Fala-se francês, ou uma derivação dele, o creole.
Tiveram uma ditadura sangrenta, a de Papa Doc, François Duvalier, e a de seu filho, Jean Claude, o Baby Doc.
Foram de lá os
ton-ton macoute, literalmente os “homem do
saco” ou “bicho papão”, como o personagem infantil de terror, a mais
brutal polícia (ou milícia) política da história recente.
Quando derrubaram a ditadura e elegeram um presidente, ele foi deposto e o país entrou em conflito armado.
E, num destes fatos que põem à prova a existência de um Deus, logo
veio um terremoto dantesco, que matou mais de 200 mil e destruiu o que
restava do pais conflagrado.
E o Haiti virou a terra dos “rest avec”, onde pais miseráveis
entregam seus filhos a quem pode, para serem escravos, quase,
simplesmente para que não morram de fome.
Um castigo para um país que ficou independente antes de nós, que
aboliu a escravatura cem anos, quase, antes de nós e que, por estes
“crimes”, tiveram de pagar uma pesadíssima indenização aos seus
ex-senhores franceses, embora os tivessem derrotado no campo de batalha.
Milhares deles estão no Brasil.
Trabalhando duro.
Aqui, perto de casa, dez deles trabalham numa obra de construção de um prédio.
Severos, de pouca conversa – como conversar, com seu ralo português? –
são considerados e respeitados pelos outros trabalhadores.
Não se debocha deles, de sua cor, de sua origem, de sua religião, o vudu.
Sei lá se por medo, até.
A nossa elite acha o Brasil um país de bárbaros, daqueles que teriam de ajoelhar-se diante do
rafinessment francês.
Mas, olhem, que maravilha.
A Universidade Federal da Fronteira Sul, com campus no Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul, estados brancos, conservadores, abriu
ontem
uma inscrição especial para imigrantes haitianos fazerem, aqui, seu curso superior.
135 vagas, distribuídas em cinco
campi da UFFS: Chapecó (68), Laranjeiras do Sul (11), Realeza (12), Cerro Largo (16) e Erechim (28).
A maioria para cursos que “não dão dinheiro” e têm procura mais baixa.
Mas, para eles, um maná dos céus.
Não se tem notícia de que tenha havido na França um “Je suis Haiti” em
um
mea-culpa pelo que fizeram àqueles negros.
Talvez fosse bom exemplo aos franceses.
Devolver, corrigida, a indenização de 90 mil francos que deles se
exigiu para renunciar ao seu direito de Metrópole sobre a antiga e
rebelde colônia. por exemplo.
Sei, porém, que isso me orgulha de meu país.
A grande maioria de nossos antepassados também veio de fora, um dia.
Fugiam da miséria, da perseguição ou, simplesmente, vieram à força, para
serem escravos.
Não quero saber de onde, nem sei se o “cristão novo” de meu Nogueira era antes árabe ou judeu.
Embora tenha horror e nojo de que se assassine alguém, como fizeram
aos cartunistas do Charlie Hebdo, não aderi à a hipocrisia de muitos que
andaram publicando o “Je suis Charlie” sem nunca terem, quando era
necessário, tido um dedo sequer levantado pela liberdade de expressão.
Não se trata de ser condescendente com atos de terror, porque não é a
bala e covardia que se age ou reage contra ofensas, as mais graves que
sejam.
Mas não é porque devam ser repudiados os que fizeram aquelas
monstruosidades que devamos deixar de entender e de lutar para corrigir
todas as outras violências que, ao longo da história, a Europa cometeu e
comete na África, na Ásia e na América.
Não é porque amo a França e tudo o que ela me deu com sua Revolução,
com Napoleão, com Hugo, Diderot, Stendhal, Zola e uma lista infinda de
grandes homens e mulheres, que posso achar “normal” e “democrático” que
se proclame o direito de debochar e agredir a qualquer um ser humano.
Embora, para muitos, pelo fato de serem muçulmanos, possam achá-los
“menos humanos”, como já acharam (ou acham) os negros, os índios, os
amarelos, como fez o general americano William Westmoreland, na Guerra
do Vietnã, ao “explicar” que “os orientais não dão tanto valor à vida
quanto nós”.
Meu direito de dizer o que penso tem um limite: o de ofender o outro,
qualquer outro.Não se ofende a dignidade de alguém, sim, e muito menos
se ofende a dignidade coletiva.
Algo tão simples que aprendi ainda garoto, no ditado repetido por
minha avó: o seu direito acaba onde começa o direito do seu vizinho.
E poucos anos depois, fazendo o que todo guri que se encantou com o
Monteiro Lobato para crianças, fazia quando ficava mais taludinho: lendo
seus escritos adultos.
Trago um, que deveria ser lido por quem acha que não dói a ofensa:
Monteiro Lobato (em 1933)
Há dezesseis anos ocorreu em São Paulo um crime singular.
Estava de guarda no quartel da Luz um soldado pernambucano de nome José Rodrigues Melo.
Era um homem. Embora rude, ninguém no regimento o
vencia em firmeza de caráter. Melo personificava o brio militar — mais
que isso, Melo personificava a dignidade humana.
Estava de guarda, embora tivesse a mão direita
enferma. Os pernambucanos são rijos, e um simples ferimento não bastava
para arredar aquele do serviço.
Começa aqui a tragédia do Brio. O Brio o impediu de ir vadiar à enfermaria. O Brio iria inutilizá-lo para sempre.
Passou por Melo um oficial francês.
Nesse tempo São Paulo vivia cheio de oficiais
franceses, contratados para amestrar nossa gente na arte de matar pela
escola de Saint-Cyr. E como para bem ensinar a arte de bem matar o
primeiro passo é domesticar o aluno, os professores de França não
largavam o instrumento clássico da domesticação: o chicote. E ninguém
lhes fosse lembrar uma tal lei de 13 de Maio, etc., etc.; rir-se-iam com
superioridade metropolitana, silvando: “Fí, donc”!
Ao passar o francês, nosso soldadinho
pernambucano perfilou-se na continência do estilo. Acontece, todavia,
que isto de continência é a colocação do pronome dos militares — coisa
seríssima. Melo errou num pronome. Em vez de fazer a continência com a
mão direita, impedida pela enfermidade, fê-la com a esquerda sã.
Ai! O lambe-feras avança para Melo e chicoteia-o impiedosamente na cara.
— Sale négre!
E a tragédia explode. Tudo quanto havia em Melo
de dignidade humana faz-se maremoto incoercível. Não era mais um homem
quem recebia a afronta, era a raça. Era essa coisa enorme e brutal que
se chama pátria e borbulha dentro do peito de certas criaturas sob forma
de sentimentos explosivos como a nitroglicerina.
As mãos de Melo crisparam-se na Mauser… e lá partiu a bala certeira que iria privar Damasco de mais um perito bombardeador.
Negrel morreu ao lado do chicote infamante — e parece que o chicote em São Paulo morreu com Negrel.
Foi esse o drama. Positivamente drama da raça. Drama da honra. Drama do brio. Drama da dignidade humana.
Ia começar a comédia da covardia.
Não houve em São Paulo um nacional que não fremisse de entusiasmo diante do revide de Melo.
Minto. Houve doze homens que destoaram do coro
unânime. Eram homens que, chicoteados na cara, em vez de reagir meteriam
a cauda entre as pernas e iriam, ganindo, beijar as mãos do
lambe-feras. Nenhum deles tinha dentro de si a raça. Nenhum deles
chegava a homem; meros sub-homens à tout faire.
Pois a coincidência quis que tal dúzia fosse constituir o conselho julgador do honroso crime.
Condenaram-no. E nada mais lógico, nada mais
canino do que essa condenação a trinta anos de prisão celular infligida
ao Brio. Condenaram-no só a trinta porque a lei não admitia penas de
cinqüenta; nem permitia a aplicação das engenhosas torturas com que Luiz
XV, o rei Bien Aimé, durante um dia inteiro divertiu Paris com o
espantoso suplício de Damiens.
O crime de Melo era gravíssimo. Era crime de
lesa-galicidade. E como o medo à França fez calar a imprensa, sofreando
no nascedouro a onda de simpatia nacional, Melo foi apodrecer em vida
num cubículo penitenciário.
E lá vegeta há quinze anos.
Nesse intervalo, quantos criminosos repugnantes
não obtiveram perdão? Quanto cangaceiro que mata pelo prazer de matar
não se gozou duma sólida impunidade? E também, quantos marroquinos e
quantos sírios não foram trucidados cientificamente pelos franceses, por
terem no peito o sentimento de raça que perdeu Melo?
Nossos “dúzias” perdoam tudo menos a dignidade, e
o ensino inoculado pela missão do chicote calou fundo. Se lá na Síria
os mestres bombardeiam os criminosos desse crime, aqui os alunos os
fazem apodrecer nos ergástulos.
Há dias um repórter carioca, em visita à penitenciária de São Paulo, teve ocasião de falar com Rodrigues Melo.
— Está arrependido do que fez? Perguntou-lhe.
— Não! retrucou firmemente aquele brio de aço. E
diga-me o senhor: se fosse iniquamente chicoteado na cara por um
estrangeiro só porque lhe fez continência com a mão esquerda, visto ter a
direita enferma, não faria a mesma coisa? Confesso que pratiquei o
crime fora de mim; mas a privação de sentidos não foi inventada para
nós…
E suspirou com os olhos brilhantes de lágrimas.
— Por que chora?
— Saudades de minha mãe, uma pobre velhinha que
vive a esperar por mim, lá no fundo de Pernambuco. Oitenta e seis anos!…
Vê-la-ei ainda?
Melo não se arrepende, e é diante de firmeza assim que nos renasce a fé na raça.
O desfibramento atual tem que ser passageiro.
Eclipse momentâneo. Nem todos os Melos estão encarcerados; há de
havê-los soltos, e por escassa que seja a semente, a espécie há de
proliferar um dia.
O “não” de Melo ao jornalista é sublime. Diz
“não!” após quinze anos de cárcere. Dirá “não!” ao cabo dos trinta anos
da pena. E se no dia seguinte à soltura um francês o chicotear de novo, a
raça incoercível, transfeita em diamante dentro desse homem, fá-lo-á
matar de novo.
Os anos e as torturas são impotentes para quebrar
a dignidade em quem a recebeu do berço — como coisa nenhuma a dará a
quem dele saiu eunuco.
PS. Há um lindo filme que assisti na TV, de Henrique
Maffei, sobre o drama dos haitianos. Não o achei na net inteiro, mas
posto o trailler, um primor.