Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

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terça-feira, 28 de maio de 2013

A dissolução dos mitos americanos


Mauro Santayana

Como todos os povos, ele teve e tem grandes pensadores e cientistas, e é claro que houve (hoje provavelmente não haja mais) soldados que se destacaram por sua bravura nas lutas pela independência, na Guerra da Secessão e nas duas guerras mundiais de que participaram. Na primeira delas, durante a batalha de Argonne, na frente francesa, o sargento Alvin York avançou com seu grupo sobre um ninho de metralhadoras, matou 28 soldados alemães, prendeu 132 e se apropriou de 32 metralhadoras. Era um homem do campo, que mal sabia ler, e que se tornou o mais condecorado soldado dos Estados Unidos durante o conflito.
Outro homem do campo — o oposto do protótipo do super-herói americano, posto que de estatura baixa e corpo mirrado — foi Audie Murphy, o mais condecorado militar dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Esse conseguiu retirar algum proveito do mito, tornando-se ator de cinema de talento reduzido mas de boa bilheteria, por seu heroísmo real. Os dois, como sabemos, foram heróis em guerras que podemos considerar justas, ainda que servissem também aos poderosos de seu país.
Fora das guerras citadas —  da Independência, a da Secessão e as duas mundiais — não houve heróis, ainda que tenha havido sacrifícios imensos de seus homens, nos combates travados pelos norte-americanos. Não os houve na guerra de anexação contra o México, nem contra a Espanha — e menos ainda, em decorrência desse conflito, na repressão à luta das Filipinas pela independência.  E ninguém encontrará heroísmo ianque na Coreia, no Vietnã, no Iraque e no Afeganistão. E nem se fale da Somália, de onde os norte-americanos saíram apressadamente, da mesma maneira que deixaram Saigon. No caso do Iraque, o mais liberal dos regimes da região, a mentira foi usada com desfaçatez: Saddam não possuía qualquer arma de destruição em massa, e era inimigo declarado de Al Qaeda — a mesma Al Qaeda que participa da contrarrevolução síria.
Dessas incursões criminosas falam mais as imagens de Abu Ghraib e de Guantánamo com a tortura contra prisioneiros indefesos, e os relatos brutais da chacina de My Lai, no Vietnã.
Ontem, no Cemitério de Arlington, na cerimônia anual pelos que morreram em combate, Obama apelou para o sentimento de patriotismo dos norte-americanos, lembrando que os meios tecnológicos da guerra não bastam para substituir o “valor” dos soldados. Ele ponderou que, pelo fato de que, hoje, os soldados são voluntários, e não conscritos, como no passado, o povo não se sente tão empenhado em solidarizar-se com os seus exércitos. Na realidade, o Pentágono “terceiriza” a guerra e usa mais mercenários do que patriotas nos combates.
Na semana passada, ele dissera, em outra cerimônia militar, que os Estados Unidos devem terminar com a guerra contra o terrorismo tal como ela se desenhara no governo Bush. Ontem, no entanto, insistiu que “a América ainda está em guerra”.
É possível que os mitos em torno da superioridade norte-americana, alimentados pela imprensa, pela literatura e, sobre todos os outros  meios, pelo cinema e pela televisão, estejam sendo dissolvidos pela realidade. Há coisas novas, que nos trazem certa esperança. Entre elas, o primeiro compromisso entre o governo colombiano e as Farc, a propósito da política agrária a ser adotada no país. E, por mais que a França e a Inglaterra advoguem uma intervenção militar na Síria, não parece que Washington e Moscou, cada capital com as próprias razões, aceitem essa nova aventura.
Obama parece sincero em seu apelo ao Congresso para que autorize fechar Guantánamo e em sua disposição de deixar o Afeganistão no ano que vem. Mas isso não o isenta do que seu país fez na Líbia e em sua cumplicidade com Israel contra o povo palestino.
As virtudes do povo americano — e são muitas — só serão conhecidas quando eles esquecerem os mitos e assumirem sua plena humanidade.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Guerras contra o "terrorismo", Urânio e Neocolonialismo


Parlamentar belga Laurent Louis na sessão do Parlamento de 22 / 01 / 2013, derruba vários mitos utilizados para fazer uma guerra e burlar a Convenção de Genebra.
Interesses estratégicos e econômicos estão por trás do apoio da Bélgica a sua irmã França. O Neocolonialismo em marcha está destruindo a democracia de países soberanos, colocando-os nas mãos de grandes corporações, que cada vez mais dominam o mundo.

No DocVerdade

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

O Brasil prepara a sua defesa A nossa defesa é uma tarefa do povo brasileiro, tendo como vanguarda os corpos armados.


Mauro Santayana
  
Sobre a mesa de centro da sala de espera há dois quepes militares, sendo estrangeiro um deles. Isso explica porque o Ministro da Defesa, Celso Amorim, me atenda alguns minutos depois da hora marcada: ele se despedia do Comandante da Marinha do Senegal, contra-almirante Mohamed Sane, que recebera meia hora antes.

O ex-chanceler é homem de boa biografia para ocupar o cargo, porque sempre foi afirmativo em suas posições. Em 1982, presidente da Embrafilme, teve a coragem de financiar, com dinheiro do Estado, a primeira denúncia cinematográfica das torturas cometidas pelos agentes da Ditadura, com o filme “Pra Frente, Brasil!”, de Roberto Farias. Foi, é claro, demitido.

Ao assumir o cargo de Chanceler, no governo Lula, Amorim – na presença da Embaixadora dos Estados Unidos – recomendou aos jovens diplomatas que, acima de tudo, não tivessem medo. E mostrou a que viera, ao nomear, para a Secretaria-Geral do Itamaraty, o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, que fora ostensivamente hostilizado durante o governo anterior, em razão de sua firme atitude nacionalista. Conduziu política externa de afirmação nacional, coerente com a de alguns de seus antecessores, também do regime militar, que foi oposta à dos oito anos anteriores, os de Fernando Henrique Cardoso, e bem próxima de sua atuação quando, no governo Itamar Franco, ocupou pela primeira vez a Secretaria de Estado.


Ministro Celso Amorim diz que defesa do Brasil é tarefa do povo brasileiro
A nossa conversa começou com uma olhada ao mundo. Se, de acordo com a visão de Clausewitz, política internacional e guerra se complementam, com os embates armados se seguindo à movimentação diplomática, Amorim está no lugar certo. Ele, diplomata atento, conhece bem a história política internacional – e não só a partir do Tratado de Westphalia, que é tido como o alicerce do poder mundial de nosso tempo. Seus olhos vão mais atrás, na longa crônica dos conflitos planetários, desde que deles há registros. Enfim, o mundo é da forma que é. Sendo assim, temos que nos preparar, e conviver com a realidade - não com o sonho.

Não queremos outro poder que não seja o de garantir a nossa soberania territorial e o respeito internacional à nossa autodeterminação

Não queremos outro poder que não seja o de garantir a nossa soberania territorial e o respeito internacional à nossa autodeterminação
Todos os países têm uma estratégia de poder, e a mais conhecida delas, no mundo contemporâneo, é a dos Estados Unidos. Os norte-americanos nunca esconderam o seu projeto expansionista, exposto a partir de 1845 – quando se preparavam para a guerra com o México, com a doutrina do Destino Manifesto. A frase foi criada pelo jornalista John Sullivan, ao exigir, em artigo, a anexação do Texas: a “divina providência” dotara o país da missão de dominar o mundo.

JB - Ministro, qual é a estratégia de poder do Brasil?

CA - O Brasil – e isso não é só uma convicção nossa, mas é também do conhecimento da comunidade internacional – não tem o objetivo estratégico de expansão de seu poder no mundo. O que a natureza e a história nos deram é bastante. Não queremos outro poder que não seja o de garantir a nossa soberania territorial e o respeito internacional à nossa autodeterminação. Para isso, é claro, devemos dispor de suficiente capacidade militar de defesa. A nossa estratégia pode ser resumida em uma ideia básica: cooperação ativa com os nossos vizinhos continentais, a fim de manter a paz e a defesa de nossos interesses comuns, e capacidade bélica a fim de dissuadir a agressão de eventuais adversários externos à nossa região, por mais poderosos sejam. Não nos amedrontamos: estamos dispostos a resistir a qualquer agressão com determinação e bravura.  É nesse duplo movimento que o Brasil vem agindo e continuará a agir.

Preocupações com a África

O Ministro lembra que a situação geopolítica do Brasil, com a nossa extensa costa atlântica, vis-à-vis com a África Ocidental, traz-nos responsabilidade e preocupação com essas águas, que sempre singramos, em nossas relações seculares com o outro grande continente meridional. Temos excelentes relações, também de natureza militar, com as novas nações, e não as limitamos àquelas que, tendo sido colonizadas por Portugal, são nossas irmãs históricas. A propósito, faz menção à visita de cortesia do contra-almirante Mohamed Sane, do Senegal, que acabara de receber. No decorrer do encontro o contra-almirante referiu-se a uma ação da Marinha Brasileira, em Cabo Verde, de treinamento de tripulações para atendimento médico e social das populações litorâneas e ribeirinhas, e mostrou interesse em receber a mesma colaboração.

Nesse particular, recordou que, terminado o regime de apartheid na África do Sul, tão logo a última nave de guerra sul-africana deixou o porto da Baía de Walvis, na Namíbia, nele encostou uma fragata brasileira. O Brasil está presente na Namíbia, ajudando seu povo a construir a nação, depois de dura dominação européia, iniciada pelos holandeses, há mais de 200 anos. Está presente na Namíbia, como está na Guiné, em Cabo Verde, em São Tomé e Príncipe e, naturalmente, em Angola. E em Moçambique – do outro lado do continente – isso sem falar em Timor Leste. Enfim, o Brasil não está ausente do mundo.

Amorim é cuidadoso nas respostas. Como Ministro da Defesa cabe-lhe preparar as forças militares a fim de cumprir as decisões tomadas pela Chefia do Governo e do Estado, a partir de uma visão conjunta do país e do planeta. Esse cuidado é ainda mais nítido, quando fala na geopolítica brasileira, a fim de não entrar nas atribuições do Itamaraty – que conduziu por mais de onze anos.

Não lhe é difícil, no entanto, manter, como diretriz mental,  a linha básica da política externa que vem sendo a mesma, desde a Independência, mas de forma mais nítida com a República e com Rio Branco: a da permanente e pragmática defesa da soberania nacional, a do não alinhamento automático a essa ou àquela potência, e da autodeterminação dos povos, dentro das condições objetivas de seu tempo - ainda que eventualmente desprezada por certos governantes, como ocorreu com a doutrina das fronteiras ideológicas da Ditadura. Amorim, como bom diplomata, faz silêncio, quando lembro o alinhamento constrangedor do governo de Fernando Henrique a Washington.

Operação na fronteira

Conversamos dias depois de terminada a Operação Ágata VI que teve ampla repercussão internacional, mas foi pouco divulgada pela imprensa brasileira. O ministro está satisfeito com o desempenho das três forças no exercício de patrulhamento intensivo da fronteira. Ao mesmo tempo em que as tropas se preparam para eventuais combates na defesa do território – não contra os vizinhos, dos quais nada temos a temer – realizam a necessária coerção contra o contrabando, de armas e de drogas. E presta assistência médica e social às populações que vivem quase isoladas nos confins do Oeste e do Norte. Nossas fronteiras terrestres são extensas, e não há como delas cuidar apenas com as corporações policiais. É preciso, assim, ter tropas adestradas para intervir, sempre que necessário.

- Temos convidado os países vizinhos para enviar observadores a essas operações. Alguns os enviaram, outros, não. Houve ainda os que, decidiram realizar operações semelhantes e simultâneas em seu próprio território, e isso tornou a nossa tarefa ainda mais fácil – disse o Ministro.

A nossa defesa é indelegável (...)  Essa é uma tarefa do povo brasileiro, tendo como vanguarda os corpos armados
Amorim, que é homem de formação intelectual inclinada para a cultura, como cineasta que foi (e pai de cineastas), não se sente deslocado entre os militares. Sempre entendeu que a ordem é a razão dos corpos armados, o que significa absoluto respeito à hierarquia. Na verdade, disciplina e hierarquia são atributos profissionais dos soldados, o que não impediu que houvesse sempre chefes militares que atuassem como homens de Estado.

O ministro cita Caxias, um clausewtziano, que, obtida a vitória sobre o Paraguai, com a tomada de Assunção, sugeriu o armistício generoso e o fim das hostilidades – e foi substituído no comando pelo Conde d’Eu. O genro do Imperador, impelido pelo ânimo vingador do Trono, atuou ali com os exageros que conhecemos e ainda nos constrange. Antes disso, na repressão aos movimentos libertários e descentralizadores das províncias, o Duque sempre promovera a anistia aos revoltosos, no momento em que as armas silenciavam.

Amorim não diz nada, mas entende  a pausa de silêncio do entrevistador e a ela responde com a frase lateral:

- As experiências mais recentes estão cimentando, nas Forças Armadas, a opinião de que devem profissionalizar-se ao extremo e dispor dos mais avançados instrumentos de combate para a sua missão constitucional. Sempre repito a ideia de que a nossa defesa é indelegável. Por melhores amigos que tenhamos no mundo, não serão eles os responsáveis pela segurança de nossas fronteiras e de nossas razões. Essa é uma tarefa do povo brasileiro, tendo como vanguarda os corpos armados. As guerras modernas, sempre indesejáveis, mobilizam as nações em seu todo, e isso ficou bem claro na Segunda Guerra Mundial. Nenhuma política de defesa será eficaz se não houver o perfeito entrosamento patriótico entre os cidadãos uniformizados e os civis.

Tecnologia bélica

Entramos na questão da tecnologia bélica, que Amorim prefere qualificar como “de defesa”. Reitero-lhe uma preocupação, exposta neste mesmo Jornal do Brasil, com a desnacionalização da já de si modesta indústria brasileira de armamentos.

O Ministro procura tranquilizar a inquietação nacional com relação ao problema. Reconhece que descuidamos um pouco do assunto e que as dificuldades econômicas nacionais, manifestadas na dívida externa que consumia a maior parte das receitas orçamentárias, impediram o desenvolvimento da indústria estatal de armamentos e munições, e que empresas estrangeiras acabaram se associando às indústrias privadas nacionais do setor, absorvendo algumas delas. Mas pondera que nenhuma nação do mundo dispõe de indústria militar totalmente autônoma, mesmo que disponha de conhecimento para isso. Sempre compra alguma coisa que não consegue ainda produzir ou porque há outras razões, entre elas as da reciprocidade no comércio exterior.

- Já que temos de comprar, por que não comprar dos BRIC?

Amorim explica que estamos mantendo cooperação na área militar com a Índia, com aviões radares, que produzimos e os indianos equipam com os instrumentos eletrônicos. E que adquirimos helicópteros russos de ataque para a Força Aérea. Quanto aos aviões de caça, que muitos davam como certa a aquisição dos Raffale, da França, nada está ainda decidido. Caberá à Presidente (ou presidenta, como prefere o Ministro) a palavra final.

Autonomia da indústria de defesa

- Creio, diz o ministro, que nossa colaboração mais estreita se faz e se fará ainda mais no âmbito do IBAS – Índia, Brasil e África do Sul. Com esses países realizamos exercícios navais conjuntos e trabalhamos no desenvolvimento de equipamentos e petrechos de defesa. São países democráticos, com problemas sociais internos semelhantes e desafios idênticos, cada um deles de grande importância em seus continentes respectivos. E todos os três situados politicamente no Hemisfério Sul, ainda que a Índia esteja acima do Equador.

Mas ele ressalva a necessidade de incentivar a indústria nacional.

- Nossa preocupação maior, no entanto, é com o máximo de autonomia na indústria da defesa. Tudo o que nos for possível fabricar em nosso país, devemos fabricar. Sabemos que, em caso de um conflito, nem sempre podemos contar com alguns fornecedores. A Embraer está vendendo supertucanos para o mundo inteiro e acaba de exportá-los para a Indonésia. Ainda que não estejamos mais produzindo os blindados Osório – que teve uma encomenda volumosa para um país árabe desfeita por pressão de terceiros - começamos a produzir os Guaranis, em Minas Gerais. Estamos, com a Amazul, cuidando da modernização da Marinha, e queremos produzir nossas belonaves aqui mesmo. A Avibrás, por decisão da presidenta, está fabricando lançadores de foguetes. Avançamos na produção de munições não letais, e estamos na vanguarda dessa indústria, mas não descuidamos a produção de cartuchos convencionais, de que somos dos maiores produtores do mundo. A nossa indústria bélica se refaz, para chegar ao nível da necessidade. A indústria bélica é, sobretudo, tecnologia, que em nossos dias, significa eletrônica.

Como uma ideia puxa a outra, entramos na questão da cibernética, como um dos modernos meios de guerra. Amorim diz que não estamos alheios ao problema. Cita uma reunião ocorrida recentemente em Brasília, da qual participaram militares e especialistas civis.

- Nesse encontro, diz o ministro, um professor afirmou que a guerra cibernética já começou. Temos um Centro de Guerra Eletrônica em funcionamento e desenvolvemos pesquisas intensivas nesse campo de conhecimento. Em suma, não estamos desatentos. Sabemos que, sobretudo para a vigilância de nossos dois espaços mais vulneráveis, o da Amazônia, com seus imensos recursos naturais, e as águas atlânticas brasileiras, com o pré-sal, as armas eletrônicas têm prioridade absoluta.

O ministro está otimista. O Brasil cresce em seus entendimentos, na área da defesa, com os demais países do Continente. A Unasul e o Conselho de Defesa continental trabalham em conjunto e de forma a cada dia mais harmônica. Trata-se de uma fatalidade geográfica: a Natureza e a História nos uniram, e devemos dar a essa realidade uma construção política, na qual a autodeterminação de todos e de cada um esteja assegurada, e, da mesma forma, assegurada a paz na região, para servir à paz no mundo.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Santayana e a visita (interesseira) do Rei de Espanha

O Rei caça na África enquanto a Espanha quebra


Extraído do site do Mauro Santayana, jovem blogueiro, que acaba de produzir obra clássica sobre Gilmar Dantas (*): “Supremo, aja !”

A visita do Rei Caçador e a Aliança do Pacífico


Combalida política e economicamente, por uma crise que se aprofunda a cada dia, também do ponto de vista social – pela erosão de sua credibilidade internacional – a Espanha e sua diplomacia parecem não ter aprendido nada com as dolorosas lições dos últimos anos.


De passagem por Brasília, aonde vem oferecer, segundo a imprensa ibérica, onze anos depois de sua última visita ao nosso país, uma “aliança política e econômica sem precedentes”, o Rei Juan Carlos tem como destino final na América do Sul, a cidade chilena de Antofagasta, a fim de agregar-se, como “observador”, no dia 6 de junho, à cúpula presidencial da Aliança do Pacífico.


Essa, para quem não conhece, é uma organização patrocinada pelo México e pela Espanha, que nasce com o claro objetivo de se contrapor à  ampliação da presença brasileira na América do Sul, e que reúne, além do México, o Chile, o Peru e a Colômbia.


Com a Aliança do Pacífico, a Espanha, que não pode participar de reuniões do Mercosul, da UNASUL e da CELAC, nem mesmo como observadora, contaria – depois do rotundo fracasso de suas cúpulas “ibero-americanas”- com novo instrumento para imiscuir-se nos assuntos do nosso continente.


O outro aliado com que contam os espanhóis nesse processo de tentar promover a divisão sul-americana, é o Paraguai, país tradicionalmente pendular em suas relações externas, que joga para beneficiar-se da ajuda ora do Brasil, ora da Argentina, ora da Espanha, dependendo do momento e das circunstâncias.


Não foi por outro motivo que o Paraguai aceitou promover a fracassada cúpula “ibero-americana” de Assunção, em novembro do ano passado,  que terminou com a ausência dos países mais importantes da região, mas contou com a presença justamente do México e do Chile,  co-patrocinadores da “Aliança do Pacífico”.


É também importante registrar, nesse contexto, a posição do parlamento paraguaio que impede, há anos, a expansão do Mercosul, ao não ratificar a entrada da República da Venezuela no Tratado, já aprovada pelos outros membros do bloco.


A diplomacia brasileira, com a chegada do Rei Juan Carlos a Brasília nesta segunda-feira – data em que ocorrerá, em Madri, reunião “técnica” para discutir a questão da expulsão de brasileiros dos aeroportos espanhóis nos últimos anos – tem excelente oportunidade para deixar claro que não concorda com a interferência externa no espaço sul-americano.


Com relação ao Paraguai, qualquer concessão do grupo, no futuro, poderia ser negociada – em todas as instâncias, incluída a parlamentar – de forma a obter rápida aprovação à entrada da República da Venezuela no Tratado do Mercosul. Enquanto isso, nada impede que o Uruguai, a Argentina e o Brasil possam negociar acordos bilaterais de livre comércio com Caracas.


É difícil, tendo em vista a formação histórica de nossos países, que a tentativa de divisionismo entre o Brasil e os países ocidentais do continente tenha êxito.  O México sempre foi uma realidade à parte, menos durante o governo nacionalista de Cárdenas, quando seus atos o incluíam na mesma ordem de pensamento de Getúlio Vargas. Como se recorda, Cárdenas nacionalizou o petróleo em 1938, sem que os Estados Unidos, já em preparação para a guerra, tomasse qualquer medida de retaliação.  Nos últimos trinta anos, no entanto, os governos do México têm sido fiéis vassalos dos Estados Unidos e é, sem dúvida, a serviço de Washington, que sua diplomacia atua ao lado do Chile e de Madri.


Há razões ainda mais antigas que tornam difícil essa aliança da Costa do Pacífico.  O povo peruano não se esquece, até hoje, da ocupação de Lima pelas forças chilenas, em janeiro de 1881, na Guerra do Pacífico, que lhe custou a amputação de parte de seu território (a Província de Tacna) por 50 anos, só recuperada depois de imensos sacrifícios e desgastantes negociações diplomáticas.


A Bolívia sofreu ainda mais com os chilenos: todo o litoral do Pacífico que lhe pertencia (a rica e extensa província de Antofagasta) foi anexado, e La Paz perdeu seu acesso ao oceano.  Esse conflito – provocado pelos interesses ingleses e norte-americanos – não foi completamente superado, e é uma lição de como os estranhos, com suas intrigas, causam as tragédias ao fomentar as guerras entre vizinhos.


Essa mesma interferência estrangeira – no caso, das empresas petrolíferas americanas e inglesas – provocou a carnificina da Guerra do Chaco, entre a Bolívia e o Paraguai, nos anos 30 do século passado.


O México rompeu relações com a Espanha e dela esteve distanciado até o fim do franquismo. Hoje, apesar da submissão de sua política externa aos Estados Unidos, grande parte da opinião pública mexicana rejeita aproximação maior com Madri.


Não há qualquer razão para que a Espanha de Juan Carlos, que vem sacrificando seu grande povo, em favor dos exploradores de sempre (hoje reunidos na globalização do neoliberalismo), venha a se meter no encontro de Antofagasta.

Isso só se explica pela  desesperada busca de apoio internacional, no momento em que sua economia e suas instituições (sobretudo a monarquia) entram em acelerado declínio de credibilidade interna.


Com suas grandes empresas e bancos endividados (só a Telefónica, que atua no Brasil com a marca Vivo, deve mais de 100 bilhões de dólares), reduz-se o prestígio internacional do governo e da monarquia espanhola. O Rei – é o que se diz na imprensa espanhola – vem nos propor “relações políticas e econômicas sem precedentes”.  Em lugar de relações novas e excepcionais, os brasileiros querem apenas que sejam tratados com respeito em território espanhol, quando viajarem à Europa.


A cortesia diplomática recomenda que recebamos bem o Rei – em nome do respeito ao povo espanhol – mas os nossos interesses no mundo recomendam que não nos comprometamos com um governo que está arrochando seu povo com medidas econômicas draconianas, enquanto os ricos continuam saqueando os trabalhadores e retirando seus capitais do país.


A queda  da popularidade de Piñera no Chile, a aproximação crescente do Brasil com a Colômbia, e a iminência de um governo de esquerda no México,   retiram da monarquia espanhola espaço para suas manobras diplomáticas em nossa região.


Provavelmente, o Brasil – como agiu quando da reunião anterior, no Paraguai – se ausente do próximo encontro de Chefes de Estado dos paises “ibero-americanos”, previsto para realizar-se na cidade de Cadiz, na Espanha, em novembro deste ano. Para discutir o futuro dos nossos países contamos com  a UNASUL e o Conselho de Defesa Sul-americano, e, no contexto do espaço ampliado da América Latina, a CELAC. Nós, e nossos vizinhos, não temos nada a fazer do outro lado do Atlântico, assim como a elite neocolonial de nossas antigas metrópoles não têm nada a fazer, institucionalmente, do lado de cá.

www.maurosantayana.com


(*) Clique aqui para ver como um eminente colonista do Globo se referiu a Ele. E aqui para ver como outra eminente colonista da GloboNews  e da CBN se refere a Ele.

sábado, 31 de março de 2012

A cúpula dos BRICS e o boicote da mídia ocidental

A cantilena da “impossibilidade”



Do Blog do Mauro Santayana - 30/01/2012

Mauro Santayana
A cada ano, quando chega a época da Cúpula Presidencial dos BRICS – a quarta edição desse encontro acaba de terminar em Nova Delhi, a capital indiana – torna-se cada vez mais evidente, para o observador atento, o patético esforço da mídia “ocidental” (entre ela boa parte da nossa própria imprensa) de desconstruir a imagem de uma aliança geopólítica que reúne quatro das cinco maiores nações do planeta em território, recursos naturais e população e que está destinada a modificar a o equilíbrio de poder no mundo, no século XXI.

Essa estratégia – com a relativa exceção dos meios especializados em economia - vai de simplesmente ignorar o encontro, à tentativa de diminuir sua importância, ou semear dúvidas sobre a unidade dos principais países emergentes, tentando ressaltar suas diferenças, no lugar do reconhecer o que realmente importa: a política comum dos BRICS de oposição à postura neocolonial de uma Europa e de um EUA cada vez mais instáveis, que se debatem com um franco processo de decadência econômica, diplomática e social.

Para isso, a mídia ocidental – incluindo a “nossa” - ignora os despachos das agências oficiais dos BRICS, principalmente as russas e as chinesas, que ressaltam a importância do Grupo e de suas iniciativas para suas próprias nações – o Brasil inexplicavelmente ainda não possui serviços noticiosos em outros idiomas, coisa que até mesmo Angola utiliza, e muito bem – e se concentra em procurar e entrevistar observadores “ocidentais” ou pró-ocidentais situados em esses países, que se dedicam a repetir a cantilena da “impossibilidade” do estabelecimento de uma aliança geopolítica de fato entre o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, baseados nos seguintes argumentos:

- A “distância” entre o Brasil, a África do Sul, e a Rússia, a índia e a China, como se em um mundo em que a informação é instantânea e um míssil atinge qualquer ponto do globo em menos de quatro horas, isso tivesse a menor importância.

- O fato de a África do Sul, o Brasil e a Índia serem democracias, e a China e a Rússia não serem democracias “plenas ” segundo o elástico conceito ocidental, que não considera a Venezuela uma democracia “plena”, mas o Kuwait ou a Arábia Saudita – autocracias herdadas e governadas pelo direito de sangue - sim.

- A concorrência da Índia, da China e da índia no espaço asiático, como se esses três países não cooperassem, até mesmo no campo militar, e não mantivessem reuniões, há muitos anos, para resolução de problemas eventuais.

- A rotulagem desses países em “exportadores de commodities” como a Rússia e o Brasil, “provedores de serviços”, como a India, e “fábricas do mundo”, como a China, como se essa situação, caso fosse verdadeira, não pudesse ser usada a favor de uma aliança intercomplementar, ou como se Rússia, Brasil e índia também não produzissem manufaturados, e entre eles produtos industriais avançados, como aviões, por exemplo.

É óbvio que uma aliança como os BRICS, que reúne um terço do território mundial, 25% do PIB, e praticamente a metade da população humana não se consolidará, política e militarmente, de uma hora para a outra. Mas também é igualmente claro, que não se trata de um grupo heterogêneo de nações que não tenham nada a ver uma com a outra.

Se assim fosse, o Brasil não estaria fornecendo aviões-radares para a índia, não estaríamos desenvolvendo mísseis ar-ar e terra-ar com a DENEL sul-africana, ou comprando helicópteros russos de combate, ou não teríamos, há anos, um programa de satélites de sensoriamento remoto com a China.

O primeiro traço comum entre os grandes “brics” como a Rússia, a China, a índia e o Brasil, e, em menor grau, a África do Sul, é, como demonstra a sua oposição à política ocidental para com a Libia e a Siria, o respeito ao princípio de não intervenção.

Porque o Brasil, a Rússia, a índia, a China, não aceitam que se intervenha em terceiros países, em função de questões relacionadas aos “direitos humanos”, por exemplo, ou devido à questão nuclear ?

Porque, como são países que prezam a sua soberania, não aceitam que, amanhã, o mesmo “ocidente” que hoje ataca a Libia, a Siria, ou o Irã, venha se unir contra um deles, qualquer deles, por causa de outras questões, como poderia acontecer conosco, eventualmente, no caso dos “ direitos” indígenas, ou da defesa da Amazônia, o “pulmão do mundo”.

Quem tem telhado de vidro não joga pedra nos outros. Que atire a primeira quem nunca pisou na bola. Qual é o país, hoje, que pode acordar pela manhã, olhar-se, enquanto sociedade, no espelho, e dizer que não tem nenhum problema de direitos humanos?

E mais, quem arvorou à Europa e aos norte-americanos a missão de julgar o mundo? Pode um país como os Estados Unidos, que invadiu e destruiu o Iraque, por causa de outro mito intervencionista, o da existência – comprovadamente falsa - de armas de destruição em massa naquele país, falar em direitos humanos ?

Pode uma Nação que inventou e usou, no Vietnam, centenas de toneladas de um veneno químico chamado agente laranja, contaminando para sempre o solo e as águas de milhares de hectares de selva, falar em defesa da natureza e das florestas tropicais?

Ou pode um país que jogou duas bombas atômicas sobre dezenas de milhares de velhos, mulheres e crianças desarmadas, queimando-as até os ossos - quando poderia – se quisesse – tê-las testado sobre soldados do exército ou da marinha japonesa, falar, em sã consciência, de controle de armamento atômico e da não proliferação nuclear?

A realidade por trás do discurso de defesa dos direitos humanos e da natureza é muito mais complexa do que Hollywood mostra às nossas incautas multidões em filmes como Avatar. Por mais que muitos espíritos de "vira-lata" queiram - mesmo dentro do nosso país - que Deus tivesse dado à Europa e aos Estados Unidos o direito de governar o mundo, para defender seu artificial e efêmero “american way of life”, ele não o fez.

Pequenos países, como a Espanha ou a Itália, na ilusão de se sentirem maiores, podem – assim o decidiram suas elites - abdicar de sua soberania política e econômica e bombardear a população civil na Líbia, no Iraque, no Afeganistão, em defesa de uma impossibilidade quimérica como a Europa do euro, e do mandato da “Pax Americana”.

Nações como o Brasil, a Índia, a China e a Rússia, se aferram ao direito à soberania, ao recurso à diplomacia, à primazia da negociação. Não se pode salvar vidas distribuindo armas para um bando descontrolado de açougueiros que espanca e mata prisioneiros indefesos, desarmados e ensanguentados – mesmo que eles se chamem Khadaffi – e obriga jovens muçulmanos a desfilarem em fila, de joelhos, repetidas e infinitas vezes, sob a lente da câmera e a ameaça de armas e chicotes, para mastigar e engolir nacos de cadáveres de cães putrefatos. O futuro da humanidade no século XXI e nos próximos, depende cada vez mais da emergência de um mundo multipolar que se oponha à pretensa hegemonia “ocidental”. E é isso – queiram ou não os jornais e comentaristas europeus e norte-americanos – que está em jogo a cada nova Cúpula dos BRICS, como a de Nova Delhi.

sexta-feira, 23 de março de 2012

O segredo do Sgt. Bales e um impasse afegão

19/3/2012, M K Bhadrakumar, Asia Times Online
http://www.atimes.com/atimes/South_Asia/NC20Df04.html
Apesar de Washington repetir e repetir que a matança em Kandahar, há uma semana, foi resultado de um “surto”, de alguém “aparentemente descompensado” ou “provavelmente desequilibrado”, o povo afegão acredita nas provas reunidas por seus parlamentares, segundo as quais entre 15 e 20 soldados dos EUA participaram dos crimes. O presidente do Afeganistão Hamid Karzai também concordou: a versão dos EUA “não é convincente”.

E dentro do establishment militar afegão predominará a opinião exposta publicamente pelo comandante do estado-maior do exército afegão, Sher Mohammad Karimi, que condenou os soldados dos EUA. O tenente-general Karimi, que visitou a cena do crime, disse que acontecera massacre premeditado consumado por vários soldados norte-americanos.

Com tudo isso, torna-se altamente problemática a assinatura de um tratado estratégico entre Washington e Kabul, prevista para acontecer antes da reunião de cúpula da Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, em Chicago, em maio. Washington espera que Karzai assine na linha pontilhada antes de maio; e Karzai sabe que seu futuro político depende de seu desempenho.

Bernard-Henri Lévy
Em comentário surpreendente, publicado semana passada, o influente criador de casos Bernard-Henri Lévy já disse, em tom de ameaça, que a comunidade internacional jamais deveria ter-se tornado “cegamente dependente do governo corrupto de Hamid Karzai”.[1]

Fazendo eco às ideias de vários comandantes norte-americanos, Henri Lévy pôs-se a criticar furiosamente a retirada planejada para 2014, como “admissão de fracasso e impotência”. Mas disse que prolongar a presença militar além de 2014 também seria difícil, “considerando-se o custo humano”. Assim sendo, a única via possível seria “ficar e sair” – quer dizer: retirar as tropas de combate, “mas deixar lá as bases militares e os instrutores.”

Lévy tem a solução: “Admitir que o Afeganistão não pode ser reduzido (...) a um confronto desesperado entre assassinos Talibã e os membros corruptos do governo Karzai (...). Em Cabul (...) estão também os herdeiros de [o falecido comandante da Aliança do Norte, Ahmad Shah] Massoud. E antes talvez de retirarmos a escada, talvez seja aconselhável aproximar-se dele, numa última tentativa, numa derradeira operação.”

Barack Obama

Karzai mais uma vez volta a ser tratado como se seu sucessor potencial já estivesse pronto e paramentado, à espera, na sala ao lado. O ponto é que, ao longo de uma sequência macabra de eventos ao longo das últimas seis, oito semanas – soldados dos EUA que urinam sobre cadáveres dos Talibã, queimam livros do Corão, massacram civis –, a meta sempre presente é conseguir que Karzai assine um pacto estratégico, que garanta presença militar norte-americana de longo prazo no Afeganistão.

Na 3ª-feira passada, o presidente Barack Obama dos EUA disse, em conferência de imprensa ao lado do primeiro-ministro britânico David Cameron, que Karzai ouvira claramente o que tinha de ouvir.

Mas, depois de Panjwayi, já nada pode continuar reduzido a uma batalha de objetivos, só entre Obama e Karzai.

Moscou entra em cena

Em entrevista exclusiva de 30 minutos, a um canal da televisão afegã, ontem à noite[2], o ministro de Relações Exteriores da Rússia, Sergey Lavrov, repetiu, nem duas nem três, mas quatro vezes, que a Rússia espera um Afeganistão “neutro” – palavra em código para dizer “sem presença militar estrangeira”.

A política russa está andando por duas trilhas. Uma, Moscou espera trabalhar bem próxima de Karzai. “Diferentes de outros [quer dizer “Washington”], nós não ordenamos ao governo [de Cabul] como construir o processo de reconciliação nacional. Sabemos que, além de pashtuns, há uzbeques, tadjiques, hazaras. Todos esses devem encontrar seu caminho até o sistema político, para que se sintam incluídos, não isolados, no processo. Esse é o princípio geral; como aplicá-lo na prática, não cabe aos russos dizer às autoridades afegãs”.

Por outro lado, Lavrov questionou a ideia de que o governo Obama ou a OTAN possam decidir unilateralmente sobre questão de “transição” ou de “fim da missão de combate”.

Exigiu que a Força Internacional de Assistência à Segurança [orig. International Security Assistance Force (ISAF)] demonstre ao Conselho de Segurança da ONU que cumpriu a missão que lhe foi atribuída, antes, evidentemente, de falar sobre retirada dos soldados de EUA e OTAN sem prestar qualquer satisfação à ONU sobre o resultado de sua missão no Afeganistão.

Lavrov destacou que há contradição fundamental na posição dos EUA: de um lado, (1) Washington assume que, sim, a ISAF teria cumprido a missão que recebeu da ONU e diz que retirará os soldados; de outro lado, (2) Washington continua a discutir com Kabul, “muito empenhadamente, o estabelecimento de quatro ou cinco bases militares no mesmo espaço de onde ‘retira’ os soldados, para o período pós-2014.”

Falando firme, Lavrov demarcou o quadro geral:

“Não se entende por que isso deva ser encaminhado desse modo, porque, se você precisa de presença militar, é sinal de que o mandado do Conselho de Segurança ainda não foi satisfatoriamente cumprido. Se você não quer cumprir o mandado do Conselho de Segurança, ou se supõe que o mandato já foi cumprido... para que seriam necessárias as bases militares? Não me parece que haja aí qualquer lógica. Acho também que o território afegão não deve ser usado para implantar espaços militarizados, que evidentemente preocuparão outros povos.

“Não vejo que lógica haveria em supor que, em 2014, o mandado do Conselho de Segurança possa ser dado por cumprido... se ainda for necessário haver lá muitos soldados, dentro das bases militares. Não se entende que finalidade teriam as tais bases militares e, além disso, os EUA estão em contato com países da Ásia Central, pedindo que autorizem presença militar de longo prazo. NÓS [a Rússia] queremos entender o motivo disso tudo, por que as tais bases seriam necessárias. Não acreditamos que esse grande número de bases militares contribua para a estabilidade da região.”

Para Lavrov:

(1) O terrorismo não foi derrotado, no Afeganistão;

(2) Os terroristas estão sendo “empurrados” para regiões mais ao norte em relação aos pontos onde estão sendo infiltrados, “na direção de países vizinhos da Federação Russa na Ásia Central; e não se pode dizer que contribuam para aumentar a estabilidade nessa região”;

(3) As Forças Internacionais de Assistência, ISAF, estão usando para isso a chamada “Rede Norte de Distribuição”. E “nós [a Rússia] acreditamos que essa é nossa contribuição para que seja cumprido o mandado que as ISAF receberam do Conselho de Segurança da ONU. Assim sendo, “temos o direito de exigir” que as ISAF cumpram realmente a missão para a qual foram mandadas para lá, antes de as ISAF declararem, unilateralmente, que alguma “missão de combate” estaria cumprida.

O que Moscou está fazendo é declarar que o governo Obama já não pode ditar a trajetória dessa guerra. A entrevista de Lavrov foi cuidadosamente agendada: essa semana, o Conselho de Segurança da ONU examinará o mandado que deu às ISAF, para avaliar os resultados.

Moscou está acrescentando o Afeganistão à litania de questões em relação às quais adotará abordagem “muscular” – além do sistema de mísseis de defesa que os EUA planejam, da Síria e do Irã. Semana passada, Moscou anunciou que poderia oferecer à OTAN uma base militar em Ulyanovsk, no Volga, para ser usada como armazém temporário de trânsito ferroviário de suprimentos para os exércitos da OTAN-EUA.

Dempsey, comandante do Estado-maior das Forças Armadas dos EUA

O oferecimento dos russos mete o Pentágono e a OTAN num dilema. Do ponto de vista logístico, seria assegurar uma linha vital de suprimentos; mas do ponto de vista geopolítico, Washington ainda tentou considerar a única alternativa que restava. A alternativa era voltar a discutir com o Paquistão, tentando conseguir a reabertura de duas estradas cujo trânsito está fechado. Isso, exatamente, é o que o Comandante do Estado-maior dos EUA, Martin Dempsey acaba de fazer.

Dempsey disse, em entrevista ao “Charlie Rose Show” dia 16/3,[3] que Washington está em contato “diretamente” e “privadamente” com Rawalpindi e que “estou pessoalmente otimista, que podemos reset as relações, de modo que atenda às necessidades dos dois lados.” Mencionou o general Ashfaq Kayani, comandante do exército paquistanês, com o qual teria tido “conversas absolutamente francas, sinceras”. Kayani disse que “fará o que puder”.

Dempsey chegou a jogar até “a carta da Índia”. Disse que o principal desafio para os EUA seria conseguir que os militares paquistaneses cedessem na certeza, enraizada entre eles, de que a Índia é “grande ameaça existencial contra o Paquistão”. (O general nada disse sobre o que Washington planeja fazer para espantar os medos paquistaneses.)

Bem visivelmente, vários modelos sobrepõem-se essa semana. A Rússia planeja jogar a luva e desafiar a estratégia de Washington para o Afeganistão, no momento da avaliação/renovação, essa semana, do mandado que as ISAF-EUA obtiveram do Conselho de Segurança. Os EUA, por sua vez, esperam ansiosamente algum resultado positivo das eleições parlamentares em Islamabad, que leve o Paquistão a reassumir a parceria de sempre com os EUA. E enquanto isso, um terceiro vetor gira, pendurado no ar: a fúria dos afegãos contra o massacre de Panjwayi.

O melhor que pode acontecer é que os afegãos engulam a versão “Sargento Bales”. Bales permanece preso, confinado em cela solitária, no Fort Leavenworth, no Kansas. Por curiosa ironia, exatamente ali, naquele forte, os dois generais, Dempsey e Kayani, foram colegas de classe, na Escola de Estudos Militares Avançados – onde estudaram Teatro de Operações.

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[1] 13/3/2012, Huffington Post, Bernard-Henri Lévy, “In Afghanistan, Between Plague and Cholera, There's Dr. Abdullah”, em http://www.huffingtonpost.com/bernardhenri-levy/afghanistan-abdullah-abdullah_b_1341268.html

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Guerra na agenda. E a ONU, nada?

 

Míssil israelense atinge refugiados palestinos, em 2007. Sendo de Israel, pode?
Inacreditável que a comunidade internacional vá assistir parada às afirmações do secretário de Defesa dos Estados Unidos, Leon Panetta, veiculadas pelo Washington Post,   de que Israel fará um ataque ao Irã, entre abril e junho deste ano.
Não se trata de ser pró ou contra Israel ou o Irã. Trata-se de uma ofensa inadmissível ao Direito internacional.
A desculpa de que, embora não haja provas, o Irã poderia ter, daqui a alguns anos, armas nucleares, é rota e esfarrapada.
Caso contrário, seria o mesmo que admitir que o Irã atacasse Israel por este país ter programas bélicos nucleares e já possuir a própria bomba.
É legítimo ameaçar – e já fazer – embargo comercial ao Irã e Israel nem ser advertido por seu principal parceiro e protetor?
Benjamin Netanyahu não atacará sem sinal verde dos Estados Unidos.
É preciso, portanto, que a comunidade internacional pressione mais os EUA do que o próprio Israel.
Se não tiver autoridade para prevenir e evitar um ataque que ateará fogo no mundo islâmico, o mundo não tem moral para exigir nada do Irã.
Se vale a lei da selva, vale para todos.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

No Golfo, a China pesa para o ‘lado certo da história’

 
 
18/1/2012, M K Bhadrakumar, Asia Times Onlinehttp://www.atimes.com/atimes/China/NA18Ad02.html
Ignorou as ameaças dos EUA nas sanções contra o Irã; superou, numa passada, a divisão entre sunitas e xiitas no Golfo Persa; não deu à Primavera Árabe mais atenção que a mínima necessária; e, simultaneamente, saudou elegantemente os islâmicos. E, tudo isso, em concerto solo. A diplomacia chinesa nada de braçada no Oriente Médio.

O premiê Wen Jiabao está em visita de seis dias à Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Qatar, em movimento de diplomacia de primeiríssima qualidade. A China é provavelmente a única grande potência, dentre os membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, que se pode declarar parceira firme de Síria e Irã, por um lado; e também de Arábia Saudita e Qatar, pelo outro lado.

A China está conduzindo seu festim político e diplomático sem desperdiçar recursos e sem se comprometer em atos ou retórica espetaculosos.

Prática e político-ideológica

Mesmo assim, a China está incrivelmente ativa na região, expandindo sua presença de modo consistente e orientado, de olhos postos no futuro distante.

No “sombrio pano de fundo político e econômico da paisagem internacional” hoje – com os EUA em declínio e a Europa em crise – a China viu uma janela de oportunidades particularmente convidativa para apresentar-se como parceira ideal para o Oriente Médio na “tarefa comum de contornar o impacto negativo do mal-estar econômico global”, de tal modo que os dois lados “possam extrair todas as vantagens de suas respectivas potencialidades e, juntas, trabalhar objetivamente para o desenvolvimento comum” – nas palavras da agência de notícias Xinhua, falando da “enorme importância” do tour de Wen pela região.

Os fatos falam por si mesmos. A China comprou um combinado de 1,15 milhões de barris/dia de petróleo dos três países de maioria sunita agora incluídos no roteiro de Wen. Nos primeiros 11 meses de 2011, o fornecimento saudita à China permaneceu no patamar de 45,5 milhões de toneladas de cru – aumento de cerca de 13% em relação ao mesmo período de 2010.

O Qatar é o maior fornecedor de gás natural liquefeito para a China e, nos primeiros 11 meses de 2011 embarcou 1,8 milhões de toneladas, aumento de 76%. O comércio com os Emirados Árabes Unidos ultrapassa $36 bilhões e o reino está surgindo como o principal porto de transbordo para as exportações chinesas que viajam para África e Europa.

Os investimentos chineses em países árabes chegam a $15 bilhões e o relacionamento econômico se está diversificando, agora que a China estimula fortemente seus projetos de exportação. Em troca, o Golfo Persa é hoje o principal investidor estrangeiro da economia chinesa.

Mas a China também está comprando muito petróleo do Irã. Cerca de 22% de todo o petróleo que a China importa é petróleo iraniano. O comércio com o Irã chegou a 30 bilhões em 2010 e deve chegar a $50 bilhões em 2015. A China dá conta de 10% das importações iranianas e é o principal parceiro comercial do Irã.

O número-alvo que China e países árabes haviam definido para o comércio entre eles, para 2015, é $200 bilhões. Mas ao final de 2011 as trocas comerciais já chegavam aos $190 bilhões.

Wen testemunhou na Arábia Saudita a assinatura de um contrato entre a China Petrochemical Corporation (Sinopec) e a saudita Aramco, para construírem, até 2014, uma refinaria que custará $8,5 bilhões, com capacidade para refinar 400 mil barris por dia, em Yanbu, no litoral do Mar Vermelho, ações distribuídas na proporção de 35,5%-62,5% respectivamente. E um memorando de entendimento foi assinado entre a gigante petroquímica saudita SABIC e a Sinopec para construir polo petroquímico em Tianjin.

Os dois países assinaram também acordo de cooperação nuclear, durante a visita de Wen. A Arábia Saudita tem planos para construir 16 reatores nucleares até 2030; e a China investe num plano ambicioso de converter-se em exportadora de usinas nucleares.

Mas a China não está confiando só nos estreitos laços que a ligam ao Irã. Semana passada assinaram-se em Pequim várias declarações que reafirmam a importância do relacionamento Sino-Iraniano. Na prática, ignoraram-se todas as ‘exigências’ dos EUA com vistas a diminuir as vendas de petróleo iraniano e todas as ‘sanções’ recentemente ‘impostas’.

Washington retaliou contra Pequim na 5ª-feira, com sanções contra a chinesa Zhuhai Zhenrong Corp, acusada de estar vendendo petróleo refinado ao Irã. A China imediatamente manifestou “forte insatisfação e firme oposição” ao gesto dos americanos e declarou a decisão de manter “cooperação normal com o Irã em energia, economia e comércio”.
Um fator de estabilidade
Evidentemente, o movimento de Washington foi simbólico, feito às pressas e manifesta algum desespero – a empresa Zhuhai Zhenrong ‘punida’ não tem propriedades nos EUA que possam ser ‘congeladas’ – e visou, de fato, a marcar a chegada de Wen em Riad, chamando a atenção para os laços entre Pequim e Teerã, com quem Riad compete por influência na região.

A questão é que os sauditas estariam supostamente trabalhando ‘a mando’ de Washington, para estreitar laços com a China e arrancar Pequim dos braços de Teerã. Até que Riad e Pequim apareceram com agenda própria, na qual se preservou bom espaço para relações dos dois lados com o Irã.

A projetada refinaria Yanbu será construída na província leste da Arábia Saudita dominada pelos xiitas. A Arábia Saudita está muito preocupada com crescentes agitações nas províncias do leste (que teme que Teerã esteja estimulando) e, mesmo assim, a China está investindo num grande negócio conjunto exatamente ali.

O que ninguém deixará de observar é que os sauditas convidaram os chineses para visitá-los, apesar de todos os fortes laços que unem chineses e iranianos. Obviamente, os sauditas já estão tratando os chineses como fator de estabilidade na região.

Pode-se supor, inclusive, que a China venha a desempenhar algum papel na rivalidade sauditas-iranianos, num cenário futuro. Seja como for, durante sua estadia na Arábia Saudita, Wen bateu sempre na estabilidade regional como fator imperativo. Soou como música aos ouvidos sauditas.

Interessante, também, o que se leu num comentário sobre a viagem de Wen ao Golfo Persa, no China Daily, jornal oficial:

Ao contrário dos países ocidentais, que tendem a tentar impor seus próprios valores e seus sistemas políticos ao resto do mundo, a China interage com o mundo árabe sob os princípios da igualdade, respeito mútuo e busca de mútuas vantagens.

Os EUA, na grande maioria das situações, tende a favor de Israel no conflito com os palestinos, o que enfurece muitos, no mundo árabe. Bem diferente disso, a China sempre apoiou as justas demandas dos palestinos nos fóruns mundiais, o que valeu aos chineses o respeito do mundo árabe. Ao longo da história da amizade sino-árabe, que remonta à antiguidade da ancestral Rota da Seda, a China jamais tentou impor qualquer agenda política exclusiva, à custa do Oriente Médio ou de qualquer outro povo.

A posição da China tem sido cada vez mais bem acolhida no mundo árabe e muitos estados árabes optaram por “Olhar Rumo Leste” em busca de cooperação e apoio na negociação das grandes questões regionais e mundiais.
[1]

Um futuro ‘verde’

Wen disse ao rei Abdullah que a China respeita o sistema político da Arábia Saudita, seu modo de desenvolvimento, sua cultura e suas tradições. Em resposta, o rei Abdullah propôs que se instalasse uma comissão de alto nível para acompanhar a cooperação entre os dois países, nos campos político, econômico, cultural e de segurança. O rei Abdullah disse, pensando cada palavra: “O objetivo da política exterior da Arábia Saudita é manter a paz e a estabilidade regional.”

O rei acrescentou: “Arábia Saudita e China gozam de alto nível de confiança mútua e partilham noções similares sobre várias questões. Os sauditas desejam ampliar as consultas e a coordenação com a China.”

Em resumo, o tour de Wen deu grande destaque à noção de que a China considera-se “parceira” no Golfo Persa. E deve-se prestar atenta atenção, também, ao fato de que a China não está em conflito com o Islã político no Oriente Médio. Em comentário no People’s Daily, semana passada, lia-se:

A Primavera Árabe mudou a cor principal da situação política no mundo árabe e formou um esplêndido cenário “verde” que preocupa – e assusta – o ocidente. Mas não há aí nenhum tipo de “atraso” [desenvolvimento regressivo] no curso da modernização e secularização dos árabes. O que aí se vê é uma retração da excessiva secularização de longo prazo e da secularização dos regimes agora derrubados; e o retorno de culturas tradicionais. Essa aspiração parece ser aspiração de vários povos. Evidentemente, o mundo deveria buscar mentalidade mais compreensiva e mais inclusiva, e dar boas vindas a todos os povos. Afinal de contas, é direito dos povos árabes elegerem os governos que desejem eleger.

A inclusão do Qatar no itinerário de Wen é ao mesmo tempo intrigante e reveladora de algumas das sutilezas do pensamento chinês. Sabe-se que o Qatar é fonte principal do gás natural liquefeito que a China consome. Mas o Qatar também teve papel central na mudança de regime na Líbia e, ao que se sabe, está dedicado a derrubar o governo do presidente Bashar al-Assad na Síria.

A China opõe-se à intervenção ocidental na Líbia e na Síria. Mesmo assim, apesar de Rússia e China terem coordenado seus movimentos no Conselho de Segurança da ONU nos casos de Líbia e Síria, nem por isso Pequim vê-se impedida de buscar parceria energética com o Qatar.

É atitude que contrasta fortemente com as relações entre Rússia e Qatar (hoje em frangalhos) – desde que o embaixador russo foi detido e revistado há algumas semanas no aeroporto de Doha, por agentes de segurança, em movimento que parece ter sido ato deliberado de provocação ou ofensa a Moscou. Em resumo, a China está avançando. Conta com posicionar-se do “lado certo da história” no Golfo Persa.

O Qatar teria gostado de outro comentário publicado no People’s Daily no sábado, que zomba levemente da recente visita do porta-aviões russo “Admiral Kuznetsov” ao porto sírio de Tartus.

O comentário deslocou a impressão predominante sobre o apoio russo à Síria e insistiu que, ao contrário, os russos nunca agem movidos por sentimentos de ‘amizade’ com outros países; que os russos sempre agem exclusivamente em nome de seus interesses estratégicos; e que a atual “postura diplomática” dos russos em relação à Síria visaria essencialmente a “alertar todas as forças políticas, para que não agredissem interesses russos.”

O mesmo comentário dizia que o “Admiral Kuznetsov” poderia ter ganho experiência local, no caso de a Rússia precisar evacuar da Síria cidadãos russos, ou caso tenha de “proteger patrimônio russo”. Em resumo, o comentário (publicado na véspera da viagem de Wen) parece ter sido plantado para sugerir que a coordenação entre russos e chineses no caso da Síria é coordenação limitada; e que os dois países, cada um a seu modo, continuam a trabalhar a favor de seus respectivos interesses.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

URINANDO SOBRE AS NOSSAS CABEÇAS


Às vezes um ruído cênico sacode a monotonia da violência bélica norte-americana.Risos sobre cadáveres, por exemplo. Soldados urinando sobre corpos sem vida. A barbárie assusta, mas não é um ponto fora da curva institucional. Na nebulosa dissipação do último dia de 2011, o democrata eleito com a promessa de fechar Guantánamo, revalidou, por exemplo, o Ato de Autorização de Defesa Nacional que 'legaliza' a existência do campo de concentração e proíbe o ingresso de seus prisioneiros no território  americano; impede-os assim de recorrer ao direito ao habeas corpus, ao veto a prisão sem evidencia formal de crime e a outros marcos de legalidade que distinguem uma democracia de um estado de exceção. Dias depois, em cinco de janeiro, com a mesma ambígua desenvoltura, Obama anunciaria cortes no orçamento da defesa  compensados, advertiria em seguida, pela ênfase em operações secretas. Leia-se:  atos de sabotagem, guerra cibernética e ataques a alvos específicos 'de efeito imediato'. A julgar pelos assassinatos em série que já mataram quatro cientistas ligados ao programa nuclear iraniano, vetado pelo Império, a nova doutrina tem eficácia comprovada. O alívio aterrador de bexigas militares sobre cadáveres talebãs ampara-se, portanto, em precedente à altura: o jorro contínuo de cinismo institucional despejado pela grande bexiga do norte sobre as nossas cabeças. (LEIA MAIS AQUI)




Primavera Árabe de 2012: mais tempestades do que flores

A relação do Ocidente com o Oriente Médio é antiga e sempre teve como base os interesses da Europa e, mais recentemente, dos EUA. 2012 será de grande complexidade para a região. Salvo melhor juízo, será menos “primavera” e mais “outono”, repleto de tempestades. E serão as forças do Ocidente, principalmente os EUA, que definirão a velocidade da democratização e a reconquista da dignidade do mundo árabe. Mas, apenas se for conveniente ao seu próprio projeto. O artigo é de Mohamed Habib.

Quando o tunisiano Mohamed Bouazizi ateou fogo no próprio corpo num gesto de protesto, acabou, sem querer, acendendo as chamas de revoltas populares em vários países árabes. Uma análise coerente dessas revoltas e suas perspectivas para 2012, deve considerar duas questões : a geopolítica e a econômica. Além disso, as interferências externas, em especial as do Ocidente dominante, que influenciam cada país do mundo árabe.

A relação do Ocidente com o Oriente Médio é antiga e sempre teve como base os interesses da Europa e, mais recentemente, dos Estados Unidos. A fase atual, é resultado dos interesses do Ocidente pós Primeira Guerra Mundial e envolve a localização e os recursos energéticos do mundo árabe. Os EUA, 3º maior produtor de petróleo e 2º maior de gás natural do planeta, não é visto como produtor e sim como grande consumidor, pois precisa do dobro da sua produção para garantir seu padrão de vida. A Europa, por sua vez, depende fortemente do gás e do petróleo árabes, principalmente da Líbia.

Para manter o consumo energético nos países árabes em cerca de 3%, foi crucial a criação de governos tiranos e/ou corruptos, protegidos pelo Ocidente, para governar os povos da região. Os países árabes foram agrupados em duas categorias, os produtores e os não produtores de petróleo e gás natural. Os primeiros propiciaram um padrão sócio-econômico mais confortável ao seu povo, ao passo que os segundos, ofereceram a miséria e a opressão. Ambos tinham em comum o estabelecimento de regimes não democráticos e de não desenvolvimento.

O Egito, um país rico por sua agricultura, turismo, pedágio do Canal de Suez e indústria, conta hoje com mais de 42% de seu povo abaixo da linha da pobreza e uma dívida externa de 32 bilhões de dólares. Com o sucesso dos levantes populares, a mídia britânica revelou que o ditador Mubarak, em 30 anos de poder, acumulou mais de 70 bilhões de dólares em bancos europeus. O Egito é considerado estratégico, pois em 42 anos, tanto Sadat quanto Mubarak, foram importantes interlocutores e representantes dos interesses do Ocidente e de Israel no Oriente Médio. Além disso, o Canal de Suez, que liga o Mediterrâneo com o Mar Vermelho, é de grande importância para as navegações bélicas e comerciais.

A Líbia é fundamental para o abastecimento energético da Europa, o que justifica a intervenção da OTAN e a participação na queda e na morte de Kaddafi. Uma situação equivalente à intervenção dos EUA no Iraque e à morte de Saddam Hussein. O Iêmen, embora um país pobre, possui localização geográfica que permite total controle das navegações marítimas na conexão do Mar Vermelho com o Golfo de Aden e o Oceano Índico. O ditador Abdullah Saleh, que após meses de protestos e muita violência contra seu povo, terminou saindo no final de 2011, não sem antes deixar o seu vice-presidente no comando do estado que continua baixando a repressão. Saleh é um aliado fiel do Ocidente e dos monarcas da Península Arábica.

O que ficou claro nas declarações do o embaixador dos EUA naquele país, que classificiou de “provocações desnecessárias” as manifestações civis contra o regime e os seus assassinatos. A Síria não conta com recursos energéticos no seu território e sua localização geográfica não tem grandes significados geopolíticos. No entanto, Síria e Irã representam as últimas duas bases de aliados do eixo Rússia-China, que representam forças antagônicas aos EUA.

No início dos levantes árabes, EUA e Europa não expressavam suas preocupações e declararam apoio aos ditadores. Com o crescimento dos movimentos e o enfraquecimento dos regimes, o Ocidente passou a apoiar os movimentos, fornecendo armas e proteções aéreas. Um exemplo marcante é o apoio dos EUA à Junta Militar que governa o Egito atualmente. Os EUA não só silenciam diante dos massacres das últimas semanas contra os manifestantes civis, como também fornecem armas para essa opressão. As forças armadas, que assumiram o comando temporariamente após a queda do ditador Mubarak, tentam manobras desesperadas para continuar no poder. Porém, esta é uma situação que a sociedade egípcia não mais aceitará.

Diante deste quadro, 2012 será de grande complexidade para o Oriente Médio. Salvo melhor juízo, será menos “primavera” e muito mais “outono”, repleto de tempestades e destruições. E serão as forças do Ocidente, principalmente os EUA, que definirão a velocidade da democratização e a reconquista da dignidade do mundo árabe. Mas, apenas se for conveniente ao seu próprio projeto.

(*) Mohamed Habib é professor da UNICAMP e Vice-presidente do Instituto de Cultura Árabe (ICArabe)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Reconhecendo as “Não-pessoas”


Tradução de Heloisa Villela, no Vi O Mundo

No dia 15 de Junho, três meses depois do começo dos bombardeios da OTAN na Líbia, a União Africana apresentou ao Conselho de Segurança da ONU a posição Africana sobre o ataque – na realidade, bombardeio de seus tradicionais agressores imperiais: França e Grã-Bretanha, junto com os Estados Unidos, que inicialmente coordenaram o ataque, e outras nações, marginalmente.

É preciso relembrar que houve duas intervenções. A primeira, sob a Resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU, adotada em 17 de Março, estabeleceu uma zona de exclusão aérea, um cessar-fogo e medidas de proteção aos civis. Depois de poucos momentos, essa intervenção foi deixada de lado, pois o triunvirato se juntou ao exército rebelde, servindo de força aérea para ele.

No começo do bombardeio, a UA conclamou esforços diplomáticos e negociações para tentar evitar uma catástrofe humanitária na Líbia. Em um mês, à UA se juntaram os países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e outros, inclusive a maior força regional da OTAN, a Turquia.

Na realidade, o triunvirato estava bastante isolado nos seus ataques – usados para eliminar o tirano imprevisível que eles apoiaram enquanto era vantajoso. A esperança era ter um regime que acatasse melhor as exigências do Ocidente com relação ao controle sobre os ricos recursos da Líbia e, talvez, oferecer uma base africana ao Comando militas dos Estados Unidos para a África – AFRICOM –, por enquanto confinado em Stuttgart.

Ninguém sabe dizer se o esforço relativamente pacífico proposto pela Resolução 1973 da ONU, que tinha o apoio de quase todo o mundo, teria sucesso em evitar a terrível perda de vidas e a destruição que se seguiu na Líbia.

No dia 15 de Junho, a UA informou ao Conselho de Segurança que “ignorar a UA por três meses e levar adiante os bombardeios da terra sagrada da África foi desrespeitoso, arrogante e provocador”. A UA foi adiante e apresentou um plano de negociação e policiamento dentro da Líbia, pelas forças da UA, além de outras medidas de reconciliação – para nada.

O informe da UA para o Conselho de Segurança também relatou o contexto das preocupações dela: “A soberania tem sido a ferramenta da emancipação dos povos da África, que estão começando a forjar novos caminhos depois de séculos predatórios com o tráfico de escravos, o colonialismo e o neocolonialismo. Assaltos descuidados à soberania dos países da África, portanto, significam abrir feridas recentes no destino dos povos africanos”.

O apelo africano pode ser encontrado no jornal indiano Frontline, mas praticamente não foi ouvido no Ocidente. Isso não é uma surpresa: os africanos são “não-pessoas”, para adaptar um termo de George Orwell para os que não estão qualificados para entrar na História.

No dia 12 de Março a Liga Árabe ganhou status de pessoa ao dar apoio à Resolução 1973 da ONU. Mas essa aprovação logo desapareceu, quando a liga se recusou a apoiar o subsequente bombardeio Ocidental à Líbia.

No dia 10 de Abril, a Liga Árabe voltou à categoria de “não-pessoa” ao pedir à ONU que impusesse uma zona de exclusão aérea sobre Gaza e levantasse o embargo israelense, o que foi virtualmente ignorado.

Isso também faz muito sentido. Os palestinos são os típicos “não-pessoas”, como vemos regularmente. Considere a edição Novembro/Dezembro da revista Foreign Affairs, que começa com dois artigos sobre o conflito Israel-Palestina.

Um, escrito pelos oficiais israelenses Yosef Kuperwasser e Shalom Lipner, culpa os palestinos pela continuação do conflito, por se recusarem a reconhecer Israel como um estado Judeu (para ficar em dia com a norma diplomática: Estados são reconhecidos, mas não setores privilegiados dentro deles).

O segundo, do estudioso americano Ronald R. Krebs, atribui o problema à ocupação israelense; o subtítulo do artigo é: “Como a Ocupação está Destruindo a Nação”. Que nação? Israel, claro, ferida por ter suas botas nos pescoços das “não-pessoas”.

E não ficamos sabendo de nada a respeito de centenas de detidos, mantidos em prisões israelenses, por longos períodos, sem que haja uma acusação contra eles.

Entre os presos não mencionados estão os irmãos Osama e Mustafa Abu Muamar, civis sequestrados por forças de Israel que assaltaram Gaza City no dia 24 de Junho de 2006 – um dia antes da captura de Shalit. Os irmãos foram “desaparecidos” dentro do sistema carcerário de Israel.

Não importa o que se pense sobre a captura de um soldado de um exército que ataca, sequestrar civis é simplesmente um crime mais sério –- a não ser, claro, que eles sejam “não-pessoas”.

Para se ter certeza, esses crimes não se comparam com outros, entre eles os constantes ataques aos cidadãos beduínos de Israel, que vivem no sul do deserto de Negev.

Eles estão, novamente, sendo expulsos sob um novo programa desenhado para destruir dúzias de vilas beduínas para as quais foram forçados anteriormente. Por razões benignas, claro. O gabinete israelense explicou que 10 assentamentos judeus seriam fundados ali “para atrair uma nova população para o Negev” – ou seja, para substituir as “não-pessoas” por pessoas legítimas. Quem se oporia a isso?

As estranhas crias dos “não-pessoas” podem ser encontradas por toda parte, inclusive nos Estados Unidos: nas penitenciárias que são um escândalo internacional, nas cozinhas públicas, nas favelas em decadência.

Mas os exemplos enganam. A população mundial como um todo balança na beira de um buraco negro.

Somos relembrados diariamente, até  mesmo por incidentes pequenos –- por exemplo, no mês passado, quando os republicanos da Câmara dos Deputados barraram uma reorganização praticamente sem custos que investigaria as causas das variações extremas de clima em 2011, oferecendo assim melhores previsões do tempo.

Os republicanos temiam que essa pudesse ser uma brecha para “propaganda” sobre o aquecimento global, um não-problema, de acordo com a catequese recitada pelos candidatos à indicação para concorrer à Casa Branca do que, no passado, foi um partido político autêntico.

Triste espécie.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Agora, é a vez da Síria


30/8/2011, M. K. Bhadrakumar, Voltaire.nethttp://www.voltairenet.org/It-is-going-to-be-Syria-s-turn

Se a semelhança entre os cenários da devastadora mudança de regime no Iraque e na Líbia significa alguma coisa, o futuro da soberania de Bashar al-Assad na Síria pode estar por um fio. O xis da questão – lembro eu – é que mudar o regime na Síria é providência absolutamente central para todos os objetivos dos EUA no Oriente Médio. As coisas estão de tal modo interligadas, que vários objetivos estratégicos podem ser obtidos numa só cajadada, dentre os quais, e importante, diminuir muito a influência de Rússia e China na região. Não é oportunidade que Washington deixe passar.

A imagens que chegavam de Trípoli ontem eram fantasmas estranhamente semelhantes a outros, já vistos. Buzinas soando, Kalashnikovs disparadas para o ar, jovens e crianças andando sem rumo pelas ruas de casas e prédios em ruínas, fotógrafos e cinegrafistas ocidentais vorazmente recolhendo fragmentos de frases em inglês de pé quebrado, da boca de qualquer personagem local disposto a divulgar os imorredouros ideais da Revolução Francesa de 1789 e da Magna Carta. Outro espaço, outro tempo, as imagens eram as mesmas, mas não se consegue localizá-las exatamente. Poderiam ser fiapo de lembrança, que se esgueira dos porões da mente, ou esquecido ou expulso da consciência? Agora, dia seguinte, já não há dúvida: os canais de televisão reprisaram cenas de Bagdá em 2003.

A narrativa que chegava de Trípoli é extraordinariamente semelhante a que recebemos de Bagdá: um ditador brutal e megalômano, que parecia onipotente, é derrubado pelo povo, e uma onda de euforia varre uma terra exaurida. Com as celebrações, o benefactor-cum-liberator ocidental avança para o centro do palco, assumindo seu posto no ‘lado certo da história’. No século 19, teria dito – no Quênia ou na Índia – que carregava sobre os ombros “a carga que cabe ao homem branco”. Hoje, diz que traz avanços ocidentais a quem clama por eles.

Mas é só questão de tempo, antes que a narrativa esvaia-se, e realidades aterrorizantes se imponham. No Iraque, vimos como uma nação que há apenas 20 anos começava a avançar rumo a padrões de desenvolvimento da OECD foi empurrada de volta à miséria e à anarquia.

Golpe de estado

A oposição democrática líbia é mito fabricado pelos países ocidentais e por governos árabes ‘pró-Ocidente’. Há fissuras profundas dentro da oposição líbia, e facções de todos os tipos, de liberais genuínos a islamistas e ao mais claro lumpenproletariat. E há as divisões entre tribos. As disputas internas entre as várias facções parecem receita para outra rodada de guerra civil, enquanto facções que não têm nem legitimidade nem autoridade disputam o poder.

A dimensão dessas fissuras apareceu muito clara, mês passado, quando o comandante-em-chefe Abdul Fattah Younes foi arrancado do front sob falso pretexto, afastado de seus guarda-costas e brutalmente torturado e morto pelos ‘rebeldes’ militantes de uma facção islamista.

A imprensa ocidental começou a discutir abertamente o papel da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), que arquitetou a intervenção e novamente interveio para desequilibrar o poder bélico contra Muammar Gaddafi. A ‘revolução’ mais parece golpe de estado instigado por Grã-Bretanha e França. Mesmo assim, a aliança ocidental precisou de terríveis longos seis meses para levar seus ‘rapazes’ até Trípoli. Gaddafi ainda os mantém ocupados, depois de sua saída em grande estilo. A espantosa verdade é que cabe a Gaddafi decidir quanto parar de lutar, apesar de ter homens e equipamento para prolongar por bom tempo o atual desafio.

O que Gaddafi decida fazer nas próximas horas terá grande influência sobre o acontecerá depois. Se haverá pesado derramamento de sangue, provavelmente haverá vingança dos vitoriosos sobre os vencidos.

Em termos políticos, a queda iminente de Gaddafi não implica vitória da oposição. Sem o apoio tático da OTAN, a oposição teria sido derrotada. A grande questão, portanto, é que papel terá a OTAN, na Líbia, no futuro. E há também a questão de se, agora, a OTAN dirigirá suas atenções à Síria.

A OTAN cerca (e ocupa) o mundo árabe

Cumprida com sucesso a missão de derrubar o governo Gaddafi na Líbia, seria de esperar que OTAN deixasse o teatro líbio. A Resolução n. 1.973 da ONU foi violentada. Mas que ninguém espere a retirada da OTAN. O leitmotif da intervenção ocidental na Líbia foi o petróleo líbio.

Movimento recente de Gaddafi, de aproximar-se dos BRICs (Brasil, Rússia, Índia e China) e trazê-los para o setor líbio de petróleo, obviamente ameaçou os interesses ocidentais.

A retórica pró-democracia que emana de Londres e Paris sempre soou como toada oca. A intervenção da OTAN na Líbia extrapolou os limites da legislação internacional e da Carta das Nações Unidas. A OTAN está hoje na ridícula posição de ter de extrair a legitimidade necessária para permanecer na Líbia, dos mesmos sinistros elementos que subiram ao palco como forças ‘democráticas’, mas não têm apoio popular – sob o pretexto de que ainda há trabalho a fazer.

Há, sim, ainda, trabalho a fazer. Pode ser, outra vez, do começo ao fim, o Iraque e o Afeganistão. Mais cedo do que se supõe, aparecerá resistência contra a ocupação estrangeira. As tribos líbias têm fama na história e no folclore da resistência. Por outro lado, um grande paradoxo da geopolítica é que quanto mais se aprofunde a anarquia, mas a ocupação encontra pretexto ideal. A história da Líbia não será diferente da de Iraque e Afeganistão.

A intervenção ocidental na Líbia introduz novos padrões na geopolítica do Oriente Médio e África. Levou a OTAN até o leste do Mediterrâneo e para dentro da África. É parte essencial da estratégia dos EUA pós-Guerra Fria, para converter a aliança transatlântica em organização global com capacidade para atuar nos ‘pontos quentes’ globais, com ou sem autorização da ONU. Não há dúvida alguma de que, no ‘novo Oriente Médio’, a OTAN terá papel de pivô.

É o que já se ouve, com ecos de horripilar, na fala do vice-primeiro ministro britânico Nick Clegg, à primeira vista, sobre a Líbia: “Quero deixar bem claro que a Grã-Bretanha não dará as costas aos milhões de cidadãos dos estados árabes que tentam abrir suas sociedades em busca de vida melhor.” Mas... e se estivesse falando da Síria? Com certeza absoluta, Clegg não estava oferecendo serviços de ‘abertura’ aos cidadãos árabes das sociedades de Arábia Saudita, Bahrain ou Iêmen, para dar às tribos que lá vivem condições de vida europeia moderna.

Com a operação líbia aproximando-se do término, todos os olhos voltam-se para a Síria. O Wall Street Journal especula: “O sucesso dos líbios afeta a rebelião potencialmente mais importante na Síria (...) Já há sinais de que a Líbia inspira os rebeldes que tentam depor [Bashar al] Assad.”
[1] Mas acrescenta o detalhe, sem o qual a ideia propagandística não estaria devidamente proposta: “Há diferenças cruciais entre Líbia e Síria, e será difícil replicar em Damasco o modelo da revolução líbia.”

Apostas altas na Síria

Sim, mas a mente ocidental é famosa pela capacidade de inovação. Não há dúvidas de que a Síria está no coração do Oriente Médio e conflitos que irrompam ali quase com certeza engolfarão toda a região – inclusive Israel e, possivelmente, também o Irã e a Turquia.

Por outro lado, os movimentos coordenados do ocidente nas últimas semanas ampliando sanções contra a Síria, são muito semelhantes ao que se viram no prelúdio da intervenção na Líbia. Estão em andamento esforços sustentados para criar uma oposição síria unificada. Semana passada, encontro na Turquia – o terceiro em sequência – finalmente elegeu um ‘conselho’ que ostensivamente representaria a voz do povo sírio. Evidentemente, está em construção, cuidadosamente, um ponto focal, que, em momento conveniente, poderá ser cooptado como do interventor ocidental democrático que representaria a Síria. O apoio da Liga Árabe, para funções de folha de parreira, também está disponível. Os regimes árabes ‘pró-ocidente’ – autocracias – reapareceram à frente da campanha ocidental, como portadores do estandarte da representatividade na Síria.

Pode-se argumentar que a parte mais difícil seria obter mandado da ONU para intervenção ocidental na Síria. Mas a experiência líbia mostra que sempre é possível conseguir um álibi. Para isso, pode-se confiar na Turquia: quando há envolvimento da Turquia, é possível invocar o Estatuto 5 da OTAN.

O xis da questão é que é imperativo derrubar o governo da Síria, para que a estratégia dos EUA no Oriente Médio possa avançar, e Washington não aceitará obstáculos que algum dos BRICS crie, porque o que está em jogo é importante demais. Estão em jogo a expulsão, de Damasco, da liderança do Hamás; o rompimento do eixo sírios-iranianos; o isolamento do Irã, com o correspondente estímulo para derrubar o governo iraniano; enfraquecer e degradar o Hezbollah no Líbano; e reconquistar a dominação estratégica de Israel sobre todo o mundo árabe.

Claro que, na raiz disso tudo, está o controle sobre o petróleo, o qual, como disse George Kennan há 60 anos “é recurso nosso, não deles [dos árabes]”, considerado crucial para manter qualquer esperança de prosperidade sustentada do mundo ocidental. E ria de quem disser que governos ocidentais e seus cidadãos empobrecidos já não teriam apetite para guerras.

Finalmente, tudo isso implica, em termos geopolíticos, a reversão de qualquer influência que russos e chineses tenham obtido no Oriente Médio.

Já está em operação uma sutil propaganda ocidental que pinta Rússia e China como obstáculos à derrubada de governos na região –, porque estariam ‘do lado errado da história’. É esperta virada ideológica na muito bem-sucedida jogada-padrão da Guerra Fria, que jogou o comunismo contra o Islã.

A linguagem corporal nas capitais ocidentais não deixa dúvidas: de modo algum os EUA deixarão escapar a oportunidade que veem hoje, para eles, na Síria.



[1] 23/8/2011, Wall Street Journal, “Lybia and the Arab Spring”, em http://online.wsj.com/article/SB10001424053111903461304576524701611118090.html