Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

2013, o ano do golpe



Antes que 2012 termine, há que refletir sobre o que boa parte da opinião pública – a parte que não embarca na politicagem da oposição demo-tucano-midiática – já intui e comenta, que 2013 baterá o recorde de todos os anos anteriores do pós-redemocratização em termos da infatigável guerra da oposição midiática contra o governo federal e o partido de sua titular.
E a primeiríssima reflexão é a de que, hoje, é muito menor o contingente que tenta desqualificar sem discussão a premissa golpista em um país de tão larga tradição nessa prática compulsiva de uma elite que luta ferozmente para manter privilégios que fizeram do Brasil o país virtualmente mais injusto do mundo – pois os mais injustos são países paupérrimos da África.
Há menos de um ano, quando se falava em golpe diziam que não havia “clima” para tanto, que seria paranóia etc. Hoje, o discurso persiste inclusive entre setores que se dizem “de esquerda”. Todavia, aumentaram exponencialmente os que enxergam o esforço golpista, que se traduziria em mais uma tentativa de golpe “institucional” na América Latina
As recentes experiências golpistas hondurenha e paraguaia, como se sabe, sucederam a tentativa venezuelana lá em 2002, desfechada sem sucesso, ao contrário das duas que sobrevieram e que vingaram, fazendo salivar aqueles que, ao longo do século XX, espalharam quarteladas golpistas pela região.
Recentemente, li no Twitter um desses militantes da mídia disfarçados de “esquerdista” que, ironizando um texto meu, perguntava como seria possível um golpe sem censura a jornais. Espantoso, não é mesmo? A gente fica sem saber se é ignorância histórica ou má fé, pois é difícil achar alguém minimamente escolarizado que não saiba o papel da imprensa no golpismo nacional do século XX.
Mas vamos em frente. A segunda questão é a da razão para os flertes com o novo modelo de golpe, o modelo “institucional” com o qual se pretende tirar do cenário político candidatos de esquerda com alta aprovação e expressivo eleitorado como Manoel Zelaya, Fernando Lugo e Hugo Chávez.
Não me parece polêmico afirmar que a oposição tem cada vez menos perspectivas de retomar o poder em 2014. Recentes pesquisas de opinião dos institutos Datafolha e Ibope revelaram que o PT não tem um, mas dois candidatos em condições de se eleger em primeiro turno. E que a oposição conta com nomes cujo desempenho é fraquíssimo.
As razões para esse favoritismo do PT para as eleições de 2014 deveriam ser claras para todos, mas o fato é que a mídia, a oposição e a militância oposicionista-midiática parecem que acabam acreditando naquilo que inventam e difundem como fatos, mas que não passa de distorções, invenções e desejos.
Há, pois, que entrar no terceiro tópico, o das armas que cada lado tem para enfrentar a contenda que se avizinha, a de 2013, que só perderá em virulência para a de 2014.
Do lado da oposição midiática, o armamento é farto, diversificado, sofisticado e multibilionário. Apesar da oposição formal (partidária) exangue, sem votos, sem propostas e que vai encolhendo a cada eleição, há os grandes impérios empresariais, com destaque para os de comunicação – pelo protagonismo e pelo poder –, e os não menos importantes tentáculos do Judiciário e do Ministério Público.
Mas não é só. A CPI do Cachoeira revelou que a base aliada do governo Dilma é infinitamente menor do que parece, pois o PMDB, o PSB e os pequenos partidos de direita que a compõem já se revelaram inconfiáveis, chegando a atuar em consonância com a oposição partidária, a mídia e os braços destes no Judiciário e no MP.
Como para manter a base aliada é preciso fazer concessões para não incomodá-la, a possibilidade de reação do governo e do partido de sua titular se reduz drasticamente, como ficou claro, mais uma vez, na CPI do Cachoeira, quando o fato de muitos peemedebistas serem donos de veículos de mídia blindou a Veja naquela Comissão.
Os acordos escancarados entre a oposição formal e o PMDB foram ainda mais longe, chegando a blindar, também, aquele que, com base em uma fartura impressionante de provas materiais e testemunhais, pode ser considerado o segundo homem do esquema criminoso goiano, que atingiu a marca do bilhão de reais, fazendo os valores do mensalão “petista” parecerem gorjeta. A impunidade de Marconi Perillo, assim, mostra quão poderosa é a coalizão golpista.
O que, então, resta de armas ao governo Dilma e ao PT? Apesar de menos rápidas e ruidosas, as armas desse lado não são desprezíveis. E a “caneta” é a principal. Desta, decorrem o que uma perspicaz leitora com a qual conversei por telefone dia desses chamou de “pacotes de bondades”, dos quais decorre a popularidade estratosférica de Lula, Dilma e PT.
Mas tudo vem do fato de que esses atores governam o país, tendo como produzir políticas públicas que fazem com que o eleitor reflita que não dá para trocar o certo pelo duvidoso com base em discursos moralistas entoados por aqueles que não têm a menor condição para fazê-los e em discursos sobre a economia que se chocam com a realidade econômica da sociedade.
A “caneta” do governo petista reduziu os juros de forma inédita no país, aumentou os salários, praticamente extinguiu o desemprego, fez disparar o crédito ao consumidor e, ainda que em ritmo infinitamente menor, fez cair, de forma inédita, a concentração de renda.
Já foi amplamente explicado, nesta página, que a estratégia da direita midiática faz todo sentido do mundo, pois simplesmente não tem o que oferecer. As políticas sociais petistas como, por exemplo, o Bolsa Família e as cotas nas universidades públicas vão se impondo contra os discursos que tentavam desqualificá-las perante a sociedade.
O Bolsa Família, há tempos que só vem sendo criticado pelos militantes da oposição midiática, pois os políticos oposicionistas não têm coragem para atacar um programa tão popular. E agora são as cotas, às quais até o governo tucano de São Paulo vai se rendendo, mesmo que com reticências contra as cotas raciais. Mas está sendo quebrado o paradigma.
Contudo, se o PSDB, o DEM e o PPS fossem vistos como partidos com credibilidade para investirem no social, não estariam fora do poder. Esses partidos, com os discursos virulentos de outrora contra políticas sociais petistas e contra o modelo de desenvolvimento e gestão econômica vigentes, carimbaram-se, ao lado da mídia, como agentes dos ricos.
Eis que chegamos à inviabilidade da disputa político-eleitoral como forma de a oposição midiática retomar o poder. Teria que haver uma hecatombe econômica no Brasil, com forte queda de renda e com expressivo aumento do desemprego e da desigualdade para que vicejasse um desejo da maioria por mudança.
Mudança só é desejada quando se está mal-acomodado, e não haverá discurso sobre “pibinho” ou “corrupção” que faça a sociedade achar que a sua vida vai mal justamente quando mais e mais pessoas vão sendo incluídas no mercado de consumo de massas e no mercado formal de trabalho.
Não que não haja desejo de mudança. Há e até ficou muito claro em 2012, com o impressionante desempenho do PT nas eleições ao vencer no maior colégio eleitoral do país, São Paulo, capital que, até há alguns meses, era considerada a mais sólida fortaleza oposicionista. Só que é um desejo de mudança em favor do PT em vez de ser contra.
Com a resiliência do potencial eleitoral do PT e com a ausência de perspectivas e de discurso da oposição, basta a menor reflexão para concluir que esses poderes que anseiam pela retomada do poder para pôr fim, sobretudo, à distribuição de renda em curso, não se conformarão em ficar mais quatro anos fora do poder, a partir de 2014.
O golpe “institucional” à brasileira, pois, já está desenhado. Lula, o “odiado” (pela direita microscópica e midiática) dificilmente deixará de ser denunciado por iniciativa da mesma Procuradoria Geral da República que dispõe, também, da prerrogativa de denunciar presidentes da República.
Roberto Gurgel, o atual procurador-geral, pertence ao mesmo grupo político – sim, o Ministério Público tem correntes políticas muito bem definidas – do antecessor, Antonio Fernando de Souza, autor da denúncia do mensalão “petista”. E ficará mais sete meses no cargo. Uma eternidade, em termos de tempo para tentar inviabilizar Lula e Dilma como candidatos potenciais à sucessão desta.
Quanto ao STF, ainda restam a Dilma duas indicações – uma para a vaga do recém-aposentado Carlos Ayres Brito e outra que decorrerá da aposentadoria precoce do ministro Celso de Mello.
Na hipótese de que o recém-nomeado Teori Zavascki se revele um legalista como Ricardo Lewandovski, com José Antonio Dias Tófoli e com duas novas indicações racionais por Dilma, seriam cinco ministros que, ao menos em tese, barrariam o golpismo naquela Corte em meio a um total de onze.
As ministras Carmem Lúcia e Rosa Weber dão esperança de comedimento ainda que tenham se acovardado durante o julgamento do mensalão, mas só no que tange ao núcleo político daquela ação penal, núcleo esse que a mídia deixou muito claro que não aceitaria que não fosse condenado. Assim, o jogo ficaria equilibrado.
Todavia, também no STF ainda restam vários meses de sobrevida ao núcleo golpista, pois as novas nomeações para aquela Corte sempre demoram a se concretizar.
Não chega, portanto, nem ao final de 2013 o prazo para a direita midiática desfechar seu golpe “institucional”, limitando ao ano que entra o prazo máximo para impedir que os candidatos do PT à sucessão de Dilma dêem uma nova surra eleitoral na oposição demo-tucana, o que obrigará o modelo nacional de golpe a se aproximar do modelo-relâmpago do Paraguai.

A AGENDA POLÍTICA DO ANO NOVO: PACTO ADVERSATIVO X PACTO PROGRESSISTA



Basta um 'mas' depois das vírgulas. Pronto. Cria-se um marco zero em torno do qual pontifica-se livremente sobre o futuro do país: tudo está por fazer. É esse o motor do editorial da Folha desta 4ª feira, sugestivamente intitulado 'Reforma Geral'. Ou  vassourão de fim de ano.Ou 'chamada geral ao pacto conservador contra o governo Dilma'. A cobrança por avanços sintetiza um roteiro de regressão. A razão pode ser resumida num dado: 40 milhões de brasileiros saltaram da pobreza para o mercado  de consumo no ciclo Lula.O país foi pensado por uma elite que achava de bom tamanho governar para 30%  da sociedade. A luta política atual é para  readequar uma coisa a outra. A ponte chama-se ciclo de investimentos.Não é um problema do PT ou da Dilma. Tem a ver com a próxima década. Com a  próxima geração.Pode ou não confirmar as possibilidades e esperanças no pré-sal. Pode ou não viabilizar a travessia de 40 milhões de novos consumidores em novo sujeito histórico.As forças progressistas que pavimentaram a caminhada de  2003  até  o ponto atual, precisam urgentemente repactuar as bases de sua aliança para impulsionar o processo.É preciso conversar antes que as diferenças se transformem em distanciamento e o estranhamento em fragmentação. Cabe ao governo Dilma a iniciativa do jogo. (LEIA MAIS AQUI)

Bancos contra povos: os bastidores de um jogo manipulado

Este segundo artigo desta série mostra como o Banco Central Europeu e a Reserva Federal norte-americana se puseram ao serviço dos grandes bancos privados e não do interesse da população dos países. Os bancos foram confrontados com a ameaça de não conseguirem pagar as dívidas. Foi então que o BCE recomeçou a comprar, em grandes quantidades, títulos de dívida pública grega, portuguesa, irlandesa, italiana e espanhola, para fornecer liquidez aos bancos. O artigo é de Eric Toussaint.



*) Leia também o primeiro artigo desta série: 2007-2012: seis anos que abalaram os bancos.

O BCE e o Fed ao serviço dos grandes bancos privados

A atividade do Banco Central Europeu e do Fed |1|
Os bancos europeus entraram numa fase crítica a partir de junho de 2011. A situação era quase tão grave como após a falência do Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008. Muitos deles estavam à beira da asfixia, porque as suas enormes necessidades de financiamento a curto prazo (alguns bilhões de dólares) deixaram de ser satisfeitas pelos money market funds americanos, que consideravam que a situação dos bancos europeus era cada vez mais arriscada |2|. 

Os bancos foram confrontados com a ameaça de não conseguirem pagar as dívidas. Foi então que o BCE, na sequência de uma cúpula europeia, que se realizou de urgência a 21 de julho de 2011 para fazer face a uma série de possíveis falências bancárias, recomeçou a comprar, em grandes quantidades, títulos de dívida pública grega, portuguesa, irlandesa, italiana e espanhola, para fornecer liquidez aos bancos e aliviar o peso de uma parte dos títulos que tinham comprado avidamente no período anterior. Mas não foi suficiente. 

A derrocada do preço das ações dos bancos na bolsa continuava. Para os patrões dos bancos, agosto foi o mês de todos os perigos. A abertura pelo BCE, em setembro de 2011, de uma linha de crédito ilimitada, em concertação com o Fed, o Banco de Inglaterra e o Banco da Suíça, foi decisiva para manter à tona os bancos europeus: os bancos com falta de dólares e de euros foram colocados sob observação. Começaram a respirar outra vez, mas a medida foi insuficiente. A descida aos infernos continuava.

Entre 1º de janeiro e 21 de outubro de 2011, a atividade da Société Générale caiu 52,8%, a do BNP Paribas, 33,3%, a do Deutsche Bank, 28,8%, a do Barclays, 30,5%, a do Credit Suisse, 36,7%. O BCE teve de utilizar a sua bazuca LTRO (Long Term Refinancing Operation): emprestou mais de um bilião de euros, a um prazo de três anos e a um juro de 1%, a mais de oitocentos bancos, entre dezembro de 2011 e fevereiro de 2012.

O Fed fez praticamente o mesmo, desde 2008, a uma taxa oficial ainda menor: 0,25%. Na verdade, como revelou, em julho de 2011, um relatório do GAO (equivalente nos Estados Unidos ao Tribunal de Contas), o Fed emprestou 16 trilhões de dólares a uma taxa de juro inferior a 0,25% |3|. O relatório mostra que, ao agir desse modo, o Fed não respeitou as suas próprias regras prudenciais e não informou o Congresso sobre o sucedido. 

De acordo com uma comissão de inquérito do Congresso dos Estados Unidos, o conluio entre o Fed e os grandes bancos privados era evidente: «O diretor-geral do JP Morgan Chase era membro da Reserva Federal de Nova Iorque, na altura em que o “seu” banco recebia ajuda financeira do Fed, no valor de 390 mil milhões de dólares. Além disso, o JP Morgan Chase servia também de intermediário para o crédito de urgência concedido pelo Fed |4|». 

De acordo com Michel Rocard, ex-primeiro-ministro francês, e Pierre Larrouturou, economista, que se baseiam numa investigação realizada pela agência financeira nova-iorquina, Bloomberg, o Fed teria emprestado parte da quantia acima mencionada a um juro ínfimo: 0,01%. Michel Rocard e Pierre Larrouturou afirmam no jornal Le Monde: «Depois de ter desbravado 20.000 páginas de vários documentos, a Bloomberg mostra que a Reserva Federal emprestou secretamente a bancos em dificuldades a quantia de 1,2 trilhões, a juros incrivelmente baixos, de 0,01%» |5|. 

Os autores perguntam: «É normal que, em caso de crise, os bancos privados, que habitualmente se financiam a juros de 1% junto dos bancos centrais, possam beneficiar de taxas de 0,01%, quando alguns estados em plena crise são obrigados a pagar juros 600 ou 800 vezes mais elevados?»

Os principais bancos europeus também tiveram acesso a empréstimos do Fed até ao início de 2011 (o Dexia recebeu 159 bilhões de dólares de empréstimos |6|, o Barclays recebeu 868 bilhões de dólares, o Royal Bank of Scotland, 541 bilhões de dólares, o Deutsche Bank, 354 bilhões de dólares, o UBS, 287 bilhões de dólares, o Credit Suisse, 260 bilhões de dólares, o BNP Paribas, 175 bilhões de dólares, o Dresdner Bank, 135 bilhões de dólares, a Société Générale, 124 bilhões de dólares). O fato de o financiamento dos bancos europeus, via Fed, ter secado (nomeadamente sob pressão do Congresso norte-americano) foi uma das razões que levou também os money market funds norte-americanos a fecharem a torneira dos empréstimos aos bancos europeus, a partir de maio-junho de 2011.

Quais as consequências da entrega de 1 trilhão de euros aos bancos pelo BCE?

Em 2012, os bancos, a nadarem em liquidez, compraram, em grandes quantidades, títulos de dívida pública dos seus países. Vejamos o exemplo de Espanha. Os bancos espanhóis pediram emprestado ao BCE 300 bilhões de euros, a três anos, com um juro de 1%, no âmbito do LTRO |7|. Com uma parte desse montante, aumentaram drasticamente as suas compras de dívida, emitida pelas autoridades espanholas. A evolução é impressionante: em finais de 2006, os bancos espanhóis detinham títulos públicos do seu país no valor de apenas 16 bilhões de euros. Em 2010, aumentam as compras de títulos públicos espanhóis. Detinham 63 bilhões.

Em 2011, a compra volta a aumentar. Os títulos espanhóis, na posse dos bancos, atingem o montante de 94 bilhões. E devido ao LTRO, as aquisições explodem literalmente. O montante duplica no prazo de alguns meses, alcançando os 184,5 bilhões de euros, em julho de 2012 |8|. Convém dizer que se trata de uma operação muito rentável para os bancos. Pedindo emprestado a 1%, compram títulos espanhóis, a 10 anos, com juros que variam entre 5,5 e 7,6%, no segundo semestre de 2012.

Em seguida, vejamos o exemplo de Itália. Entre finais de dezembro de 2011 e março de 2012, os bancos italianos pedem emprestado ao BCE 255 bilhões de euros no âmbito do LTRO |9|. Em finais de 2010, os bancos italianos detinham títulos públicos do seu país no valor de 208,3 bilhões de euros, mas o montante aumenta para 224,1 bilhões no final de 2011, poucos dias após o início do LTRO. Logo de seguida, utilizam a enorme quantidade de créditos que recebem do BCE para comprarem títulos italianos. Em setembro de 2012, os bancos detêm títulos italianos no valor de 341,4 bilhões de euros |10|. Como no caso espanhol, trata-se de uma operação muito rentável: pedem emprestado a 1% e comprando títulos italianos a 10 anos conseguem um juro que varia entre 5 e 6,6% no segundo semestre de 2012.

O mesmo fenômeno aconteceu na maioria dos países da zona euro. Houve relocalização de uma parte dos ativos dos bancos europeus para os países de origem. Em concreto, constata-se em 2012, em cada país, um aumento significativo da fatia de dívida pública na posse de instituições financeiras desse mesmo país. Essa evolução tranquilizou os governos da zona euro, em especial os de Itália e de Espanha, porque descobriram que enfrentavam menos dificuldades vendendo aos bancos os títulos públicos que emitiam. O BCE parecia ter descoberto a solução – emprestando grandes quantias aos bancos privados, salvava-os de uma situação crítica e poupava alguns Estados a lançarem-se em novos planos de resgate bancário. O dinheiro emprestado aos bancos era, em parte, utilizado na compra de títulos de dívida pública de Estados da zona euro, o que fez parar a subida das taxas de juro dos países mais frágeis e até provocou uma diminuição das taxas de juro nalguns países.

É fácil de ver que, do ponto de vista do interesse da população dos países em questão, teria sido necessário adotar uma abordagem completamente diferente: o BCE deveria emprestar diretamente aos Estados a menos de 1% (como acontece com os bancos privados desde maio de 2012) ou mesmo sem juro. Dever-se-ia também socializar os bancos, sob controle cidadão.

Em vez disso, o BCE resolveu proteger os bancos privados, abrindo uma linha de crédito ilimitada, a taxas de juro muito baixas (entre 0,75 e 1%). Os bancos privados deram diferentes usos a esse maná de financiamento público. Como acabamos de ver, por um lado compraram títulos soberanos de países que, sob pressão dos próprios bancos, aceitaram pagar juros altos (entre 5 e 7,6%, a 10 anos), como aconteceu em Espanha e Itália. Por outro lado colocaram uma parte do crédito concedido pelo BCE... no BCE...! Entre 300 e 400 bilhões são depositados pelos bancos, todos os dias, no BCE, a uma taxa de 0,25%, no início de 2012, e a 0%, desde maio de 2012. E por que fazem isso? Porque querem mostrar aos outros banqueiros e aos outros prestadores privados de crédito (money market funds, fundos de pensões, companhias de seguros) que têm cash, em permanência, para fazerem face à explosão de bombas ao retardador que se encontram nas suas contas. Porque se não tivessem esse cash disponível, os potenciais credores afastar-se-iam ou imporiam taxas muito elevadas. Com o mesmo objetivo de tranquilizar os credores privados, compram também títulos soberanos de Estados que não representam risco a curto ou médio prazo: Alemanha, Holanda, França... Os bancos privados são a tal ponto sôfregos que esses Estados podem dar-se ao luxo de lhes vender títulos a dois anos, a uma taxa de 0% ou até mesmo com um rendimento ligeiramente negativo (sem ter em conta a inflação). 

Os juros pagos pela Alemanha e pelos outros países considerados financeiramente sólidos caíram significativamente, devido à política do BCE e ao agravamento da crise nos países da periferia. Houve uma fuga de capital da periferia europeia para o centro. Os títulos alemães são tão fiáveis, que, no caso de ser necessário cash, podem ser vendidos, de um dia para o outro, sem perdas. Os bancos adquirem-nos, não com o objetivo de ganharem dinheiro, mas para terem permanentemente, no BCE ou sob a forma de títulos com liquidez, quantidades de dinheiro disponíveis a fim de darem uma impressão (muitas vezes falsa) de solvência e de estarem prontos para qualquer eventualidade. Os bancos obtêm lucro emprestando a Espanha e a Itália e isso compensa as perdas que possam ter com os títulos alemães. É muito importante notar que os bancos não aumentaram os seus empréstimos a famílias e empresas, apesar de um dos objetivos oficiais dos empréstimos do BCE ser fazer crescer esses créditos para relançar a economia.

Qual o balanço a fazer da atividade do BCE na perspetiva das elites?

Coloquemo-nos, por um instante, no lugar do 1% mais rico, para avaliarmos a atividade do BCE. O discurso oficial considera que o BCE foi bem sucedido na transição do seu antigo presidente, o francês Jean-Claude Trichet, para o novo presidente, Mario Draghi |11|, ex-governador do Banco de Itália e antigo vice-presidente da Goldman Sachs Europa. O BCE e os dirigentes dos principais países europeus conseguiram negociar uma redução da dívida grega, convencendo os bancos privados a aceitarem uma diminuição de cerca de 50% dos seus créditos e assegurando que o governo grego implementaria um novo plano radical de austeridade, que incluísse privatizações em massa, e que concordaria em abrir mão de boa parte da soberania do país. 

Desde março de 2012, os membros da Troika instalaram-se nos ministérios de Atenas para acompanharem de perto as contas do Estado. Os novos empréstimos concedidos à Grécia passam agora diretamente por uma conta controlada pelas autoridades europeias, que a podem, portanto, bloquear. Cereja no topo do bolo, os novos títulos de dívida grega deixaram de ser competência dos tribunais gregos. As novas obrigações emitidas ao abrigo desse programa são regidas por lei inglesa e os conflitos entre o governo grego e os credores privados são arbitrados no Luxemburgo |12|.

Mas não é tudo: sob pressão do BCE e de dirigentes europeus, o governo Pasok, de George Papandreou, muito submisso, mas cada vez mais impopular, foi substituído por um governo não eleito de unidade nacional, Nova Democracia-Pasok, sendo os lugares-chave entregues a ministros provenientes da banca.

Pode-se completar o quadro com mais três boas notícias para o BCE e para os dirigentes europeus: 

1. Silvio Bersluconi foi forçado a demitir-se e foi substituído por um governo de técnicos, aparecendo à cabeça Mario Monti, antigo comissário europeu, muito próximo da banca e capaz de impor aos italianos um aprofundamento das políticas neoliberais |13|. 

2. Na Espanha, o presidente do governo, Mariano Rajoy, do Partido Popular, há alguns meses no cargo, está também pronto a radicalizar as políticas neoliberais do seu antecessor, o socialista José Luis Zapatero. 

3. Os dirigentes europeus |14| chegaram a acordo sobre um pacto de estabilidade, que vai deixar para a posteridade a austeridade fiscal, a perda de soberania nacional por parte dos Estados-membros e uma dose extra de obediência à lógica do capital privado. 

Finalmente, o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) vai, em breve, ser acionado, permitindo ajudar mais os Estados e os bancos |15| nas próximas crises do setor bancário, que vão continuar a ocorrer, e dos Estados-Membros que lutam para se financiarem.

Os diferentes exemplos mostram que os líderes europeus, ao serviço do grande capital, conseguem marginalizar o poder legislativo, ignorando as escolhas das eleitoras e dos eleitores. Além disso, onde fica a democracia, quando as eleitoras e os eleitores que pretendem recusar em massa a austeridade já não têm oportunidade de expressar o seu voto, ou quando veem o seu sentido de voto ser anulado, porque a escolha dos eleitores não coincide com a dos governantes, como em 2005, em França e na Holanda, após o «não» ao Tratado Constitucional Europeu, como na Irlanda e em Portugal após as eleições de 2011 e como em França e na Holanda de novo, após as eleições de 2012. Tudo é feito para que a margem de manobra dos governos nacionais e dos poderes públicos seja limitada por um enquadramento europeu cada vez mais restritivo. Trata-se de uma tendência muito perigosa, a menos, é certo, que os governos, apoiados pela população, decidam desobedecer.

Se nos colocarmos, por um instante, na posição de Mario Draghi, dos principais dirigentes europeus e dos bancos, podemos concluir que, em março-abril de 2012, tinham motivos para sorrir. Tudo decorria como previsto.

Os entraves ao sucesso do BCE e dos governos europeus

As nuvens negras chegam depois. A situação complica-se, a partir de maio de 2012, quando o Bankia, o quarto banco espanhol, dirigido pelo ex-diretor-geral do FMI, Rodrigo de Rato, entra em falência técnica. Segundo as fontes, as necessidades dos bancos espanhóis em termos de recapitalização variam entre 40 e 100 bilhões de euros e Mariano Rajoy, que não quer recorrer à ajuda da Troika, está numa posição muito difícil. A juntar a isso, o fato de se sucederem vários escândalo bancários em nível internacional. O caso da manipulação da taxa Libor, a taxa interbancária londrina, é o mais sonante e envolve uma dúzia de grandes bancos. 

Acrescente-se ainda o caso da conduta danosa do HSBC, que envolve lavagem de dinheiro da droga e outros negócios criminosos.

Na França, a maioria dos eleitores afasta Nicolas Sarkozy. François Hollande é eleito em 6 de maio de 2012, mas a mudança não preocupa as instituições financeiras internacionais, que contam com o pragmatismo dos socialistas franceses e dos outros partidos socialistas europeus para darem continuidade à austeridade. Embora convenha ter sempre presente que o povo francês é muito propenso a excessos e suscetível de acreditar que é preciso uma verdadeira mudança.

Na Grécia, a situação é mais tensa para o BCE, pois o Syriza, coligação de esquerda radical que promete revogar as medidas de austeridade, suspender o pagamento da dívida e desafiar as autoridades europeias, está à beira duma vitória eleitoral. Para os defensores da austeridade europeia é preciso impedir a situação a todo custo. Na noite de 17 de junho de 2012 respira-se de alívio no BCE, na sede dos governos europeus e nos conselhos de administração das grandes empresas: o partido de direita, a Nova Democracia, passa à frente da Syriza. Até o novo presidente socialista francês saúda o resultado da eleição. E no dia seguinte os mercados respiram – vão poder manter a via da austeridade, da estabilização da zona euro e do saneamento das contas dos bancos privados.

(continua...)

A parte 3 desta série debruça-se sobre os dois objetivos pretendidos pelos dirigentes europeus: levar a bom porto a maior ofensiva contra os direitos sociais desde a segunda guerra mundial e evitar um novo crash financeiro/bancário, que poderia revelar-se ainda pior do que o crash de setembro de 2008.

Tradução Maria da Liberdade, revisão de Rui Viana Pereira

Eric Toussaint, professor na Universidade de Liège, é presidente do CADTM Bélgica (Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, www.cadtm.org) e membro do conselho científico da ATTAC França. Escreveu, com Damien Millet, AAA. Audit Annulation Autre politique, Seuil, Paris, 2012.

Notas

|1| O Banco de Inglaterra e outros bancos centrais seguem, grosso modo, a mesma política.

|2| Desde agosto de 2011 que descrevo a situação, numa fase em que poucos comentadores financeiros falavam do assunto. Veja-se a série No Cerne do Ciclone: a crise da dívida na União Europeia: «Os bancos financiaram e continuam a financiar os seus empréstimos aos Estados e às empresas europeias graças aos empréstimos que contraem nos money market funds dos EUA. Ora estes ganharam medo pelo que acontece na Europa [...]. A partir de julho de 2011, esta fonte de financiamento a juros baixos quase secou, principalmente à custa dos grandes bancos franceses, o que precipitou uma queda no mercado bolsista e aumentou a pressão exercida pelos bancos sobre o BCE, para que este comprasse títulos fornecendo assim dinheiro fresco. Em resumo, temos aqui mais uma prova da amplitude dos vasos comunicantes entre a economia dos EUA e a dos países da UE. Daí os contactos incessantes entre Barack Obama, Angela Merckel, Nicolas Sarkozy, o BCE, o FMI… e os grandes banqueiros, do Goldman Sachs ao BNP Paribas, passando pelo Deutsche Bank… Uma ruptura dos créditos em dólares, que trazem muito benefício aos bancos europeus, pode provocar uma crise muito grave no velho continente, da mesma maneira que a dificuldade dos bancos europeus em reembolsar os emprestadores norte-americanos pode precipitar uma nova crise na Wall Street» (http://cadtm.org/No-cerne-do-ciclon...). 

Um estudo recente do Banco Natixis confirma a angústia que experimentaram os bancos franceses durante o verão de 2011: Flash Economie, «bancos franceses no turbilhão dos mercados monetários», 29 de outubro de 2012. Lê-se também: «De junho a novembro de 2011, os fundos monetários norte-americanos retiraram, de repente, a maior parte do seu financiamento aos bancos franceses. [...] Foram cerca de 140 mil milhões de dólares de financiamento, a curto prazo, que os bancos franceses não receberam, no final de novembro de 2011, e nenhum foi poupado» (http://cib.natixis.com/flushdoc.asp...). O fechar da torneira afetou também a maioria dos outros bancos europeus, como mostra o estudo publicado por Natixis.

|3| GAO, Federal Reserve System, Opportunities Exist to Strengthen Policies and Processes for Managing Emergency Assistance, julho de 2011,http://www.gao.gov/assets/330/321506.pdf. O relatório do Tribunal de Contas (GAO = United States Government Accountability Office) foi realizado devido a uma alteração da lei Dodd-Frank (ver mais à frente), introduzida pelos senadores Ron Paul, Alan Grayson e Bernie Sanders, em 2010. Bernie Sanders, senador independente, tornou-a pública (http://www.sanders.senate.gov/imo/media/doc/GAO%20Fed%20Investigation.pdf).

Além disso, de acordo com um estudo independente do Instituto Levy, onde colaboram economistas como Joseph Stiglitz, Paul Krugman e James K Galbraith, os créditos do Fed atingiram um montante superior ao revelado pelo GAO. Não seriam 16 biliões, mas 29 biliões. Veja-se James Felkerson, «$29,000,000,000,000: A Detailed Look at the Fed’s Bailout by Funding Facility and Recipient», www.levyinstitute.org/pubs/wp_698.pdf

|4| «The CEO of JP Morgan Chase served on the New York Fed’s board of directors at the same time that his bank received more than $390 billion in financial assistance from the Fed. Moreover, JP Morgan Chase served as one of the clearing banks for the Fed’s emergency lending programs»,http://www.sanders.senate.gov/newsroom/news/?id=9e2a4ea8-6e73-4be2-a753-...

|5| Michel Rocard e Pierre Larrouturou, «Pourquoi faut-il que les Etats payent 600 fois plus que les banques?», Le Monde, edição de 3 de janeiro de 2012

|6| Ver o relatório do GAO, mencionado mais acima, na p. 196, que refere empréstimos ao Dexia no valor de 53 bilhões de dólares, o que representa apenas uma parte dos empréstimos concedidos ao Dexia pelo Fed

|7| Financial Times, «Banks plot early repayment of ECB crisis loans», edição de 15 de novembro de 2012, p. 25.

|8| Retirado do diário económico espanhol El Economista

|9| Financial Times, ibid.

|10| Ver: Banco da Itália

|11| Mario Draghi assumiu a presidência do BCE a 1 de novembro de 2011.

|12| Ver http://fr.wikipedia.org/wiki/Crise_.... Ver também Alain Salles e Benoït Vitkine, «Fatalisme face à un sauvetage échangé contre une perte de souveraineté», Le Monde, edição de 22 de fevereiro de 2012,http://www.forumfr.com/sujet448690-....

|13| Mario Monti, primeiro-ministro desde 13 de novembro de 2011, foi nomeado senador vitalício pelo presidente da república, Giorgio Napolitano. Devido à sua nomeação, deixou vários cargos de responsabilidade: a presidência da mais prestigiada universidade privada italiana, a Bocconi, a presidência do departamento Europa, a Trilateral, um dos mais importantes círculos da elite oligárquica internacional, o comité de direção do clube Bilderberg e a presidência do think tank neoliberal Bruegel. Monti foi conselheiro internacional da Goldman Sachs, entre 2005 e 2011 (na qualidade de membro do Research Advisory Council do Goldman Sachs Global Market Institute); foi nomeado Comissário Europeu do Mercado Interno (1995-1999) e foi comissário europeu da Concorrência, em Bruxelas (1999-2004). Foi membro do Senior European Advisory Council da Moody’s e conselheiro da Coca-Cola. É ainda um dos presidentes do Bussiness and Economics Advisory Group do Atlantic Council (um think tank americano que promove a liderança dos EUA) e faz parte da presidência dos Friends of Europe, influente think tank com sede em Bruxelas.

|14| Com exceção do Reino Unido e da República Tcheca.

|15| Numa cimeira europeia, em 21 de junho de 2012, foi decidido que o MEE seria também usado para salvar os bancos. Na ocasião, foi apresentado por Mariano Rajoy como uma vitória, permitindo à Espanha escapar às novas condições impostas pela Comissão Europeia ou pela Troika. Rajoy explicou que a ajuda, que seria concedida pelo MEE aos bancos espanhóis, não seria contabilizada na dívida pública espanhola, o que levou dirigentes de vários países da zona euro (Alemanha, Holanda, Finlândia...) a protestar, assim como o FMI. No final de novembro de 2012, ainda não havia consenso sobre essa questão.