Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

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sábado, 4 de fevereiro de 2012

Guerra na agenda. E a ONU, nada?

 

Míssil israelense atinge refugiados palestinos, em 2007. Sendo de Israel, pode?
Inacreditável que a comunidade internacional vá assistir parada às afirmações do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Leon Panetta, veiculadas pelo Washington Post,   de que Israel fará um ataque ao Irã, entre abril e junho deste ano.
Não se trata de ser pró ou contra Israel ou o Irã. Trata-se de uma ofensa inadmissível ao Direito internacional.
A desculpa de que, embora não haja provas, o Irã poderia ter, daqui a alguns anos, armas nucleares, é rota e esfarrapada.
Caso contrário, seria o mesmo que admitir que o Irã atacasse Israel por este país ter programas bélicos nucleares e já possuir a própria bomba.
É legítimo ameaçar – e já fazer – embargo comercial ao Irã e Israel nem ser advertido por seu principal parceiro e protetor?
Benjamin Netanyahu não atacará sem sinal verde dos Estados Unidos.
É preciso, portanto, que a comunidade internacional pressione mais os EUA do que o próprio Israel.
Se não tiver autoridade para prevenir e evitar um ataque que ateará fogo no mundo islâmico, o mundo não tem moral para exigir nada do Irã.
Se vale a lei da selva, vale para todos.

Uma história do Brasil Sem Miséria

 

No dia 11 de junho de 2011, numa noite fria do inverno de Porto Alegre, seu Valdir e sua cadela Princesa dormiram sob um teto e não mais sob a marquise que os abrigava até então. No dia 13 de setembro o Seu Valdir tocou o interfone. Estava trêmulo e com os olhos mareados. Tinha três folhas de papel em mãos e uma carta, da Previdência Social, com um texto que começava assim: “Em atenção ao seu pedido...informamos que foi reconhecido o direito ao Benefício de Prestação Continuada...”. Acionado em um desafio para dar vida nova a um morador de rua, o Estado brasileiro respondeu com políticas de carne e osso.

Porto Alegre - Se os números apresentados pelo governo federal são verdadeiros, então qualquer pessoa deve poder pegar um morador de rua, ou uma pessoa em situação de risco, e inscrevê-la ao menos no Bolsa Família. Depois de pesquisar e acompanhar os dados sobre a redução da desigualdade, a entrada de mais de 30 milhões de pessoas na classe C e a saída de 28 milhões da extrema pobreza, eu pensei que poderia “ver” esses números encarnados. Trata-se de uma população maior que a de muitos países, então não deveria ser muito difícil “tirar alguém da rua”, por exemplo. Teria de ser ao menos possível e relativamente fácil; caso contrário, esses números necessariamente seriam falsificações.

É verdade que muitos dentre os que Jack London chamou de o povo do abismo já se quebraram, e a sua ida para as ruas não é outra coisa que a porta de entrada para todo tipo de quebradeira: a psíquica, a física, a emocional, a social. Os moradores de rua e a população excluída das cidades parecem existir para interpelar, intermitentes, o poder do estado, os governos, a assistência social.

Muitos do que se julgam bem informados leem nas magazines de fofocas semanais que o governo ou os governos seriam entidades comandadas por ladrões manipuladores. Indignados sem saber ao certo o porquê, passam pelos moradores de rua invariavelmente com raiva, quando não tampam os narizes e saem esbravejando contra o governo, que “permite” essa “palhaçada” ou “sujeira” ou “vagabundagem”.

Com tudo isso em mente e de certa forma apesar de tudo isso, eu quis testar o Estado brasileiro para ver se esses milhões tinham “carne”. Eu quis saber se esses números são reais ou ao menos se faz sentido e como pode fazer sentido ter gerado uma ascensão de classe social de 60 milhões de pessoas, em menos de dez anos. E isso sem um Plano Marshall, e sem um New Deal, e com uma política monetária determinada pela finança globalizada, engessada pela trindade do superávit primário, do câmbio flutuante e controle inflacionário via taxação de juros.

Um carrinho de supermercado era a sua casa
Mas essa decisão foi movida por um encontro, mais do que por informação. Eu quis testar o Estado brasileiro depois de ter conhecido o Seu Valdir e a sua filhote, a cadela Princesa, caminhando nas ruas do Bairro Bom Fim, em Porto Alegre. Ele empurrando um carrinho de supermercado que era a sua casa, cheio de coisas, bolsas, cobertores, tudo muito organizado, sob a triunfante Princesa, sentada sobre o carrinho. Pensei que não podia ser pelas razões que imaginava, então perguntei-lhe por que ela estava sobre o carrinho, ao que ele me respondeu, confirmando a hipótese mais estapafúrdia que eu imaginara: “é que ela não tomou todas as vacinas, ainda, e a doutora disse que não era para pôr os pés na rua”. (Uma veterinária, Marília Jaconi, cuidou da Princesa gratuitamente, em solidariedade).

Começamos a conversar e eu perguntei se ele tinha o Bolsa Família. Não tinha. Perguntei se tinha documentos; tinha todos, aliás, além dos documentos, retirou do seu lar móvel uma pasta com uma inacreditável quantidade de exames, laudos, prescrições médicas e medicamentos (ordenados por cor, já que é analfabeto). “As radiografia e aqueles outros, né, de imagem, ficam lá no posto, lá, no meu arquivo”.

O Seu Valdir cuidava da Princesa (que salvou de um espancamento por um drogadito) e cuidava de si mesmo, inclusive tomando antidepressivos, “daquele comprimido branco (prozac), que a doutora, lá do Posto Santa Marta, me deu, pra meus problemas de depressão”. Também não se droga, não bebe. “O que mais o senhor tem?” “Ah”, disse, “tive um joelho esmagado na construção civil, né, quando trabalhava de assistente de pedreiro, também tenho uns problemas de coluna” e seguiu falando. Tinha carteira de isenção de passagem de ônibus, estadual e municipal, como deficiente físico.

Buscando as políticas em carne e osso
Depois de dois encontros e muitas perguntas respondidas, tomei a decisão de buscar a carne ou alguma carne do número de 60 milhões de brasileiros. Fazer esse cara acessar ao menos o Bolsa Família ou quem sabe o BPC, pensei, tinha de ser possível e relativamente fácil. Estávamos em maio de 2011 e hoje, passados mais de 8 meses, digo sem pestanejar que foi fácil, rápido e uma experiência surpreendente.

No dia 13 de maio de 2011, fui com o Seu Valdir à Fundação de Assistência Social – FASC, de Porto Alegre. Tinha na mente a informação de que o programa Bolsa Família havia se ampliado para abranger a população em situação de rua, desde 2010. Tinha também a informação de que o Seu Valdir preenchia requisitos para receber o BPC (embora julgasse esse um desejo irrealizável, um benefício no valor de um salário mínimo, para um cara que tá na rua e caminha?). No dia 23 de maio entramos juntos pela primeira vez no Prédio da Previdência Social, quando se abriu o processo de requerimento do BPC.

Depois de aberto o processo na Previdência, fui impedida de acompanhar o Seu Valdir. Dali em diante eu poderia ter me despedido dele, e esperaria pelas respostas que o Estado iria ou não dar, a contento. Se o Estado denegar, vou à Defensoria Pública Federal, pensei, entro com um mandado de segurança. Em um ano, no máximo, a vida desse cara vai mudar. Porque se não mudar, então esses números todos, todos esses milhões, isso tudo é mentira. Se é verdade que o Seu Valdir foi resgatado, em termos de saúde e alguma qualidade de vida, de integridade física e psíquica, pelo SUS, na pessoa da médica comunitária Isabel Munaretti, também é verdade que não cabe ao SUS tirar ninguém da rua.

Porque existe o SUS e ele funciona
O sujeito pode viver na rua, não ter onde dormir, nem como cozinhar, e ter assistência médica, acesso a medicamentos e exames. Porque existe o SUS e ele funciona. “Quando o senhor vai no Posto Santa Marta (ele tinha uma carteirinha de consulta em mãos), onde deixa o seu carrinho, com a Princesa?”. Respondeu-me que deixava na portaria, porque o vigilante gostava muito de brincar com ela e cuidava do carrinho dele. Na volta dessa consulta, que já estava marcada antes mesmo de nos encontrarmos, ele tocou o interfone de meu apartamento. Queria me mostrar o laudo que a doutora escreveu, recomendando a concessão do benefício. Um laudo escrito com clareza, cheio de detalhes.

Era inacreditável. Cada etapa da história parecia desmontar parte de um certo universo de crenças de classe média que eu cultivava, talvez nem sequer lendo as magazines de fofocas (que não leio nem nunca li), mas simplesmente com aquela percepção meio consolidada, embora pouco vivida, de que o estado não funciona, de que os médicos do SUS não querem saber dos pacientes, de que os funcionários públicos são inoperantes, toda essa tralha simbólica que tornou intuitiva a crença nas decisões, expectativas e apostas unicamente privadas e particulares. Tão extraordinário como cuidar da saúde de sua cadela foi saber que aquele homem, que estava na rua há mais de dez anos, tinha mais exames e diagnósticos e assistência médica do que eu, usuária de plano de saúde.

O acesso ao poder público, por meio da inscrição nos programas sociais não apenas requer um certo tempo, como pode ser insuficiente para a garantia da dignidade. Dizer que o Estado funciona não é dizer, pelo menos não ainda, que no Brasil a miséria deixou de ser uma chaga e a desigualdade, um tumor maligno. Além disso, estamos em Porto Alegre, o estado mais meridional do país, onde o frio é hostil e às vezes mortal, para quem está vulnerável. O inverno se aproximava e o Seu Valdir iria enfrentá-lo, uma vez mais, na rua. Não iria para um abrigo, nem mesmo nos piores dias, dessa vez porque não abandonaria a sua Princesa, ao relento. (O capítulo do descaso do poder público com os animais de estimação dos moradores de rua ainda será escrito com as denúncias cabíveis. A única exceção de que tenho notícia se deu na gestão de Marta Suplicy, na prefeitura de São Paulo, quando abrigos para moradores de rua contemplavam canis).

Uma amiga teve a ideia, diante de minha angústia frente ao frio que se aproximava, de alugarmos uma casa para ele e a cadelinha passarem pelo inverno. Com uns trezentos reais por mês isso seria possível. Mas e a comida, e os cuidados veterinários, e a luz? Estava fora de cogitação. Sozinha, não poderia arcar com isso, ainda mais correndo o risco de os benefícios não saírem. O que estava fazendo, adotando um sem teto? Mas o objetivo não era testar o Estado, além de ajudar esse homem a acessar os seus direitos? Irrefletidamente, a pergunta que fazia era: daqui para a frente eu não tenho mais nada a ver com isso, por que me envolver? Ele só não seria invisível porque, a título do teste em curso, eu aguardava as respostas do estado brasileiro. Até lá, a sua estada na rua não era problema meu.

Generosidade, amizade e solidariedade
A segunda parte desta história é feita da generosidade, da amizade e da solidariedade, como valores cultivados. A sua relação com o governo é inexistente. Testar o Estado teve um efeito rebote: e se as minhas crenças na delegação republicana das tarefas próprias do estado democrático de direito estivessem, eventualmente, a serviço da manutenção de preconceitos e de um universo de crenças mesquinhas de classe média, que mira a pobreza com uma tonalidade de indecência intolerável?

Escrevi um e-mail, contando essa história toda, para 30 pessoas, alguns mais, outros menos, amigos. Pedi ajuda para tirar o Seu Valdir da rua. Disse que ele tinha 53 anos, que era analfabeto, que tecnicamente não tinha como conseguir trabalho, dadas as suas (não) qualificações. E que a marquise onde se abrigava iria levar muita água, nos meses que se aproximavam. Seria um inverno chuvoso, além de frio. Contei que tinha encontrado uma casa, na região metropolitana. A duas quadras da casa da amiga, havia uma casa com pátio para alugar. Pelo menos até que a concessão dos benefícios ocorresse (pensava que esperaríamos 10, 12 meses, sem falar nas eventuais ações judiciais que teríamos de ajuizar), ele teria um teto, se cada um desse uma pequena quantia, seria possível. 20 pessoas responderam, topando a empreitada. Eu alugaria no meu nome, dois seriam fiadores. Cada um daria entre 20 e 50 reais por mês. “Se eu soubesse que com 50 pilas por mês tiraria um cara da rua, já estaria fazendo isso há muito tempo”, disse uma das amigas. Dentre os 20 amigos e parceiros na empreitada há jornalistas, professores universitários, estudantes, advogados e servidores públicos.

Nem todos podiam contribuir com dinheiro, ou queriam fazê-lo. Mas todos, sem exceção, tinham em casa provas de uma certa abundância de consumo que tem acometido a classe média brasileira, para além dos 60 milhões: um colchão de casal novo, uma cama de casal, botijão de gás, um fogão, banco, mesa, cadeiras, sofá, guarda-roupa, máquina de lavar roupa, talheres, panelas, copos, lençóis, toalhas, roupa, muita roupa. Tudo sobressalente. Em dois meses, o Seu Valdir tinha tudo isso e ainda uma televisão de 20 polegadas, colorida, com antena, para ver o jogo do Internacional. Compramos um balcão de pia em aço inox e uma geladeira (o sogro de nossa amiga resolveu trocar de geladeira, para abrigar as cervejas geladas num novo modelo, e vendeu uma geladeira seminova, por 240 reais).

"Isso deve ser o paraíso, né?"
Uma casa metade de madeira, metade de alvenaria, com dois quartos, um pátio na frente e um atrás, uma sala. Ele e a Princesa lá, sob a marquise, estavam prontos, aguardando a minha chegada, numa Kombi, para leva-los. Nervoso, em silêncio, o Seu Valdir olhava para mim como se perguntando se era verdade. Ele queria sair da rua, tinha dito isso, enfático. No dia 11 de junho, numa noite fria do inverno que ainda nem tinha chegado oficialmente, Seu Valdir e sua Princesa dormiram sob um teto. A luz só foi ligada 4 dias depois. Mas naquela noite, com as mãos trêmulas, ele se despediu de nós com a chave da casa nas mãos. Duas horas depois telefonou, para dizer que “isso deve ser o paraíso, né?”. Deve ser.

Em julho ele começou a plantar. Fez uma pequena lavoura, com tomates, alfaces, beterrabas (que chama de batata roxa, talvez porque seja guarani), espinafre, pimentão, temperos, abóboras. Pegou mais três cães, enxovalhados por donos cruéis ou simplesmente abandonados na rua. E os amigos começaram a se beneficiar da colheita desses vegetais feios, miúdos e deliciosos, sem nada de agrotóxico. Montamos um blog, ainda incipiente, para contar a história toda. Queríamos dizer às pessoas que é possível tirar um cidadão ou cidadã da rua, que há dinheiro e política em curso, no país, que é verdade e nós estávamos experimentando o quanto esse fato pode ser transformador na vida de uma pessoa.

Demos entrevistas a estudantes de jornalismo. Rejeitamos aparecer em televisões, invariavelmente dispostas a contar uma história bonita de voluntariado. A mais recente das tentativas veio com o estranho convite, feito pessoalmente a mim, a fim de que eu contasse sobre “a minha luta” para tirar um morador da rua. Todos os convites foram recusados. Não houve luta, nem voluntariado. Há um Estado e um governo que existem, nós testamos e testemunhamos isso. E há amizade e gente para quem a erradicação da miséria também implica mais felicidade e dignidade, inclusive frente a si mesmo, para além das mesquinharias de classe média.

No dia 13 de setembro o Seu Valdir tocou o interfone. Estava trêmulo e com os olhos mareados. Tinha três folhas de papel em mãos: uma com um comprovante de saque, no valor de 1291 reais, e uma carta, da Previdência Social, com um texto que começava assim: “Em atenção ao seu pedido...informamos que foi reconhecido o direito ao Benefício de Prestação Continuada etc....”. Nos abraçamos e tudo o mais que se diga sobre a alegria daquele momento é incapaz de descrevê-lo. Os 1291 reais eram retroativos ao dia 23 de maio, quando se abriu o processo de pedido do benefício.

Hoje, cada um dos amigos que participaram da ação entre amigos colabora oficialmente com 20 reais por mês. Oficialmente, porque a imensa maioria deles se recusou a parar de contribuir ou a diminuir a contribuição. Por decisão de todos, seguimos pagando o aluguel e a luz (valor total chega a trezentos e poucos reais), em troca dos produtos da lavoura orgânica. O Seu Valdir se matriculou e depois abandonou o EJA. Teve ataques de angústia e me telefonou muitas vezes, ansioso, receando que o benefício não saísse. Quando o benefício saiu, comprou uma máquina fotográfica digital, um pequeno cortador de canteiros, para aparar sua grama, um aparelho de som para ouvir música gauchesca e estendeu o braço para a mãe, uma descendente de guarani, também analfabeta.

No momento, ele faz uma dentadura, com o superávit que as contribuições do grupo de amigos geraram. Uma veterinária amiga atende aos animais adotados por ele, inclusive a sua Princesa, a preço de custo. A outra cadela por ele adotada se chama Isabel, “como aquela princesa, né?”. E agora ele ficou sabendo que tem um programa chamado “Minha Casa, Minha Vida”. Eu o informei que as casas são muito pequenas, sem pátio, com quase nenhuma área verde. Ele respondeu: então eu vou ter de construir um lugar, comprar uma pré-moldada, né? Pode ser. Agora, pode ser.

Nenhum de nós precisou fazer isso, ninguém foi forçado e menos ainda foi requerida uma luta ou um grande esforço. A cada colheita, em cada conquista dele, a satisfação e a alegria de quem participa dessa ação entre amigos só se consolida. Há muitos capítulos nesta história e muitos são de angústia e medo. E há também um aspecto que habita um universo simbólico e afetivo de antes das palavras, que também comporta o afeto dele e nosso com os animais domésticos, então não dá para descrever, à altura, o que significa poder dizer que tiramos um cara da rua, que tem carne nos números do governo e, mais ainda, que somos parte dessa carne. Eu decidi testar o Estado e suas políticas e recebi, como resposta, na vida nossa e do Seu Valdir, que o Brasil Sem Miséria é uma realidade e, portanto, que um Brasil sem miséria é possível. Acionado em um desafio para dar vida nova a um morador de rua, o Estado brasileiro respondeu com políticas de carne e osso.


Fotos: Katarina Peixoto (interna) e Eduardo Seidl (capa)