidade no interior da Grécia, e retirada do casal com que estava por suspeita de rapto.

Leonarda é morena. Maria é loira.

A primeira nasceu na Itália, e foi criada na França. Mas está em Kosovo, país em que nunca viveu, porque seu pai é originário dali, da antiga Iugoslávia. Seu irmão, Daniel, nasceu em, Nápoles, mas mora na Ucrânia. Sua irmã, Erina, mora na França, mas nasceu também na Itália, assim como Maria, que tem 17, Rocky, de 12, Ronaldo, de 8, e Hassan, de 5 anos. Só a caçula, Medina, nasceu na França.

Maria, encontrada com uma família em Farsala, na Grécia, pode ser filha – descobriu-se agora, de um casal de búlgaros que vive em um gueto da cidade de Nikolaevo. O nome deles, curiosamente, é Rusev, quase como o da Presidente Dilma.

O casal Dibrani, pais de Leonarda, têm oito filhos. Os Rusev, pais de Maria, tem dez, e a mãe alega que teria cedido a filha a um casal na Grécia, quando morou no país, porque não tinha como dar-lhe de comer.

Mas como é isso, em que tempo estamos? De que continente falamos? Da Europa do Século XXI, que manda sondas ao espaço, e se orgulha de sua alta renda per capita e do seu Desenvolvimento Humano? Ou da Europa do passado, com suas enormes famílias, seus guetos, sua fome, e os milhões de miseráveis dos séculos XVIII e XIX?

Falamos, infelizmente, de agora. Na Europa de hoje, Leonarda e Maria não são duas meninas normais. Não têm passaporte, nem pátria, nem futuro. São ciganas. E em seu sangue carregam o destino dos últimos párias da terra.

É certo que há outros deserdados, perseguidos por questões políticas ou religiosas, ou por serem minorias em seu próprio território. Mas todos têm sua terra. A lembrança do país onde nasceram, a esperança de um dia ter um documento, de voltar a ser alguém.

Em uma Europa racista, cada vez mais xenófoba, e que não reconhece o direito de jus soli, mas, na maioria dos países, apenas o de jus sanguinis (quando não basta nascer em um determinado país para adquirir a nacionalidade), os ciganos vagam, como fizeram nos últimos mil anos, sem eira nem beira, ao sabor do estado de espírito de quem manda no país em que estejam, e não podem criar raízes, nem quando deixam de agir como nômades.

Até o final da Segunda Guerra Mundial, os ciganos compartilhavam seu destino com os judeus.

Com eles, eram expulsos, de um país para o outro. Com eles, foram espancados e roubados, desde que deixaram a índia, rumo ao Ocidente, há cerca de mil anos.

Em 1925, os roms passaram a sofrer, como os judeus, as restrições das Leis de Nuremberg para a Proteção Proteção do Sangue, que proibia o casamento entre alemães e "não-arianos".

Em 1937, a Lei de Cidadania Nacional relegou os ciganos e os judeus à condição de cidadãos de segunda classe. E Himmler emitiu decreto que chamou de "A luta contra a praga cigana", que solicitava que toda informação sobre ciganos fossem mandadas para o Escritório Central do Reich.

Se os judeus tiveram a Kristallnacht, com a quebra de centenas de negócios e a queima de Sinagogas, os roms tiveram a “semana de limpeza cigana” de 12 de junho e 18 de junho de 1938.

Se os judeus foram sistematicamente perseguidos e mortos, aos milhões, calcula-se que, nos campos de extermínio e nas mãos dos “einzatsgruppen”, principalmente na Europa do leste, morreram um milhão e quinhentos mil roms.

O primeiro teste do gás Zyklon B, usado pelos alemães nas câmaras de gás, foi feito com 250 crianças ciganas, em janeiro de 1940, no campo de concentração de Buchenwald.

Ao contrário dos hebreus, os ciganos, no entanto, nunca tiveram um Deus que lhes desse terra prometida.

Os judeus fundaram Israel.

Os roms continuam, sem pátria e sem destino, a ser discriminados, perseguidos e mortos – por doença e inanição.

O leitor preste atenção. Os meninos e as meninas ciganas são os únicas, na Europa, que vivem em guetos exclusivamente étnicos. Os dez irmãos de Maria Rusev dormem todas em um cômodo de chão batido em Nikolaev.

Nos subúrbios de Bucarest, de Sofia, de Budapest, ou nas fotos e vídeos da internet, é fácil reconhecer as crianças ciganas. São as únicas (como mostra a foto que mostra dois dos irmãos de Maria) que trazem a barriga inchada por causa dos vermes, e sempre, na mão – devido à fome – um pedaço de pão.

terça-feira, 30 de abril de 2013

DESDE QUANDO EXERCER MAIORIA É ANTIDEMOCRÁTICO?


segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

#DIADOBASTA CONTRA LULA FRACASSA MAIS UMA VEZ


segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Indígena dá um pito em repórter da Globo News





A opinião econômica particular vendida como de interesse geral

 
O jornalismo econômico brasileiro, a exemplo do norte-americano, está dominado pela opinião de economistas de bancos e de grandes corporações. Eventualmente, aparece um professor ou um especialista independente para fazer algum comentário, mas em tempo ou espaço suficientemente curtos para não permitir mais do que legitimar a presença dominante dos primeiros nos noticiários de jornal e televisão. Com isso a sociedade acaba com uma visão distorcida da economia política, mascarada que fica pelo viés dos negócios de curto prazo.
Galbraith, com sua fina ironia, costumava dizer que, em matéria econômica, não se devia levar muito a sério a opinião de quem tem interesse próprio em jogo. Ainda há pouco assisti no Jornal da Globo a uma “especialista” culpando o intervencionismo do Governo pela queda das ações das empresas do setor elétrico: ela estava visivelmente indignada com a decisão governamental de reduzir as tarifas elétricas, afetando a rentabilidade das empresas do setor, e não fez qualquer menção ao que isso representava de positivo para a sociedade e a economia. Claro, ela ou sua empresa certamente tem ações das elétricas!
Sou de um tempo em que, no jornalismo econômico, se separava claramente negócios de economia política. Fui subeditor de economia do Jornal do Brasil na segunda metade dos anos 70, e, depois, repórter de economia da Folha na primeira metade dos anos 80: não me lembro de uma única vez, nesses dois jornais, em que, por iniciativa própria ou por instrução da direção, tenha entrevistado um economista de banco. É verdade que, na cobertura de bolsa, havia repórteres que se referiam a “fontes” não identificadas para empurrar ações para cima ou para baixo. Mas isso não era economia política. Era corrupção mesmo.
Em 1978, meu editor no JB era Paulo Henrique Amorim. Ele tirou as greves do ABC das páginas de Polícia e as trouxe para a Economia. Fui encarregado de editá-las. Foram 40 dias e 40 noites de greve, o tempo das chuvas de Noé, em plena ditadura. A gente sentia que era algo importante, mas não podíamos adivinhar que ali estava o início do fim do autoritarismo. Quais eram os nossos entrevistados na época? Empresários com liderança no setor, líderes trabalhistas, economistas independentes, professores, ex-ministros, autoridades etc etc. Não se ouvia economista de banco que viesse a defender como se fosse de interesse geral assunto de seu interesse.
Na imprensa norte-americana, quando alguém que tem interesses específicos trata de assuntos econômicos de interesse geral, é costume identificá-lo como interessado imediato. Há um certo escrúpulo em misturar as duas coisas. Claro, ninguém põe em dúvida que um jornal de direita, como Wall Street Journal, ou liberal, como The New York Times, defendam no essencial os interesses capitalistas. Mas isso é feito abertamente, nas páginas editoriais, e não de forma camuflada numa entrevista ou num artigo vendido como de interesse geral. Nesse último caso, prevalece a opinião dos ideólogos, não dos economistas de mercado.
Há uma diferença sutil entre as duas formas de jornalismo: uma coisa é deduzir o interesse específico do interesse geral, e outra, bem diferente, é inferir o interesse geral a partir do interesse específico. No primeiro caso, há uma justificação ideológica de princípio do interesse particular no contexto mais amplo do capitalismo. É a forma padrão americana. Noutro, há uma racionalização do interesse geral a partir do particular. Trata-se de um jornalismo econômico mais primitivo que se traduz por uma manipulação ideológica disfarçada já que evita apresentar-se como defesa pura e simples do sistema capitalista.
Há um nível de manipulação ideológica menos disfarçado, sobretudo em televisão, quando âncoras de noticiário assumem, eles próprios, a “interpretação” das notícias dando-lhes maior ou menor ênfase de acordo com seu juízo subjetivo. Sabemos que aquilo é um teatro, pois tudo foi preparado e escrito previamente, mas da forma como aparece na tela o teatro sugere o mundo real.
Aqui, de novo, é o Jornal da Globo (tardio, portanto mais dedicado às elites) que me vem à mente: ao noticiar a inflação do ano passado, William Waack, que pessoalmente não parece entender nada de economia (sei disso porque trabalhamos um curto espaço de tempo juntos, no passado), fez um editorial agressivo contra o Governo, como se tivesse havido total descontrole dos preços. No entanto, como se sabe, a inflação esteve perfeitamente dentro da normalidade em função das margens da meta. A diatribe não passou de uma agressividade gratuita em relação a uma política econômica que, se não está totalmente correta, pode ser consertada numa direção que, por certo, não é a direção que William Waack quer.
J. Carlos de Assis, Economista, professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus”, editado pela Civilização Brasileira.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Movimentos Sociais devem ir à rua denunciar rendição do STF


O visível nervosismo da ministra do STF Rosa Weber ao proferir seu voto pela condenação do ex-presidente petista da Câmara dos Deputados João Paulo Cunha denuncia um fato inédito na República – ao menos ocorrendo de forma tão desabrida: a Suprema Corte de Justiça do país se transformou em marionete de meia dúzia de mega empresários do setor de comunicação.
A perplexidade dos meios jurídicos com os motivos alegados pelos ministros que condenaram João Paulo com base em “verossimilhança” que dizem enxergar nas acusações que lhe foram feitas é tão grande que na edição de hoje (29.08) da Folha de São Paulo saiu artigo de um professor de Direito Penal que assinala “risco à Justiça” por conta dessa condenação.
Antes de prosseguir, reproduzo artigo do professor de Direito Penal da FGV do Rio Thiago Bottino
—–
FOLHA DE SÃO PAULO
29.08.2012
Relativizar exigência de prova põe justiça em risco
OS CRITÉRIOS QUE ORIENTAM ESSA ANÁLISE PROVÊM DA FORMAÇÃO JURÍDICA E DA TRAJETÓRIA DE CADA JULGADOR
THIAGO BOTTINO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Código de Processo Penal diz que o juiz deve condenar um acusado com base nas provas. No caso do mensalão há uma gama enorme de provas: documentos, depoimentos, perícias e laudos. Todos os julgadores olham o mesmo enorme mosaico de elementos e a partir dele tomam uma decisão. Esse processo é feito em etapas.
Em primeiro, buscam provas que tenham um “certificado de origem” (não podem ser obtidas de forma ilícita, devem ser produzidas segundo as regras processuais).
Uma vez admitidas, podem passar à próxima etapa. Ainda assim, são milhares de provas de consistência e natureza diferenciadas.
A segunda etapa é da seleção. Alguns ministros terão seu olhar atraído para determinadas provas e nesse processo não verão outras. Daí os debates entre eles acerca de um fato ter sido provado ou não. Foi o que aconteceu quando o ministro Ricardo Lewandowski mudou seu voto ao considerar o que Joaquim Barbosa arguiu quanto ao bônus de volume.
Na terceira etapa, as provas são confrontadas. Entre aquelas selecionadas, ainda há contradições. As provas “brigam”: testemunhas dizem coisas opostas.
Desse confronto sai uma decisão: a versão convincente para o julgador. Os critérios que orientam essa análise são ocultos, provêm da formação jurídica e da trajetória profissional e pessoal de cada julgador, de sua avaliação sobre a força de cada prova.
Mas a decisão está sempre apoiada em provas. Barbosa escolheu o laudo dos peritos do TCU. Lewandowski, a decisão dos ministros do TCU.
Não se deve condenar com base em indícios, probabilidades, estranhezas, coincidências ou presunções. São como areia movediça na qual afunda a própria justiça da decisão. Diminuem a impunidade, mas aumentam o risco de condenações injustas.
O processo do mensalão comprova isso. O ministro Luiz Fux disse que é possível flexibilizar garantias. Mas dizer que é preciso relativizar a exigência de provas é diminuir o esforço que relator e revisor fizeram para indicar as bases de sua convicção.
Cada um selecionou, valorou e escolheu elementos diferentes, pois há provas para todos os gostos. Mas ambos apontam exatamente quais depoimentos, laudos e decisões servem de apoio para as decisões. E assim legitimam e explicitam suas posições.
THIAGO BOTTINO é professor de direito penal da FGV Direito, do Rio
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A perplexidade que vai se espalhando com a rendição escancarada da maioria dos ministros do Supremo aos ditames midiáticos deriva não apenas da condenação de João Paulo Cunha. Antes, vêm a escandalosa ultrapassagem do julgamento do “mensalão tucano” (mais antigo) pelo julgamento do “mensalão petista” e a negativa de desmembramento do processo “petista” que foi concedido pelo STF ao processo “tucano”.
Vai se confirmando acusação que o ministro Ricardo Lewandowski fez em privado ao STF em 2007 e que acabou se tornando pública porque o juiz estava sendo espionado pela Folha de São Paulo em sua intimidade. Repórter daquele jornal o ouviu dizer ao telefone em um restaurante que a Corte aceitou indiciar José Dirceu porque a mídia lhe pôs “faca no pescoço”.
Temos então no Brasil, hoje, uma Justiça para petistas e outra para tucanos. Ou, melhor dizendo, uma Justiça para os amigos e outra para os inimigos da Globo, da Folha, do Estadão e da Veja.
No caso dos amigos da mídia, a Justiça concede tudo, amacia, absolve, engaveta; no caso dos inimigos, condena sem provas e inverte o instituto In Dubio Pro Reo (na dúvida, a favor do réu). Como se sabe, o Direito reza que se só existem indícios contra alguém não se pode condená-lo com base no que parece que fez, com base em subjetividade absoluta.
A voz trêmula e hesitante de Rosa Weber ou o malabarismo retórico de Luiz Fux deixaram claro que eles sabiam o que estavam perpetrando e tentaram, clara e excessivamente, explicar o inexplicável.
Pouco antes de começar o julgamento do mensalão, houve troca de presidente da Central Única dos Trabalhadores. O presidente que assumiu, o sindicalista Wagner Freitas, naquela oportunidade afiançou que a CUT e outros movimentos sociais iriam às ruas caso o STF cedesse à mídia e fizesse um julgamento político. Pois bem: a mídia acaba de se assenhorar da Justiça brasileira, adquirindo, assim, o poder de condenar seus inimigos e absolver seus amigos, como se vê nos mensalões “petista” e “tucano”.
É óbvio que não se vai conseguir mudar os votos do STF. Está claro que, à exceção de Lewandowski e de José Antônio Dias Tóffoli, os outros ministros vão atuar como marionetes das famílias Marinho, Frias, Civita e Mesquita e não haverá manifestação que os recoloque na trilha do Direito.
Para que ir à rua, então? Simples: para denunciar. CUT, MST, UNE e tantos outros movimentos sociais têm meios de fazer explodirem manifestações por todo país. Nesses atos, deve-se explicar à sociedade nas ruas o casuísmo do STF e por que ele está ocorrendo.
Mas não é só. Esse deve ser o primeiro passo de um amplo movimento político de reação ao verdadeiro golpe de Estado que está em curso no Brasil.
As condenações sem provas de cidadãos pela mais alta Corte de Justiça do país têm que gerar uma reação política de peso, do contrário se instalará no Brasil a primeira ditadura midiática formal de que se tem notícia, onde inimigos da mídia são mandados para a cadeia por determinação de editorema direitarialistas, colunistas e âncoras de telejornal.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Quanto mais rico, pior

O título do texto não é só uma provocação e um exagero completo. Agora mesmo surgiu indício científico de que o dinheiro, ao invés de tornar a pessoa melhor, freqüentemente pode torná-la bem pior – ao menos do ponto de vista intelectual.
Muitos ficarão surpresos. Ora, como o dinheiro pode tornar alguém mais burro se permite ao endinheirado pagar por educação de melhor qualidade?
Burrice e inteligência são conceitos vagos. Quem já não julgou “burro” alguém com enorme bagagem de diplomas acadêmicos? Quem já não se espantou com a sagacidade e com a clarividência de alguém sem instrução formal e de origem pobre?
Em termos de inteligência política, ao menos, ter dinheiro parece danoso. É o que mostra pesquisa Datafolha recém divulgada pelo jornal Folha de São Paulo. A sondagem quis saber a opinião do eleitor sobre o horário eleitoral na TV e no rádio.
Apesar de o Datafolha mostrar que 64% dos paulistanos apóiam a propaganda eleitoral “gratuita” nos meios eletrônicos e que apenas 32% querem que seja extinta, entre os que têm renda acima de dez salários mínimos o percentual contrário à propaganda chega a 43%.
Ao ler sobre essa pesquisa me veio à mente um amigo que tem instrução formal e muita grana no banco, sem falar do vasto patrimônio. Para ele, política é uma brincadeira, um fla-flu. Discute o assunto seriíssimo sem qualquer compromisso com a seriedade.
Como quase todo paulistano de classe média alta, esse amigo é antipetista até a raiz dos cabelos – meu filho é mesário há várias eleições em um bairro desse estrato social e relata que, ali, a direita costuma ganhar com até 90% dos votos. Serra, em 2010, teve 93%.
Até aí, tudo bem. Por óbvio, não se sugere, aqui, que só quem tem inteligência política são os simpatizantes do PT. O problema do sujeito é outro, é o seu descompromisso com fatos e com a seriedade que o assunto requer.
Anda sempre com um jornal da direita midiática a tiracolo (Estadão ou Jornal da Tarde ou Folha de São Paulo), quando não carrega a Veja. Sai por aí vomitando acusações contra o PT e, quando perguntado se não vê corrupção nos partidos que apóia, muda de assunto.
Liguei para o amigo após ler a tal pesquisa Datafolha. Perguntei, sem falar da pesquisa, sua opinião sobre o horário eleitoral. A resposta era previsível: quer acabar com ele, pois decide seu voto pela orientação que recebe da “imprensa”.
Perguntei se não era melhor, então, acabar com as eleições e delegar à imprensa a prerrogativa de escolher parlamentares e chefes do poder Executivo (prefeitos, governadores e presidentes). A resposta foi a de que “Até que não seria má idéia”.
Poucos dias antes, o amigo foi me visitar em meu escritório. Já entrou cantarolando o jingle de José Serra. Fitei-o demoradamente enquanto refletia sobre sua postura. Decidi ir mais fundo em seu ideário político.
Quis saber se estava satisfeito com São Paulo. Respondeu que adora a cidade. Expliquei que não me referia a isso, que o que perguntara fora se estava satisfeito com a administração da cidade. Resposta: “No meu bairro, sim”.
Então lhe perguntei se achava que os outros bairros estão bons. Respondeu-me que os da periferia continuam uma porcaria, mas que, para ele, o que interessa é onde vive.
Decidi, então, aferir seus conhecimentos sobre seu próprio bairro – de fato, um bairro dito nobre.
Quis saber sobre a limpeza. Começou dizendo que era boa. Como meu escritório fica no bairro em que mora, pedi que viesse à janela e lhe mostrei a rua emporcalhada. A resposta foi a esperada: a sujeira em seu bairro “maravilhoso” é culpa da “baianada”.
Então perguntei sobre a educação pública. Respondeu que nunca precisou da educação pública para os seus filhos, apesar de ter estudado em escola pública. Mas como tem mais de sessenta anos, cursou-a à época em que servia a poucos, mas tinha qualidade.
Agora, pergunto sobre a saúde pública. A resposta é a de que nunca precisou de saúde pública e que seu plano de saúde familiar é “top de linha” – paga inacreditáveis 3,7 mil reais por um plano de saúde para si, a mulher e duas filhas.
E a segurança pública em São Paulo, é boa? Claro que sim. Só não é melhor por culpa de quem mesmo? Adivinhe, leitor, se puder…
Pergunto como a segurança pode ser boa se a sua casa parece um campo de concentração – fica em uma vila particular em que um portão enorme fecha o espaço público, além de grades, fios elétricos e câmeras por toda parte. Mais uma vez, a “baianada” levou a culpa.
Burrice, preconceito, irresponsabilidade… Tudo isso na boca de um ex-juiz do Trabalho, contador formado e que tem conta bancária com quase sete dígitos. Que desculpa tem esse homem para suas opiniões cretinas?
É tudo bem simples: vivemos em um país que está entre os 12 mais socialmente desiguais em um planeta que tem cerca de duas centenas de países. Essa minúscula elite que concentra renda, como ficou demonstrado acima, não precisa do Estado.
Criou-se, entre esse segmento microscópico – e influente – da sociedade, uma fé fervorosa no mais legítimo fascismo. Quer, no mínimo, deportar os nordestinos excedentes aos que necessita como empregados domésticos, garçons, manobristas, porteiros etc.
Alguns devem ter visto, aliás, entrevista que uma socialite chamada Anna Maria Corsi deu à mesma Folha de São Paulo, entre outras congêneres que também se manifestaram. A mulher disse, com todas as letras, o que afirmo no parágrafo anterior.
A mesma coisa é o meu amigo supracitado – que é infinitamente menos rico, mas igualmente preconceituoso. Aliás, mais radical, pois prega que coloquem todos os nordestinos “no paredão” e “passem fogo”.
“Horário eleitoral pra quê?”, diz o amigo reacionário. Segundo ele, os jornais já dizem quem é o candidato que “vai defender a gente dos comunistas que querem dar aos baianos indolentes o que conseguimos com nosso suor”.
Quis perguntar como ele pode ter “suado” para conseguir seu patrimônio se herdou tudo do pai, mas desisti. Vivo em um bairro de classe média alta – apesar de não ser dessa classe – e não posso brigar com a vizinhança toda.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Preconceito racial e racismo institucional no Brasil

Preconceito racial e racismo institucional no Brasil
No Brasil, os negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas
por Márcia Pereira Leite
“Na primeira vez em que estive aqui, em 1987, fiquei chocado ao ver que na TV, em revistas, não havia negros. Melhorou um pouco. Mas há muito a fazer. Quem nunca veio ao Brasil e vê a TV brasileira via satélite vai pensar que todos os brasileiros são loiros de olhos azuis.” (Spike Lee)1
 O comentário do cineasta norte-americano Spike Lee, em recente visita ao Brasil para filmagem do documentário Go Brazil Go, no mesmo período em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgava a constitucionalidade das cotas raciais em universidades públicas, despertou várias discussões na imprensa e nas redes sociais sobre o racismo na sociedade brasileira. Desses debates, é possível depreender quanto ainda persiste do mito de que o Brasil seria uma “democracia racial” em que, a despeito do preconceito, não haveria nem o ódio nem a segregação que caracterizaram o regime do apartheid. Nosso racismo combinaria o preconceito de cor e o preconceito de classe, diluindo-se no caso de negros educados e bem-sucedidos e implodindo no samba, no carnaval, enfim, na cultura popular brasileira.
Queremos chamar a atenção para o que ficou ausente nesse (e em outros) debate sobre o racismo no Brasil: os mecanismos de discriminação produzidos e operados pelas estruturas e instituições públicas e privadas que os reproduzem e os fortalecem. Nesta reflexão, propomos seguir o giro da ciência social, nos anos 1960, em sua análise das relações raciais: “Abandonar os esquemas interpretativos que tomam as desigualdades raciais como produtos de ações (discriminações) inspiradas por atitudes (preconceitos) individuais, para fixar-se no esquema interpretativo que ficou conhecido como racismo institucional, ou seja, na proposição de que há mecanismos de discriminação inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”.2
O racismo constitui, como se sabe, um mecanismo fundamental de poder utilizado historicamente para separar e dominar classes, raças, povos e etnias. Seu desenvolvimento moderno se deu com a colonização, com o genocídio colonizador. O racismo é, como disse Foucault, “o meio de introduzir [...] um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. “No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação das raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. [...] o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relação de tipo guerreiro − ‘se você quer viver, é preciso que o outro morra’ − de uma maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o exercício do biopoder.”3
Para o autor, “a especificidade do racismo moderno, o que faz sua especificidade, não está ligada a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligada à técnica do poder, à tecnologia do poder”,4 isto é, ao biopoder enquanto um poder (estatal) de regulamentação que se exerce sobre populações e consiste em “fazer viver e deixar morrer”.
 
(Afrodescendentes protestam contra o baixo número de negros na Fashion Rio Verão 2012/2013)
Racismo institucional no Brasil
O argumento central deste artigo consiste em que, no Brasil, negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas. Trata-se de discriminação racial praticada pelo Estado ao atuar de forma diferenciada em relação a esses segmentos populacionais, introduzindo em nossas cidades e em nossa sociedade, pela via das políticas públicas, “um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”, a faxina étnica.
A expressão, utilizada para evidenciar as relações entre o racismo e as políticas estatais para territórios e populações negras no Brasil, não é mera retórica. Antes, sustenta que as elevadas taxas de homicídio e de “autos de resistência”5 nos territórios de maioria negra, as políticas de remoção e de despejo de sua população, os altos índices de encarceramento de negros pobres, a precariedade das políticas públicas de habitação, saúde e educação para o conjunto da população negra e o desrespeito a suas tradições culturais e religiosas não são sucessivos produtos do acaso ou do mau funcionamento do Estado,6 mas traduzem o racismo institucional que opera no Brasil bem ao largo de qualquer perspectiva de integração social e urbana desses segmentos populacionais pela via da cidadania.
Esse modo específico de gestão estatal das populações negras e de seus territórios de moradia − que “faz viver e deixa morrer”, como diz Foucault − pode ser identificado no âmbito das políticas públicas praticadas pelo Estado brasileiro. Examinemos alguns dados empíricos que expressam o sentido e o escopo de sua formulação e de sua realização.
Os negros são as maiores vítimas de homicídio. No período de 2002 a 2008, segundo dados do Mapa da violência 2011,7 o número de vítimas brancas na população brasileira diminuiu 22,3%; já entre os negros, o número de vítimas de homicídio aumentou 20,2%. Os dados são mais dramáticos quando se consideram os jovens: o número de homicídios de jovens brancos caiu, no período, 30%, enquanto o de jovens negros cresceu 13%, o que significa que a brecha de mortalidade entre brancos e negros cresceu 43%. Se considerarmos os homicídios praticados pelas forças policiais e registrados/encobertos pelos “autos de resistência”, vemos que eles também vitimam mais intensamente os negros: de 2001 a 2007, incidiram sobre esse segmento 61,7% dos homicídios praticados por agentes do Estado.8 Não se trata simplesmente de abuso policial ou de despreparo de policiais em situações de confronto. A consistência dos dados e sua persistência no período, em que pese a redução desses homicídios nos últimos anos em algumas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo,9 indicam uma política de extermínio de negros (jovens, sobretudo) − o “fazer morrer” − praticada pelo Estado, por meio de seus agentes, ou por ele tolerada.10
Mas, como vimos, a tecnologia do poder também “faz viver”, ainda que em distintas condições para esses diferentes segmentos populacionais, brancos e negros. É o que demonstra uma pesquisa realizada em 2003 pelo Ministério da Saúde,11 que revelou indicadores de saúde diferenciados da população brasileira segundo o critério raça/cor. Analisando seus resultados, Meireles12 destaca que 62% das mulheres brancas ouvidas realizaram sete ou mais consultas de pré-natal, enquanto somente 37% das mulheres negras passaram pelo mesmo número de consultas. Talvez por isso a hipertensão arterial durante a gravidez, uma das principais causas de morte materna, tenha sido mais frequente entre as mulheres negras. Além disso, o risco de uma criança negra morrer antes de completar 5 anos por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o risco de uma criança branca falecer pela mesma razão, enquanto o risco de morte por desnutrição é 90% maior entre crianças negras do que entre as brancas.
Já os dados do Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010demonstram que os negros representam cerca de 60% daqueles que, por motivos diversos, não conseguem atendimento no SUS, sendo os maiores percentuais os relativos às mulheres negras − o que, sem dúvida, argumenta o autor, evidencia a precariedade do dispositivo constitucional que assegura a universalidade do direito à saúde no país.
No plano da educação, todas as pesquisas apontam que, ainda que o acesso tenha crescido no país nos últimos anos, a presença dos negros no ensino médio, universitário e na pós-graduação permanece significativamente menor do que a dos brancos – diferença que se torna exponencial nos níveis superiores de formação. A razão, ressaltam, é clara: enquanto os brancos recorrem a escolas particulares (sabidamente, no Brasil, de melhor qualidade) no ensino fundamental e médio e, assim, obtêm melhor formação intelectual para ingresso nas universidades públicas, aos negros restam as escolas públicas (crescentemente sucateadas) nos níveis fundamental e médio e o caminho das universidades privadas. Mesmo com essa estratégia, também no campo da educação as desigualdades raciais são gritantes: em 2008, a probabilidade de um jovem branco, de 18 a 24 anos, frequentar uma instituição de ensino superior era 97,8% maior do que a de uma jovem negra da mesma faixa etária.13
No plano da moradia, os indicadores sociais revelam a mesma diferenciação no interior das políticas públicas, ou como o Estado “faz viver” esses contingentes populacionais. Os territórios de maioria negra nas cidades (favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias) são carentes de equipamentos urbanos e serviços públicos de boa qualidade. O déficit habitacional brasileiro (cerca de 5,5 milhões de unidades) é fruto da ausência de uma política estatal de habitação popular, o que resultou na precariedade que caracteriza as atuais condições de moradia e vida nessas localidades.14
Além disso, em várias de nossas grandes cidades que vêm sendo reestruturadas para favorecer a especulação imobiliária e/ou sediar “grandes eventos” e assim se inserir nos fluxos internacionais de acumulação urbana, essas populações têm sido compulsoriamente removidas das localidades em que sempre viveram, criaram seus laços de vizinhança e parentesco, suas alternativas de sobrevivência (em trabalhos formais, pequenos comércios ou “virações”).15 São, então, reassentadas em locais distantes, ambientalmente precários,16 com infraestrutura urbana de má qualidade, sem redes de sociabilidade nem alternativas de trabalho; enfim, sem lugar na sociedade, sem direito à cidade.

Muito além do preconceito
Os dados analisados e as situações descritas revelam quanto as desigualdades sociais têm cor e estão profundamente enraizadas no racismo institucional que estrutura a sociedade brasileira e se materializa por meio das políticas praticadas pelo Estado, em todos os seus níveis. O que queremos sublinhar ao discuti-los é que, no Brasil, as desigualdades sociais se somam e são elevadas pelas desigualdades raciais. Mais do que isso: as desigualdades raciais estão no cerne do modo de gestão estatal dos territórios de maioria negra e desta população.
Trata-se de um novo modo de gestão estatal de territórios e de populações, que dispensa os tradicionais discursos e práticas de integração à sociedade nacional pela via da cidadania (da educação, do trabalho e dos direitos) por entender que essas populações são desnecessárias ao atual desenvolvimento do capitalismo.
Vivemos, hoje, uma mudança no eixo da atuação do Estado, cujo sentido passou a ser – simplesmente – evitar que essas populações negras, pobres e moradoras em territórios de favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias produzam problemas para a ordem social. Suas estratégias combinam, desde então, diferentes políticas e mecanismos de controle social repressivo (até o “deixar morrer”) com políticas de mera inserção17/mínima sobrevivência (o “fazer viver”), travestidas, no plano discursivo, de integração à cidadania e à sociedade.
No primeiro caso, especialmente nas situações em que a criminalização da pobreza tem sido mais eficiente, o Estado atua promovendo ou acobertando a segregação socioespacial e as políticas de extermínio e de encarceramento, sobretudo de jovens negros. No segundo, atuando nos territórios de maioria negra, o Estado oferece a essas populações uma ilusão de integração por meio de políticas públicas que há muito abandonaram os princípios da universalidade e da justiça (são pontuais, descontinuadas; os serviços e equipamentos que criam são de má qualidade) ou patrocinando projetos sociais realizados por organizações não governamentais que seguem a mesma lógica, além de criminalizar sua clientela, entendida como “população vulnerável ao crime”. Em ambos os casos, o racismo institucional soma-se às desigualdades sociais, raciais e urbanas que historicamente estruturaram nosso país, aprofundando-as e revelando que estamos muito longe da “diluição” dessas desigualdades e da possibilidade de uma efetiva integração social e urbana dos negros pobres na sociedade brasileira.

Márcia Pereira Leite Professora associada da Uerj, pesquisadora do CNPq, membro do Círculo Palmarino/Rio de Janeiro e do Conselho Deliberativo da Fase


Ilustração: Ricardo Moraes / Reuters

1 Fonte: .
2 Valter Silvério, “O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora”, Revista USP, n.42, jun./ago. 1999, p.156.
3 Michel Foucault, Em defesa da sociedade, Martins Fontes, São Paulo, 2002, p.304-5.
4 Idem, p.309.
5 Registro de ocorrência policial, em atividade de policiamento ou mesmo na folga do agente policial, como resistência armada à prisão seguida de morte. Trata-se de um homicídio que não é registrado como tal, por exclusão de ilicitude por parte de seu autor. Nesse registro, a vítima é qualificada como criminosa (usualmente, como traficante de drogas); a morte, como decorrente de atividade legal da polícia; e seu autor, o policial, como vítima de tentativa de homicídio.
6 Cf. “Manifesto contra a faxina étnica”, divulgado no Fórum Social Urbano, no Rio de Janeiro, em março de 2010. Disponível em: .
7 Mapa da violência 2011, Instituto Sangari e Ministério da Justiça.
8 Marcelo Paixão et al. (orgs.), Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010, Laeser/Garamond, Rio de Janeiro, 2011.
9 Esta se deve a situações bastante específicas, que, por razões de foco e espaço, não temos condições de discutir aqui.
10 Cf. Sylvia Amanda da Silva Leandro, O que matar (não) quer dizer nas práticas e discursos da justiça criminal: o tratamento judiciário dos “homicídios por auto de resistência” no Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, PPGD/UFRJ, 2012.
11 Ministério da Saúde, Programa estratégico de ações afirmativas: população negra e aids, Brasília, 2006.
12 Iná Meireles, Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade que exige muita luta contra a faxina étnica, mimeo, 2011.
13 Marcelo Paixão et al (orgs.), op. cit.
14 Cf. Kazuo Nakano, “A produção social de vulnerabilidade urbana”, Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2011.
15 Para a análise do processo de reestruturação e mercantilização de nossas grandes cidades enquanto produção de novas fronteiras urbanas para a expansão da acumulação, cf. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Orlando Alves Santos Junior, “Desafios da questão urbana”, Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2011.
16 Piramba examina esse processo enquanto expressão de racismo ambiental, isto é, das “injustiças sociais e ambientais [que] atingem etnias e populações vulneráveis”. Cf. Paulo Piramba, Anotações sobre o racismo ambiental, mimeo, 2011, p.1.
17 Ver, para a distinção entre integração social e inserção social, no sentido apontado aqui, Robert Castel, As metamorfoses da questão social, Vozes, Petrópolis, 1998.

Preconceito racial e racismo institucional no Brasil
No Brasil, os negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas
por Márcia Pereira Leite
“Na primeira vez em que estive aqui, em 1987, fiquei chocado ao ver que na TV, em revistas, não havia negros. Melhorou um pouco. Mas há muito a fazer. Quem nunca veio ao Brasil e vê a TV brasileira via satélite vai pensar que todos os brasileiros são loiros de olhos azuis.” (Spike Lee)1
 O comentário do cineasta norte-americano Spike Lee, em recente visita ao Brasil para filmagem do documentário Go Brazil Go, no mesmo período em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgava a constitucionalidade das cotas raciais em universidades públicas, despertou várias discussões na imprensa e nas redes sociais sobre o racismo na sociedade brasileira. Desses debates, é possível depreender quanto ainda persiste do mito de que o Brasil seria uma “democracia racial” em que, a despeito do preconceito, não haveria nem o ódio nem a segregação que caracterizaram o regime do apartheid. Nosso racismo combinaria o preconceito de cor e o preconceito de classe, diluindo-se no caso de negros educados e bem-sucedidos e implodindo no samba, no carnaval, enfim, na cultura popular brasileira.
Queremos chamar a atenção para o que ficou ausente nesse (e em outros) debate sobre o racismo no Brasil: os mecanismos de discriminação produzidos e operados pelas estruturas e instituições públicas e privadas que os reproduzem e os fortalecem. Nesta reflexão, propomos seguir o giro da ciência social, nos anos 1960, em sua análise das relações raciais: “Abandonar os esquemas interpretativos que tomam as desigualdades raciais como produtos de ações (discriminações) inspiradas por atitudes (preconceitos) individuais, para fixar-se no esquema interpretativo que ficou conhecido como racismo institucional, ou seja, na proposição de que há mecanismos de discriminação inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”.2
O racismo constitui, como se sabe, um mecanismo fundamental de poder utilizado historicamente para separar e dominar classes, raças, povos e etnias. Seu desenvolvimento moderno se deu com a colonização, com o genocídio colonizador. O racismo é, como disse Foucault, “o meio de introduzir [...] um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. “No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação das raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. [...] o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relação de tipo guerreiro − ‘se você quer viver, é preciso que o outro morra’ − de uma maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o exercício do biopoder.”3
Para o autor, “a especificidade do racismo moderno, o que faz sua especificidade, não está ligada a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligada à técnica do poder, à tecnologia do poder”,4 isto é, ao biopoder enquanto um poder (estatal) de regulamentação que se exerce sobre populações e consiste em “fazer viver e deixar morrer”.
 
(Afrodescendentes protestam contra o baixo número de negros na Fashion Rio Verão 2012/2013)
Racismo institucional no Brasil
O argumento central deste artigo consiste em que, no Brasil, negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas. Trata-se de discriminação racial praticada pelo Estado ao atuar de forma diferenciada em relação a esses segmentos populacionais, introduzindo em nossas cidades e em nossa sociedade, pela via das políticas públicas, “um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”, a faxina étnica.
A expressão, utilizada para evidenciar as relações entre o racismo e as políticas estatais para territórios e populações negras no Brasil, não é mera retórica. Antes, sustenta que as elevadas taxas de homicídio e de “autos de resistência”5 nos territórios de maioria negra, as políticas de remoção e de despejo de sua população, os altos índices de encarceramento de negros pobres, a precariedade das políticas públicas de habitação, saúde e educação para o conjunto da população negra e o desrespeito a suas tradições culturais e religiosas não são sucessivos produtos do acaso ou do mau funcionamento do Estado,6 mas traduzem o racismo institucional que opera no Brasil bem ao largo de qualquer perspectiva de integração social e urbana desses segmentos populacionais pela via da cidadania.
Esse modo específico de gestão estatal das populações negras e de seus territórios de moradia − que “faz viver e deixa morrer”, como diz Foucault − pode ser identificado no âmbito das políticas públicas praticadas pelo Estado brasileiro. Examinemos alguns dados empíricos que expressam o sentido e o escopo de sua formulação e de sua realização.
Os negros são as maiores vítimas de homicídio. No período de 2002 a 2008, segundo dados do Mapa da violência 2011,7 o número de vítimas brancas na população brasileira diminuiu 22,3%; já entre os negros, o número de vítimas de homicídio aumentou 20,2%. Os dados são mais dramáticos quando se consideram os jovens: o número de homicídios de jovens brancos caiu, no período, 30%, enquanto o de jovens negros cresceu 13%, o que significa que a brecha de mortalidade entre brancos e negros cresceu 43%. Se considerarmos os homicídios praticados pelas forças policiais e registrados/encobertos pelos “autos de resistência”, vemos que eles também vitimam mais intensamente os negros: de 2001 a 2007, incidiram sobre esse segmento 61,7% dos homicídios praticados por agentes do Estado.8 Não se trata simplesmente de abuso policial ou de despreparo de policiais em situações de confronto. A consistência dos dados e sua persistência no período, em que pese a redução desses homicídios nos últimos anos em algumas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo,9 indicam uma política de extermínio de negros (jovens, sobretudo) − o “fazer morrer” − praticada pelo Estado, por meio de seus agentes, ou por ele tolerada.10
Mas, como vimos, a tecnologia do poder também “faz viver”, ainda que em distintas condições para esses diferentes segmentos populacionais, brancos e negros. É o que demonstra uma pesquisa realizada em 2003 pelo Ministério da Saúde,11 que revelou indicadores de saúde diferenciados da população brasileira segundo o critério raça/cor. Analisando seus resultados, Meireles12 destaca que 62% das mulheres brancas ouvidas realizaram sete ou mais consultas de pré-natal, enquanto somente 37% das mulheres negras passaram pelo mesmo número de consultas. Talvez por isso a hipertensão arterial durante a gravidez, uma das principais causas de morte materna, tenha sido mais frequente entre as mulheres negras. Além disso, o risco de uma criança negra morrer antes de completar 5 anos por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o risco de uma criança branca falecer pela mesma razão, enquanto o risco de morte por desnutrição é 90% maior entre crianças negras do que entre as brancas.
Já os dados do Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010demonstram que os negros representam cerca de 60% daqueles que, por motivos diversos, não conseguem atendimento no SUS, sendo os maiores percentuais os relativos às mulheres negras − o que, sem dúvida, argumenta o autor, evidencia a precariedade do dispositivo constitucional que assegura a universalidade do direito à saúde no país.
No plano da educação, todas as pesquisas apontam que, ainda que o acesso tenha crescido no país nos últimos anos, a presença dos negros no ensino médio, universitário e na pós-graduação permanece significativamente menor do que a dos brancos – diferença que se torna exponencial nos níveis superiores de formação. A razão, ressaltam, é clara: enquanto os brancos recorrem a escolas particulares (sabidamente, no Brasil, de melhor qualidade) no ensino fundamental e médio e, assim, obtêm melhor formação intelectual para ingresso nas universidades públicas, aos negros restam as escolas públicas (crescentemente sucateadas) nos níveis fundamental e médio e o caminho das universidades privadas. Mesmo com essa estratégia, também no campo da educação as desigualdades raciais são gritantes: em 2008, a probabilidade de um jovem branco, de 18 a 24 anos, frequentar uma instituição de ensino superior era 97,8% maior do que a de uma jovem negra da mesma faixa etária.13
No plano da moradia, os indicadores sociais revelam a mesma diferenciação no interior das políticas públicas, ou como o Estado “faz viver” esses contingentes populacionais. Os territórios de maioria negra nas cidades (favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias) são carentes de equipamentos urbanos e serviços públicos de boa qualidade. O déficit habitacional brasileiro (cerca de 5,5 milhões de unidades) é fruto da ausência de uma política estatal de habitação popular, o que resultou na precariedade que caracteriza as atuais condições de moradia e vida nessas localidades.14
Além disso, em várias de nossas grandes cidades que vêm sendo reestruturadas para favorecer a especulação imobiliária e/ou sediar “grandes eventos” e assim se inserir nos fluxos internacionais de acumulação urbana, essas populações têm sido compulsoriamente removidas das localidades em que sempre viveram, criaram seus laços de vizinhança e parentesco, suas alternativas de sobrevivência (em trabalhos formais, pequenos comércios ou “virações”).15 São, então, reassentadas em locais distantes, ambientalmente precários,16 com infraestrutura urbana de má qualidade, sem redes de sociabilidade nem alternativas de trabalho; enfim, sem lugar na sociedade, sem direito à cidade.

Muito além do preconceito
Os dados analisados e as situações descritas revelam quanto as desigualdades sociais têm cor e estão profundamente enraizadas no racismo institucional que estrutura a sociedade brasileira e se materializa por meio das políticas praticadas pelo Estado, em todos os seus níveis. O que queremos sublinhar ao discuti-los é que, no Brasil, as desigualdades sociais se somam e são elevadas pelas desigualdades raciais. Mais do que isso: as desigualdades raciais estão no cerne do modo de gestão estatal dos territórios de maioria negra e desta população.
Trata-se de um novo modo de gestão estatal de territórios e de populações, que dispensa os tradicionais discursos e práticas de integração à sociedade nacional pela via da cidadania (da educação, do trabalho e dos direitos) por entender que essas populações são desnecessárias ao atual desenvolvimento do capitalismo.
Vivemos, hoje, uma mudança no eixo da atuação do Estado, cujo sentido passou a ser – simplesmente – evitar que essas populações negras, pobres e moradoras em territórios de favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias produzam problemas para a ordem social. Suas estratégias combinam, desde então, diferentes políticas e mecanismos de controle social repressivo (até o “deixar morrer”) com políticas de mera inserção17/mínima sobrevivência (o “fazer viver”), travestidas, no plano discursivo, de integração à cidadania e à sociedade.
No primeiro caso, especialmente nas situações em que a criminalização da pobreza tem sido mais eficiente, o Estado atua promovendo ou acobertando a segregação socioespacial e as políticas de extermínio e de encarceramento, sobretudo de jovens negros. No segundo, atuando nos territórios de maioria negra, o Estado oferece a essas populações uma ilusão de integração por meio de políticas públicas que há muito abandonaram os princípios da universalidade e da justiça (são pontuais, descontinuadas; os serviços e equipamentos que criam são de má qualidade) ou patrocinando projetos sociais realizados por organizações não governamentais que seguem a mesma lógica, além de criminalizar sua clientela, entendida como “população vulnerável ao crime”. Em ambos os casos, o racismo institucional soma-se às desigualdades sociais, raciais e urbanas que historicamente estruturaram nosso país, aprofundando-as e revelando que estamos muito longe da “diluição” dessas desigualdades e da possibilidade de uma efetiva integração social e urbana dos negros pobres na sociedade brasileira.

Márcia Pereira Leite Professora associada da Uerj, pesquisadora do CNPq, membro do Círculo Palmarino/Rio de Janeiro e do Conselho Deliberativo da Fase


Ilustração: Ricardo Moraes / Reuters

1 Fonte: .
2 Valter Silvério, “O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora”, Revista USP, n.42, jun./ago. 1999, p.156.
3 Michel Foucault, Em defesa da sociedade, Martins Fontes, São Paulo, 2002, p.304-5.
4 Idem, p.309.
5 Registro de ocorrência policial, em atividade de policiamento ou mesmo na folga do agente policial, como resistência armada à prisão seguida de morte. Trata-se de um homicídio que não é registrado como tal, por exclusão de ilicitude por parte de seu autor. Nesse registro, a vítima é qualificada como criminosa (usualmente, como traficante de drogas); a morte, como decorrente de atividade legal da polícia; e seu autor, o policial, como vítima de tentativa de homicídio.
6 Cf. “Manifesto contra a faxina étnica”, divulgado no Fórum Social Urbano, no Rio de Janeiro, em março de 2010. Disponível em: .
7 Mapa da violência 2011, Instituto Sangari e Ministério da Justiça.
8 Marcelo Paixão et al. (orgs.), Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010, Laeser/Garamond, Rio de Janeiro, 2011.
9 Esta se deve a situações bastante específicas, que, por razões de foco e espaço, não temos condições de discutir aqui.
10 Cf. Sylvia Amanda da Silva Leandro, O que matar (não) quer dizer nas práticas e discursos da justiça criminal: o tratamento judiciário dos “homicídios por auto de resistência” no Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, PPGD/UFRJ, 2012.
11 Ministério da Saúde, Programa estratégico de ações afirmativas: população negra e aids, Brasília, 2006.
12 Iná Meireles, Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade que exige muita luta contra a faxina étnica, mimeo, 2011.
13 Marcelo Paixão et al (orgs.), op. cit.
14 Cf. Kazuo Nakano, “A produção social de vulnerabilidade urbana”, Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2011.
15 Para a análise do processo de reestruturação e mercantilização de nossas grandes cidades enquanto produção de novas fronteiras urbanas para a expansão da acumulação, cf. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Orlando Alves Santos Junior, “Desafios da questão urbana”, Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2011.
16 Piramba examina esse processo enquanto expressão de racismo ambiental, isto é, das “injustiças sociais e ambientais [que] atingem etnias e populações vulneráveis”. Cf. Paulo Piramba, Anotações sobre o racismo ambiental, mimeo, 2011, p.1.
17 Ver, para a distinção entre integração social e inserção social, no sentido apontado aqui, Robert Castel, As metamorfoses da questão social, Vozes, Petrópolis, 1998.

No Brasil, os negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas
por Márcia Pereira Leite
“Na primeira vez em que estive aqui, em 1987, fiquei chocado ao ver que na TV, em revistas, não havia negros. Melhorou um pouco. Mas há muito a fazer. Quem nunca veio ao Brasil e vê a TV brasileira via satélite vai pensar que todos os brasileiros são loiros de olhos azuis.” (Spike Lee)1
 O comentário do cineasta norte-americano Spike Lee, em recente visita ao Brasil para filmagem do documentário Go Brazil Go, no mesmo período em que o Supremo Tribunal Federal (STF) julgava a constitucionalidade das cotas raciais em universidades públicas, despertou várias discussões na imprensa e nas redes sociais sobre o racismo na sociedade brasileira. Desses debates, é possível depreender quanto ainda persiste do mito de que o Brasil seria uma “democracia racial” em que, a despeito do preconceito, não haveria nem o ódio nem a segregação que caracterizaram o regime do apartheid. Nosso racismo combinaria o preconceito de cor e o preconceito de classe, diluindo-se no caso de negros educados e bem-sucedidos e implodindo no samba, no carnaval, enfim, na cultura popular brasileira.
Queremos chamar a atenção para o que ficou ausente nesse (e em outros) debate sobre o racismo no Brasil: os mecanismos de discriminação produzidos e operados pelas estruturas e instituições públicas e privadas que os reproduzem e os fortalecem. Nesta reflexão, propomos seguir o giro da ciência social, nos anos 1960, em sua análise das relações raciais: “Abandonar os esquemas interpretativos que tomam as desigualdades raciais como produtos de ações (discriminações) inspiradas por atitudes (preconceitos) individuais, para fixar-se no esquema interpretativo que ficou conhecido como racismo institucional, ou seja, na proposição de que há mecanismos de discriminação inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo ponto, à revelia dos indivíduos”.2
O racismo constitui, como se sabe, um mecanismo fundamental de poder utilizado historicamente para separar e dominar classes, raças, povos e etnias. Seu desenvolvimento moderno se deu com a colonização, com o genocídio colonizador. O racismo é, como disse Foucault, “o meio de introduzir [...] um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”. “No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação das raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma maneira de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu; uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. [...] o racismo faz justamente funcionar, faz atuar essa relação de tipo guerreiro − ‘se você quer viver, é preciso que o outro morra’ − de uma maneira que é inteiramente nova e que, precisamente, é compatível com o exercício do biopoder.”3
Para o autor, “a especificidade do racismo moderno, o que faz sua especificidade, não está ligada a mentalidades, a ideologias, a mentiras do poder. Está ligada à técnica do poder, à tecnologia do poder”,4 isto é, ao biopoder enquanto um poder (estatal) de regulamentação que se exerce sobre populações e consiste em “fazer viver e deixar morrer”.
 
Racismo institucional no Brasil
O argumento central deste artigo consiste em que, no Brasil, negros sofrem não só a discriminação racial devida ao preconceito racial e operada no plano privado, mas também e sobretudo o racismo institucional, que inspira as políticas estatais que lhes são dirigidas e se materializa nelas. Trata-se de discriminação racial praticada pelo Estado ao atuar de forma diferenciada em relação a esses segmentos populacionais, introduzindo em nossas cidades e em nossa sociedade, pela via das políticas públicas, “um corte entre o que deve viver e o que deve morrer”, a faxina étnica.
A expressão, utilizada para evidenciar as relações entre o racismo e as políticas estatais para territórios e populações negras no Brasil, não é mera retórica. Antes, sustenta que as elevadas taxas de homicídio e de “autos de resistência”5 nos territórios de maioria negra, as políticas de remoção e de despejo de sua população, os altos índices de encarceramento de negros pobres, a precariedade das políticas públicas de habitação, saúde e educação para o conjunto da população negra e o desrespeito a suas tradições culturais e religiosas não são sucessivos produtos do acaso ou do mau funcionamento do Estado,6 mas traduzem o racismo institucional que opera no Brasil bem ao largo de qualquer perspectiva de integração social e urbana desses segmentos populacionais pela via da cidadania.
Esse modo específico de gestão estatal das populações negras e de seus territórios de moradia − que “faz viver e deixa morrer”, como diz Foucault − pode ser identificado no âmbito das políticas públicas praticadas pelo Estado brasileiro. Examinemos alguns dados empíricos que expressam o sentido e o escopo de sua formulação e de sua realização.
Os negros são as maiores vítimas de homicídio. No período de 2002 a 2008, segundo dados do Mapa da violência 2011,7 o número de vítimas brancas na população brasileira diminuiu 22,3%; já entre os negros, o número de vítimas de homicídio aumentou 20,2%. Os dados são mais dramáticos quando se consideram os jovens: o número de homicídios de jovens brancos caiu, no período, 30%, enquanto o de jovens negros cresceu 13%, o que significa que a brecha de mortalidade entre brancos e negros cresceu 43%. Se considerarmos os homicídios praticados pelas forças policiais e registrados/encobertos pelos “autos de resistência”, vemos que eles também vitimam mais intensamente os negros: de 2001 a 2007, incidiram sobre esse segmento 61,7% dos homicídios praticados por agentes do Estado.8 Não se trata simplesmente de abuso policial ou de despreparo de policiais em situações de confronto. A consistência dos dados e sua persistência no período, em que pese a redução desses homicídios nos últimos anos em algumas grandes cidades brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo,9 indicam uma política de extermínio de negros (jovens, sobretudo) − o “fazer morrer” − praticada pelo Estado, por meio de seus agentes, ou por ele tolerada.10
Mas, como vimos, a tecnologia do poder também “faz viver”, ainda que em distintas condições para esses diferentes segmentos populacionais, brancos e negros. É o que demonstra uma pesquisa realizada em 2003 pelo Ministério da Saúde,11 que revelou indicadores de saúde diferenciados da população brasileira segundo o critério raça/cor. Analisando seus resultados, Meireles12 destaca que 62% das mulheres brancas ouvidas realizaram sete ou mais consultas de pré-natal, enquanto somente 37% das mulheres negras passaram pelo mesmo número de consultas. Talvez por isso a hipertensão arterial durante a gravidez, uma das principais causas de morte materna, tenha sido mais frequente entre as mulheres negras. Além disso, o risco de uma criança negra morrer antes de completar 5 anos por causas infecciosas e parasitárias é 60% maior do que o risco de uma criança branca falecer pela mesma razão, enquanto o risco de morte por desnutrição é 90% maior entre crianças negras do que entre as brancas.
Já os dados do Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010demonstram que os negros representam cerca de 60% daqueles que, por motivos diversos, não conseguem atendimento no SUS, sendo os maiores percentuais os relativos às mulheres negras − o que, sem dúvida, argumenta o autor, evidencia a precariedade do dispositivo constitucional que assegura a universalidade do direito à saúde no país.
No plano da educação, todas as pesquisas apontam que, ainda que o acesso tenha crescido no país nos últimos anos, a presença dos negros no ensino médio, universitário e na pós-graduação permanece significativamente menor do que a dos brancos – diferença que se torna exponencial nos níveis superiores de formação. A razão, ressaltam, é clara: enquanto os brancos recorrem a escolas particulares (sabidamente, no Brasil, de melhor qualidade) no ensino fundamental e médio e, assim, obtêm melhor formação intelectual para ingresso nas universidades públicas, aos negros restam as escolas públicas (crescentemente sucateadas) nos níveis fundamental e médio e o caminho das universidades privadas. Mesmo com essa estratégia, também no campo da educação as desigualdades raciais são gritantes: em 2008, a probabilidade de um jovem branco, de 18 a 24 anos, frequentar uma instituição de ensino superior era 97,8% maior do que a de uma jovem negra da mesma faixa etária.13
No plano da moradia, os indicadores sociais revelam a mesma diferenciação no interior das políticas públicas, ou como o Estado “faz viver” esses contingentes populacionais. Os territórios de maioria negra nas cidades (favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias) são carentes de equipamentos urbanos e serviços públicos de boa qualidade. O déficit habitacional brasileiro (cerca de 5,5 milhões de unidades) é fruto da ausência de uma política estatal de habitação popular, o que resultou na precariedade que caracteriza as atuais condições de moradia e vida nessas localidades.14
Além disso, em várias de nossas grandes cidades que vêm sendo reestruturadas para favorecer a especulação imobiliária e/ou sediar “grandes eventos” e assim se inserir nos fluxos internacionais de acumulação urbana, essas populações têm sido compulsoriamente removidas das localidades em que sempre viveram, criaram seus laços de vizinhança e parentesco, suas alternativas de sobrevivência (em trabalhos formais, pequenos comércios ou “virações”).15 São, então, reassentadas em locais distantes, ambientalmente precários,16 com infraestrutura urbana de má qualidade, sem redes de sociabilidade nem alternativas de trabalho; enfim, sem lugar na sociedade, sem direito à cidade.

Muito além do preconceito
Os dados analisados e as situações descritas revelam quanto as desigualdades sociais têm cor e estão profundamente enraizadas no racismo institucional que estrutura a sociedade brasileira e se materializa por meio das políticas praticadas pelo Estado, em todos os seus níveis. O que queremos sublinhar ao discuti-los é que, no Brasil, as desigualdades sociais se somam e são elevadas pelas desigualdades raciais. Mais do que isso: as desigualdades raciais estão no cerne do modo de gestão estatal dos territórios de maioria negra e desta população.
Trata-se de um novo modo de gestão estatal de territórios e de populações, que dispensa os tradicionais discursos e práticas de integração à sociedade nacional pela via da cidadania (da educação, do trabalho e dos direitos) por entender que essas populações são desnecessárias ao atual desenvolvimento do capitalismo.
Vivemos, hoje, uma mudança no eixo da atuação do Estado, cujo sentido passou a ser – simplesmente – evitar que essas populações negras, pobres e moradoras em territórios de favelas, loteamentos, bairros pobres e periferias produzam problemas para a ordem social. Suas estratégias combinam, desde então, diferentes políticas e mecanismos de controle social repressivo (até o “deixar morrer”) com políticas de mera inserção17/mínima sobrevivência (o “fazer viver”), travestidas, no plano discursivo, de integração à cidadania e à sociedade.
No primeiro caso, especialmente nas situações em que a criminalização da pobreza tem sido mais eficiente, o Estado atua promovendo ou acobertando a segregação socioespacial e as políticas de extermínio e de encarceramento, sobretudo de jovens negros. No segundo, atuando nos territórios de maioria negra, o Estado oferece a essas populações uma ilusão de integração por meio de políticas públicas que há muito abandonaram os princípios da universalidade e da justiça (são pontuais, descontinuadas; os serviços e equipamentos que criam são de má qualidade) ou patrocinando projetos sociais realizados por organizações não governamentais que seguem a mesma lógica, além de criminalizar sua clientela, entendida como “população vulnerável ao crime”. Em ambos os casos, o racismo institucional soma-se às desigualdades sociais, raciais e urbanas que historicamente estruturaram nosso país, aprofundando-as e revelando que estamos muito longe da “diluição” dessas desigualdades e da possibilidade de uma efetiva integração social e urbana dos negros pobres na sociedade brasileira.
Márcia Pereira Leite
Professora associada da Uerj, pesquisadora do CNPq, membro do Círculo Palmarino/Rio de Janeiro e do Conselho Deliberativo da Fase


Ilustração: Ricardo Moraes / Reuters

1 Fonte: .
2 Valter Silvério, “O multiculturalismo e o reconhecimento: mito e metáfora”, Revista USP, n.42, jun./ago. 1999, p.156.
3 Michel Foucault, Em defesa da sociedade, Martins Fontes, São Paulo, 2002, p.304-5.
4 Idem, p.309.
5 Registro de ocorrência policial, em atividade de policiamento ou mesmo na folga do agente policial, como resistência armada à prisão seguida de morte. Trata-se de um homicídio que não é registrado como tal, por exclusão de ilicitude por parte de seu autor. Nesse registro, a vítima é qualificada como criminosa (usualmente, como traficante de drogas); a morte, como decorrente de atividade legal da polícia; e seu autor, o policial, como vítima de tentativa de homicídio.
6 Cf. “Manifesto contra a faxina étnica”, divulgado no Fórum Social Urbano, no Rio de Janeiro, em março de 2010. Disponível em: .
7 Mapa da violência 2011, Instituto Sangari e Ministério da Justiça.
8 Marcelo Paixão et al. (orgs.), Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil; 2009-2010, Laeser/Garamond, Rio de Janeiro, 2011.
9 Esta se deve a situações bastante específicas, que, por razões de foco e espaço, não temos condições de discutir aqui.
10 Cf. Sylvia Amanda da Silva Leandro, O que matar (não) quer dizer nas práticas e discursos da justiça criminal: o tratamento judiciário dos “homicídios por auto de resistência” no Rio de Janeiro, dissertação de mestrado, PPGD/UFRJ, 2012.
11 Ministério da Saúde, Programa estratégico de ações afirmativas: população negra e aids, Brasília, 2006.
12 Iná Meireles, Saúde da população negra: um histórico de vitórias e uma realidade que exige muita luta contra a faxina étnica, mimeo, 2011.
13 Marcelo Paixão et al (orgs.), op. cit.
14 Cf. Kazuo Nakano, “A produção social de vulnerabilidade urbana”, Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2011.
15 Para a análise do processo de reestruturação e mercantilização de nossas grandes cidades enquanto produção de novas fronteiras urbanas para a expansão da acumulação, cf. Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Orlando Alves Santos Junior, “Desafios da questão urbana”, Le Monde Diplomatique Brasil, abr. 2011.
16 Piramba examina esse processo enquanto expressão de racismo ambiental, isto é, das “injustiças sociais e ambientais [que] atingem etnias e populações vulneráveis”. Cf. Paulo Piramba, Anotações sobre o racismo ambiental, mimeo, 2011, p.1.
17 Ver, para a distinção entre integração social e inserção social, no sentido apontado aqui, Robert Castel, As metamorfoses da questão social, Vozes, Petrópolis, 1998.