A Veja (acima, ilustração publicada no site da revista) e a mídia
em geral colocaram várias pedras no caminho de Amorim. No caso do Irã, a
revista chamou de “explosivo” um acordo que tirava urânio do Irã e
disse erroneamente que o ministro “costurou um acordo para
desenvolvimento de tecnologia nuclear com o presidente do Irã”. Ou seja,
aparentemente a turma da revista nem leu a Declaração de Teerã.
por Luiz Carlos Azenha
Quando viu Muammar Gaddafi fazendo gestos bruscos com um objeto na
mão, dentro de uma tenda em um deserto nas proximidades de Trípoli, o
então chanceler Celso Amorim chegou a imaginar que o líder líbio estava
se autoflagelando diante de convidados importantes: o presidente Lula, o
líder nicaraguense Daniel Ortega e o ex-presidente argelino Ben Bella.
Mas, não se tratava de um gesto de caráter religioso. Na verdade,
Gaddafi usava uma espécie de abanador de fibra vegetal para se livrar
das moscas que infestavam o ambiente.
Esta e muitas outras anedotas saborosas fazem parte do livro
Teerã, Ramalá e Doha: memórias da política externa ativa e altiva, da editora Benvirá, o terceiro em que o ex-chanceler brasileiro narra fatos de sua passagem pelo Itamaraty. Os outros são
Conversas com jovens dipomatas e
Breves narrativas diplomáticas, lançados anteriormente pela mesma editora.
O novo livro — que será lançado em março em eventos no Rio, em São
Paulo e Brasília — trata de alguns dos mais criticados aspectos da
política externa que Amorim desenvolveu ao lado do ex-presidente Lula, a
partir de 2002: a aproximação com o Irã e os países árabes.
Na mesma viagem em que encontrou Gaddafi, em dezembro de 2003, Lula
já havia passado pela Síria, Líbano, Emirados Árabes Unidos e Egito.
Lula foi criticado por se encontrar com Bashar al-Assad e Gaddafi, mas
não com o emir de Abu Dhabi, aliado dos Estados Unidos.
Ao narrar a passagem por Tripoli, Amorim relembra: “Repetia [a mídia]
aqui, com agravantes, o mesmo tipo de crítica que ouvimos em Damasco.
Como podia o líder de um país democrático, que ascendera ao poder
mediante eleições livres, ser recepcionado por um anfitrião que chefiava
um regime sabidamente ditatorial? Mas, como na Síria, o que preocupava a
nossa imprensa não era tanto a natureza autoritária ou ditatorial do
regime, mas a falta de consulta prévia a Washington. Tanto assim que os
mesmos veículos pareciam encarar com grande naturalidade os contatos de
Colin Powell em Damasco e trataram de forma positiva, ou pelo menos
indiferente, as viagens que os primeiros-ministros José María Aznar e
Tony Blair viriam a fazer dentro de poucos meses à Líbia”.
Em outras palavras, os Estados Unidos podiam conversar com a Síria; o Reino Unido e a Espanha, com a Líbia. O Brasil, não!
A aproximação do Brasil com os países árabes, que culminou com a
Cúpula América do Sul-Países Árabes (ASPA), além de ampliar mercados
para produtos brasileiros visava reforçar um dos pilares centrais da
política externa, a de promover o multilateralismo.
Mas a maior reação da mídia se deu contra a aproximação entre o Brasil e o Irã, que em 2010 resultou na
Declaração de Teerã,
pela qual o regime iraniano se comprometeu a “depositar 1200 quilos de
urânio levemente enriquecido (LEU) na Turquia. Enquanto estiver na
Turquia, esse urânio continuará a ser propriedade do Irã. O Irã e a AIEA
[Agência Internacional de Energia Atômica] poderão estacionar
observadores para monitorar a guarda do urânio na Turquia”. Feito o
depósito dentro de um mês, “com base no mesmo acordo, o Grupo de Viena
deve entregar 120 quilos do combustível requerido para o Reator de
Pesquisas de Teerã em não mais que um ano”.
O acordo, em outras palavras, tirava do Irã o urânio levemente
enriquecido que em tese poderia ser utilizado para fabricar a bomba
atômica.
A iniciativa de Lula foi fuzilada pela mídia brasileira, com apoio
dos “embaixadores de pijama” que serviram a FHC. O Brasil teria dado
passo maior que a perna, disseram alguns. Teria sido usado pelos
malévolos aiatolás, afirmaram outros.
Na verdade, a repercussão foi mundial.
Sobre a foto dos presidentes Lula, Mahmoud Ahmadinejad e do primeiro-ministro da Turquia, Recep Erdogan, a revista
Newsweek perguntou: “É este o futuro? O poder americano e seus limites”.
No texto, Fareed Zakaria constatou: “Raramente uma única fotografia irritou tanta gente”.
Ele se referia aos críticos direitistas do presidente Barack Obama. O
Wall Street Journal definiu a imagem como o debacle da política externa de Obama. Para o neocon Charles Krauthammer, escrevendo no
Washington Post,
a cena em Teerã demonstrou como “poderes em ascensão, aliados
tradicionais dos Estados Unidos, depois de ver o governo Obama em ação,
decidiram que não existe custo em se aliar a inimigos dos Estados Unidos
e nenhuma vantagem em se aliar a um presidente [Obama] dado a pedidos
de desculpas e
appeasement“.
Como se sabe, naquele período muito se falava num “inevitável” ataque
militar de Israel ao Irã para eliminar o programa nuclear iraniano. Os
falcões batiam o bumbo da guerra e, ainda que reflexivamente, eram
imitados pelos seus amigos na mídia brasileira.
Obama, aliás, foi quem estimulou a iniciativa turco-brasileira.
Pessoalmente e por escrito. Assessores dele não acreditavam no sucesso
de Lula e Erdogan. Quando deu certo, trataram de puxar o tapete dos
aliados.
Àquela altura, os Estados Unidos já pretendiam ir ao Conselho de
Segurança da ONU em busca de aprovar sanções contra o Irã, o que
conseguiram com o apoio de todo o clube atômico — Rússia, China, França e
Reino Unido.
Hoje, ironicamente, os Estados Unidos perseguem, dentro do chamado
P5, um acordo parecido com o obtido por Brasil e Turquia, porém mais
amplo.
Para Celso Amorim, aceitar a Declaração de Teerã como primeiro passo
teria tido vantagens. Se em 2010 o Irã dispunha de urânio levemente
enriquecido para fazer uma bomba, no início de 2014 tinha para três ou
quatro artefatos. Se Washington sempre perseguiu medidas de “confidence
building” com Teerã, poderia tê-las celebrado muito antes. Além disso, a
população iraniana teria sido poupada do sofrimento das sanções.
“Não podemos esquecer que há na região um Estado — Israel — que,
sabidamente, detém poderoso arsenal atômico. Por isso, temos insistido
que a solução duradoura para a questão reside na conclusão de um acordo
que faça do Oriente Médio uma zona livre de armas nucleares”, escreve o
ex-chanceler no livro.
A iniciativa brasileira em conjunto com a Turquia acabou mais
festejada fora do que dentro do Brasil. Ainda em 2010, Amorim foi
incluído em sétimo lugar na lista dos 100 Maiores Pensadores Globais da
revista
Foreign Policy.
Dois pesquisadores norte-americanos — John Tirman, do MIT, e Malcolm
Byrne, do National Security Archives –, entrevistaram Celso Amorim sobre
a iniciativa em 2013. Eles escrevem justamente sobre oportunidades
perdidas em política externa.
Ao longo de
Teerã, Ramalá e Doha: memórias da política externa ativa e altiva, Celso Amorim demonstra que não há espaço em política externa para o maniqueísmo, o simplismo e o
saber rattling, frequentes nas colunas de jornal brasileiras.
É um prazer vê-lo descrever todas as nuances que informam as decisões de Estado.
O livro é isso: você é convidado a viajar com Celso Amorim pelos bastidores da diplomacia.
Cotejando o conteúdo das memórias de Amorim — e sua ênfase em
soluções negociadas — com a realidade dos dias de hoje, fica
subentendido o “doce triunfo” a que nos referimos no título: o Iraque,
onde o Brasil foi um dos países mais vocais na oposição à ocupação dos
Estados Unidos, foi demolido de tal forma que perdeu controle de parte
do território para o chamado Estado Islâmico; a Síria, onde o Brasil
também rejeitou intervenção externa, está mergulhada em uma guerra civil
que custou a vida de ao menos 200 mil pessoas; na Líbia, a intervenção
da OTAN que derrubou Gaddafi — repudiada pelo Brasil — produziu o caos
em um país que era estável e agora caminha para a desintegração; no Irã e
em Cuba, grosseiramente, os Estados Unidos perseguem o caminho
recomendado pelo Itamaraty.
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O ex-ministro atribui a ousadia da política que praticou no Itamaraty
à liberdade de ação dada pelo presidente Lula. Segundo Amorim, o
ex-presidente é um “asset” da política externa brasileira tão importante
quanto Nelson Mandela foi para a África do Sul.
Sobre as críticas recebidas ao longo dos anos, o ex-chanceler adota
uma postura olímpica: “Intrigava-me o fato de que aqui [no Brasil], ao
contrário [de outros países], as tentativas que fizemos [de participar
das grandes questões] eram em geral consideradas uma intromissão
desnecessária e perigosa em temas que não nos diziam respeito. Eu me
perguntava (e ainda me pergunto) a razão desse apego a uma posição
secundária e de dependência, com raizes aparentemente tão profundas em
nossos formadores de opinião. [...] De certa forma, é como se temêssemos
assumir os ônus, que são uma decorrência natural do crescimento e da
maturidade, e preferíssemos viver ao abrigo de uma metrópole, real ou
imaginária, ainda que isso custe o abandono de oportunidades e o
sacrifício de interesses”.
Traduzindo em português castiço: complexo de viralatas.
Veja abaixo alguns trechos de nossa entrevista com Celso Amorim, feita em Brasília (
para ver a entrevista completa, clique aqui):