Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

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quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Os Meios e os Fins - Raiva do PT ou deles mesmos


Há os que desgostam do PT, dos petistas e de tudo que fazem com tal intensidade que qualquer explicação é desnecessária. Apenas têm aversão profunda pelo que o partido representa.
Alguns a desenvolveram por preferir outros partidos e outras ideias. Mas são a minoria. Os mais sinceros anti-petistas são os que somente sentem ojeriza pelo PT. Veem um petista e ficam arrepiados.
Sequer sabem a razão de tanta implicância.
Detestavam o PT quando era oposição - dizendo que era intransigente - e o detestam agora que está no governo pela razão oposta - acham que é tolerante demais. Odiavam os petistas quando vestiam camiseta e discursavam na porta das fábricas. Hoje, os abominam porque usam terno e gravata e  fazem pronunciamentos no Congresso.
Um dos argumentos que invocam para justificar a birra é capcioso: o mito da “infância dourada” do PT, quando ele teria sido virginal e puro. O invocam com o intuito exclusivo de ressaltar que teria perdido algo que, em seu tempo, não admitiam que tivesse.
O PT abstrato e irreal que criaram é uma figura retórica para denunciar o PT que existe de fato - que não é nem menos, nem mais real que os outros partidos que temos no Brasil e no mundo.
Além desse anti-petismo figadal e baseado em pouco mais que um atávico conservadorismo, há outro. Que pretende ser mais sóbrio.
Nestes tempos de julgamento do “mensalão”, é fácil encontrá-lo.
Seus expoentes são mais racionais e menos folclóricos. Usam uma lógica que parece sólida.
O que mais os caracteriza é dizer que não discutem os fins e sim os meios do PT. Que não são anti-petistas por definição, mas que repudiam aquilo que os líderes petistas fizeram para chegar ao Planalto - e passaram a fazer depois que o partido lá se instalou.
Ou seja, sua oposição não questionaria o projeto petista, mas sua tática. Não haveria problema no fato de o PT querer estar - e estar - no poder. Mas em o partido ter usado meios inaceitáveis para lá chegar e permanecer.
Parece uma conversa bonita. E nada mais é que isso.
No fundo, esse anti-petismo é igual ao outro. Sua aparente sofisticação apenas dá nova roupagem aos mesmos sentimentos.
O que o anti-petismo não perdoa em José Dirceu - e outras lideranças que estão sendo julgadas - não é ter usado “meios moralmente errados” para alcançar “fins politicamente aceitáveis”. Salvo os mal informados, seus expoentes sabem que o que o ex-ministro fez é o mesmo que, na essência, fariam seus adversários se estivessem em seu lugar - sem tirar, nem por.
Quem duvidar, que pesquise quem foi e como atuava Sérgio Motta, o popular “Serjão”, “trator” nas campanhas e governos tucanos.
(Com ele, não havia meias palavras: estava em campo para garantir - seja a que preço fosse -, 20 anos de hegemonia para o PSDB - e que ninguém viesse a ele com a cantilena da “alternância de poder”. Não foi por falta de seu empenho que o projeto gorou.)
O pecado de José Dirceu é ter tido sucesso no alcance dos fins a que se propôs - um sucesso, aliás, notável.
Sem sua participação, é pouco provável que tivéssemos o “lulopetismo” - um dos mais importantes fenômenos políticos de nossa história, gostem ou não seus adversários. Sem ele, o Brasil não seria o que é.
Isso é muito mais do que se pode dizer de quase todos os contemporâneos.
Mas é essa a realidade. Enquanto José Dirceu vive sua ansiedade, Sérgio Motta é nome de ponte em Mato Grosso, anfiteatro em Fortaleza, centro cultural em São Paulo, praça no Rio de Janeiro, edifício em Brasília, avenida em Teresina, usina hidroelétrica no interior de São Paulo e rua na longínqua Garrafão do Norte, nos rincões do Pará.
E de um instituto em sua memória, patrocinado pelo governo federal, que distribui importante prêmio de arte e tecnologia.
Gente fina é outra coisa.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

"Brasil forjado na ditadura representa Estado de exceção permanente"



Para professores, filósofos e defensores de direitos humanos, o golpe de 64 moldou um país de estruturas autoritárias, que garante direitos apenas para as classes proprietárias e que transformou a exceção em consenso. Em seminário realizado em São Paulo, eles afirmaram que a exceção é o novo modo de governo do capital e que o povo brasileiro vive um momento perigosíssimo de letargia. A reportagem é de Bia Barbosa.

SÃO PAULO - Qual a idéia de "Estado de exceção"? Na interpretação tradicional do termo, trata-se de um momento de suspensão temporária de direitos e garantias constitucionais, decretado pelas autoridades em situações de emergência nacional, ou mediante a instituição de regimes autoritários. Seu oposto seria o Estado de Direito, conduzido por um regime democrático. Na avaliação de professores, filósofos e defensores de direitos humanos, no entanto, a existência de um Estado de exceção dentro do Estado de Direito seria exatamente a característica do Brasil atual, forjada no período da ditadura militar e que, mesmo após a redemocratização do país, não se alterou. Esta foi uma das conclusões do seminário sobre a herança da ditura brasileira nos dias de hoje, promovido pela Cooperativa Paulista de Teatro e pela Kiwi Companhia de Teatro realizado esta semana, em São Paulo.

Para o filósofo Paulo Arantes, professor aposentado do Departamento de Filosofia da USP, há um país que morreu e renasceu de outra maneira depois da ditadura, e que hoje é indiferente ao abismo que se abriu depois do golpe militar e que nunca mais se fechou.

"Que tipo de Estado e sociedade temos depois do corte feito em 64, do limiar sistêmico construído por coisas que parecem normais numa sociedade de classes, mas que não são? O fato da classe dominante brasileira poder se permitir tudo a partir da ditadura militar é algo análogo à explosão de Hiroshima. Depois que a guerra nuclear começa ela não pode mais ser desinventada. Quando, a partir de 64, a elite brasileira branca se permite molhar a mão de sangue, frequentar e financiar uma câmara de tortura, por mais bárbara que tenha sido a história do Brasil, há uma mudança de qualidade neste momento", avalia Arantes.

Para o filósofo, o país foi forjado pela ditadura a ponto de hoje nossa sociedade negligenciar tudo aquilo que foi consenso durante o autoritarismo dos militares. "A ditadura não foi imposta. Ela foi desejada. Leiam os jornais publicados logo após 31 de março de 1964. Todos lançaram manifestos de apoio ao golpe, era algo arrebatador. CNBB, ABI, OAB, todo mundo que hoje é advogado do Estado de Direito apoiou. Se criou um mito de que a sociedade foi vítima de um ato de violência, mas a imensa maioria apoiou o golpe", disse Arantes. "E a ditadura se retirou não porque foi derrotada, mas porque conquistou seus objetivos. A abertura de Geisel foi planejada, já tinha dado certo com o milagre econômico. Tanto que seus ideólogos estão aí, como principais conselheiros econômicos da era Lula-Dilma, e que a ordem militar está toda consolidada na Constituição de 88", criticou.

Na avaliação de Edson Teles, membro da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos do Brasil e professor de filosofia da Unifesp, a Constituição de 1988 foi apenas uma das formas de lançar o Brasil num Estado de exceção permanente, definido por ele quando a própria norma é usada para suspender a ordem; ou quando aquilo que deveria ser a exceção acaba se tornando ou reafirmando a própria norma.

Para Teles, além de manter a estrutura autoritária militar, o novo ordenamento democrático foi construído sobre o silenciamento dos familiares de vítimas e de movimentos de defesa dos direitos humanos, que queriam justiça para os crimes da ditadura. O problema, no entanto, vinha de antes.

"Em um Congresso controlado pela ditadura, a Lei de Anistia adotou a suspensão da possibilidade de punição de qualquer crime. Um momento ilícito foi tornado lícito, com o silenciamento dos movimentos sociais e pela anistia, que exigiam esclarecimentos sobre os crimes. O que o Estado montou foi algo que manteve a ideia de impunidade. Depois veio o Colégio Eleitoral, que fez uma opção por uma saída negociada entre as oligarquias que saíam e as novas que chegavam, decidindo manter a anista ao crimes da ditadura. Foi o grande acordo do não-esclarecimento", relatou.

O julgamento no Supremo Tribunal Federal em 2010 sobre a interpretação da Lei de Anistia foi, segundo Teles, o coroamento desse silêncio e a instauração de um Estado de exceçãono país. "Baseada em ideias fantasmagóricas de que novos golpes que poderiam ser dados, nossa transição foi a criação de um discurso hegemônico de legitimação deste Estado de exceção. Faz-se este discurso como forma de legitimar essa memória do consenso, mas se mantem o Estado de exceção permanente, reconhecendo as vítimas sem nomear os crimes", acrescentou.

Exceção e consenso hoje
O consenso acerca daquilo que deveria ser visto como exceção não se restringe hoje, no entanto, àquilo que pode ser considerado a herança mais direta da ditadura militar. Foi construído também em torno de uma série de acontecimentos e práticas que deveriam mas não mais despertam reações da população brasileira.

"A exceção se torna perigosíssima quando deixamos de reconhecê-la como tal e ela se torna consenso", alertou o escritor e professor de jornalismo da PUC-SP, José Arbex Jr. "Ninguém achou um escândalo, por exemplo, no lançamento da Comissão da Verdade, ver os últimos Presidentes do país juntos, sendo que um deles foi presidente da Arena, o partido da ditadura, responsável pela tortura da própria Dilma; e o outros era Collor! Da mesma forma, está em curso em Osasco uma operação chamada Comboio da Morte, que matou nas últimas horas 16 pessoas. Isso não causa um escândalo nacional, é normal, natural, porque estamos "na democracia". Os jornais falam da Síria, mas a média de mortes diária no auge do conflito da Síria não chega ao que temos aqui cotidianamente. Lá é 60 aqui é 120! Então não estamos discutindo algo que aconteceu em 64 e que hoje se apresenta de forma mitigada, atenuada", disse Arbex.

Para o jornalista, o país vive um estado de letargia hipnótica coletiva, fabricado de maneira competente e eficiente pelo aparato midiático, que produz um consenso em torno de uma imagem de país na qual todos acabamos acreditando. "É muito grave quando olhamos para o Brasil e não percebemos essa realidade de consenso: de nenhuma garantia de direito para quem esteja fora da Casa Grande, e uma situação de guerra permanente", acrescentou.

É o que Paulo Arantes chamou de Estado oligárquico de Direito, um Estado dual, com uma face garantista patrimonial, que funciona para o topo da pirâmide, e uma face punitivista para a base. "Esse Estado bifurcado é uma das "n" consequências da remodelagem do país a partir dos 21 anos de ditadura. Basta pensar no que acontece todos os dias no país. Trata-se de um outro consenso, também sinistro e indiferente, senão hostil, a tudo que nos reúne aqui. Um Estado de exceção que não é o velho golpe de Estado, mas um novo modo de governo do capital na presente conjuntura mundial, que já dura 30 anos", afirmou Arantes.

Ninguém cavalga a história
O que permitiria dizer da possibilidade de se encontrar uma saída deste Estado de exceção permanente é o caráter imprevisível e incontrolável da história. Arbex lembrou que, em setembro de 1989, quando estava em Berlim, ninguém dizia que o Muro cairia menos de dois meses depois. "O fato é que, felizmente, ninguém cavalga a história. Ainda não encontraram uma maneira de domesticá-la. Há um processo latente de explosão social no Brasil, que se combina com processos semelhantes na América Latina, e que pode produzir uma situação totalmente nova. Ninguém previu a Primavera Árabe. Quando um jovem na Tunísia atirou fogo no próprio corpo, ninguém imaginava que, um mês depois, cairia Mubarak no Egito. Estão, não estamos condenamos para sempre a esta situação. Só posso dizer que estamos vivendo numa época que, em alguns aspectos, é mais trágica, mais cruel e mortífera que a ditadura militar", acredita.

"Este Estado de exceção só terminará quando a ditadura terminar, quando o último algoz for processado e julgado. Se a Comissão da Verdade encontrar dois ou três bons casos e levantar material para ações cíveis, pode haver uma transmutação disso tudo. E o regime, a sociedade e a economia não vão cair se os perpetradores da ditadura forem processados, como não caíram na Argentina ou no Chile", acredita Paulo Arantes. "Mas devemos pensar no que significaria essa última reparação. Se o último torturador e os últimos desaparecidos forem localizados, em que estágio histórico vamos poder entrar?", questionou. Uma pergunta ainda sem resposta.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

Lugo não reconhece novo governo e anuncia resistência


Em entrevista ao Página/12, Fernando Lugo diz que foi vítima de um golpe parlamentar e resumiu seu plano deste modo: “Resistência pacífica e não reconhecimento da presidência que se instalou depois do golpe de Estado”. Lugo pareceu mais animado do que estava na quinta, quando seu então vice, Federico Franco, o substituiu na Presidência. Ele afirmou que a sua postura pacífica de sexta teve o objetivo de evitar violência nas ruas e mortes. "No Paraguai há muita violência. Na sexta, os mercadores da morte estavam rondando". A reportagem é de Martín Granovsky.

Assunção - Os seus colaboradores já encontraram um título para ele. “É o presidente dos paraguaios”, dizem, para diferenciá-lo do cargo de presidente do Paraguai que Fernando Lugo perdeu com a destituição de sexta-feira pelas mãos do Congresso. Domingo à noite, em entrevista ao Página/12, Lugo resumiu seu plano deste modo: “Resistência pacífica e não reconhecimento da presidência que se instalou depois do golpe de Estado”. Lugo parece mais animado do que estava na quinta, quando seu então vice, Federico Franco, o substituiu na Presidência. Parte de sua estratégia é interna e parte parece consistir em sua instalação internacional para fortalecer-se também entre os paraguaios.

Franco também procura agir nestes dois planos, a ponto de dizer ontem que Lugo é a única pessoa que pode evitar o conflito internacional. É uma forma de se referir aos problemas que experimenta o governo pelas crescentes medidas de castigo, começando pela já decidida suspensão do Mercosul. “Te cospem na cara e, ao mesmo tempo, te chamam de lindo”, disse Lugo ao Página/12, comentando a declaração de Franco.

Você percebe que Franco o torna responsável de qualquer represália que o Paraguai receba?

Não são castigos ao Paraguai. Estamos frente a um grande movimento de solidariedade internacional do qual participa teu país. A Argentina é um país irmão, vizinho e muito próximo, que conhecem muito bem a realidade paraguaia.

Retirou Rafael Romá, o embaixador.

Fez o que dentro de sua soberania considerou que seria útil para a liberdade e a soberania de um país que quer a democracia como o Paraguai.

E se a solidariedade se converter em problemas cotidianos, como você reagirá?

Infelizmente, muitos inocentes poderão sofrer as consequências. Eu quero o melhor para o Paraguai. Por isso, rechaçamos o regime.

Na madrugada de domingo, frente ao edifício da televisão pública, você falou de resistência pacífica. Essa será a tática?

Sim. Já começamos a resistência pacífica e não reconhecemos a presidência que se instalou depois do golpe de Estado parlamentar. E começam a surgir as manifestações de cidadãos e cidadãs. Elas crescem, são pacíficas e se expressam contra o que o parlamento decidiu naquela sexta-feira sombria. Também vamos realizar uma reunião de gabinete.

Quando?

Às seis da manhã (de segunda). Participarão dela todos os colaboradores do meu gabinete, quando estávamos no palácio de governo.

Ao se despedir dos chanceleres da Unasul, você disse que voltaria a seu trabalho político junto às bases. Foi o que relatou o chanceler Héctor Timerman ao Página/12.

E já começamos a fazer isso. Vamos unir forças com os movimentos sociais e sindicais.

Sempre dentro da ideia de não-violência?

Sim. Sempre.

Por isso, na sexta, quando o destituíram, teve uma atitude pacífica?

Sim. Nos submetemos ao julgamento político parlamentar e aceitamos o veredito para evitar derramamento de sangue. Somos contra todo tipo de violência e esse dia pressagiava violência e repressão. Hoje, já com o espírito sereno, as manifestações cidadãs são exemplares, o que ser visto nas ruas ou nas transmissões do Canal 13 do Paraguai e como o faz a televisão pública.

É uma forma de ação política que será repetida no interior do Paraguai?

Exato. E estamos serenos para essa tarefa. Esse é o motivo pelo qual a nossa atitude de sexta-feira foi ponderada por muita gente. No Paraguai há muita violência. Na sexta, os mercadores da morte estavam rondando. O julgamento era injusto, descabido e sem argumento, mas era preciso reagir como fizemos. Era a melhor coisa a fazer.

O dinamismo de sua atividade aumentará?

Estamos saindo nos comunicando com a cidadania. Hoje tivemos uma série de reuniões com líderes sociais e políticos. O rechaço crescerá. Estou seguro disso. Haverá uma consolidação do rechaço à presidência que surgiu da destituição.

Franco insiste que o Congresso só aplicou um artigo da Constituição, que fala de procedimentos e não de prazos para o julgamento político do presidente.

Sobre isso, gostaria de destacar o que disse o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos. A ferramenta do julgamento político é válida do ponto de vista jurídico e constitucional, mas os congressistas exageraram na forma.

Os congressistas poderiam dizer que votaram com maioria qualificada.

É um simples acordo de cúpulas feito pelo pelos dirigentes dos partidos tradicionais.

Em sua primeira aparição pública após ter sido destituído, você disse que havia setores políticos vinculados ao narcotráfico. A quem estava se referindo?

Há muitos parlamentares acusados de ter uma grande participação em negócios ilícitos. O narcotráfico está dentro de alguns setores da política. Há investigações que foram publicadas, denúncias...

Os próximos passos

Nosso projeto é reforçar a presença política de Fernando Lugo, disse ao Página/12, após a entrevista, um colaborador que pediu para não ser identificado. A análise otimista dos partidários de Lugo indica que Franco não conseguirá impor a ideia de que o responsável pelo eventual isolamento do Paraguai é o presidente derrubado. “Temos isso muito claro, não vemos um perigo nesse tema”, é a opinião geral. Outro ponto considerado pelos dirigentes próximos ao ex-presidente é que, como disse um deles, “virão tempos difíceis para o setor importador e também para o setor exportador”. “Os setores fáticos ficarão em má situação, cada vez pior”, disse. No Paraguai, assim como na Espanha, quando alguém fala dos “poderes fáticos”, está usando a expressão no mesmo sentido que “establishment” é usado na Argentina.

O núncio apostólico foi o primeiro representante diplomático estrangeiro a se reunir com Franco. Em outro setor da Igreja Católica, porém, o monsenhor Melanio Medina, bispo de Missiones e Ñeembucú, ironizou ontem em sua homilia o novo presidente: “Pobre Franco, em que confusão está metido, porque a estrutura parlamentar e capitalista não vai permitir que ele faça nada”. Disse ainda que a destituição foi “um golpe do Parlamento” e que Lugo foi afastado por “querer lutar a favor dos pobres”.

Medina também incursionou na análise diplomática. “No melhor dos casos, mais adiante se acerta a relação bilateral, mas se cortarão o gás e os combustíveis que o país compra da Argentina”, disse. Além disso, atribuiu o assassinato de onze camponeses e seis policiais em Curuguaty à cobiça dos proprietários de terras. Citou Blas Riquelme, dono de mais de 40 mil hectares.

A fronteira da soja se expande frequentemente no Paraguai, assim como ocorre em Santa Fé ou Santiago del Estero (na Argentina), com disparos para amedrontar ou atacar diretamente os pequenos proprietários de terra. Segundo Medina, tanto no Paraguai como na América Latina inteira há dois modelos: “O que busca a igualdade social e o capitalismo que só quer acumular fortunas e que não tem nenhuma preocupação com a situação dos pobres”.

As declarações de Lugo ao Página/12, os comentários de seus colaboradores e o testemunho do bispo Medina parecem marcar a busca, por parte de Lugo, da popularidade que teve em seu primeiro ano de governo, em 2008, e que foi perdendo, apesar das políticas sociais e do aumento do gasto em saúde.

Desde que começou a série de discursos, a maioria de militantes de base, na frente do edifício da televisão pública, a questão da saúde foi uma das mais repetidas entre os argumentos em defesa de Lugo, Neste mesmo lugar, na madrugada de domingo, o próprio Lugo apareceu e ali mesmo houve um indício da política que quer afastar Franco. Também pela madrugada apareceu uma pessoa de uns 35 anos, sorridente, que manifestou desejo de participar das sessões de microfone aberto. Afirmou chamar-se Cristian Saguier e comunicou que era o chefe da nova direção da televisão pública. Anunciou que o governo não suprimiria o programa Microfone Aberto e que estava ali para “celebrar a discussão pública”.

Esse lugar pode ser um dos pontos de observação da política paraguaia. Por um lado, e para além do nível de audiência, mais baixo que o dos canais privados, Franco quer preservar a imagem de um Paraguai democrático, de um país que não incorreu na ruptura da ordem constitucional. Por outro, está embretado pela mesma realidade: mesmo com audiência menor, o programa é uma referência. O resto depende do que Lugo e os setores que o apoiam consigam fazer daqui até as eleições de 2013.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

Paraguai explica a política hoje


Em primeiro lugar, deixemos registrado que a Folha de São Paulo, em sua edição do primeiro dia útil da semana, logo depois de sua “porta” ter sido “arrombada” pela internet, publicou as fotos da aliança que fizeram Paulo Maluf e Fernando Henrique Cardoso em 1998, aliança que teve direito até a outdoor. Aliás, vale mencionar que a foto do outdoor que os dois políticos dividiram naquele ano, essa não foi parar na Folha porque, também, ninguém é de ferro…
Mas as fotos mostram a tônica da política de nosso tempo, o tempo da Realpolitik, que, aliás, de novo não tem nada, haja vista que nada difere do que foi teorizado há séculos pelo  formulador florentino Nicolau Maquiavel após ter sido usada durante toda a história da humanidade, quando impérios em guerra, que colocaram seus cidadãos para se matarem uns aos outros, casavam os próprios filhos entre si e, assim, estabeleciam paz que, de repente, seria rompida de novo. Ou pela primeira vez. Muitas vezes, até por uma traição conjugal.
O que se pode dizer do mundo contemporâneo é que ficamos mais cínicos e passamos a nos valer da Realpolitik por razões concretas em vez de por birras de reis ou rainhas corneados (as) por seus consortes. E só.
Todavia, após séculos (ou milênios?), os sucessores de uma aristocracia que não entendia nada de política – simplesmente porque nada entendia de povo –, os quais saíram das massas para comandar o Estado, passaram a exercer a política com maior competência, evitando guerras desnecessárias, sendo, assim, maquiavélicos sem culpa, sob a premissa do bem maior que alianças e rompimentos poderiam gerar ao bem comum.
Alguém disse, recentemente, que faltou um PMDB ao presidente defenestrado Fernando Lugo. Ou um Maluf. Talvez tenham faltado ambos. Certamente faltaram alianças. Possivelmente por o deposto não ter querido ceder “filhos” para o matrimônio, o que se entende por ceder em programas sociais e interlocução com sem-terras.
A deposição extemporânea e apressada de Lugo remete ao medo do processo de sua sucessão que estava à porta, sugerindo que os golpistas não sentiram-se seguros em disputar com ele a formação do novo congresso, que poderia lhe ser menos hostil.
Transfiram para o Brasil as eternas acusações de “corrupção” e “incompetência” que a direita faz à esquerda quando ela sobe ao poder – ou quando ameaça subir. Imaginem se Lula não tivesse alianças da esquerda à direita, passando pelo centro. As investigações exaustivas sobre seu envolvimento no mensalão deram em nada, mas as forças políticas esperaram as investigações terminarem. Não se pediu seu impeachement.
Até porque, em 2005 o processo eleitoral estava às portas, no ano seguinte, e as forças políticas que se assanharam com um só mandato para Lula acharam que o jogo estava jogado, após o bombardeio que fizeram da imagem dele durante a eclosão de um escândalo em que era abertamente acusado de mentor.
Se tivesse PMDB, PP e outras legendas menores de direita e centro-direita na oposição aberta a si, Lula teria sucumbido em questão de semanas, talvez um pouco mais de tempo do que Lugo. Mas, provavelmente, não tanto mais.
O golpe no Paraguai desnuda o que acontece sem alianças políticas e concessões. As acusações de “pragmatismo excessivo” e “endireitamento” aos governos Lula e Dilma partiram e partem de forças que sabiam e sabem que a Realpolitik é inevitável para manter o poder, para não ser destruído moralmente e, em casos extremos,  até fisicamente.
É aceitável discutir esse império da conveniência sobre o direito e a dignidade na política, mas só é aceitável se for uma discussão honesta. A crítica a um dos que se valem da Realpolítik sendo feita pelos que sempre se valeram, valem-se e não pretendem deixar de se valer dela nunca é inaceitável, desonesta, hipócrita e atenta contra o bem comum.
Vejam Obama. Tinha tudo para revolucionar as Américas e o mundo. Negro, ascendência africana, ainda que adotado pela aristocracia, era a aposta no fim da supremacia branca, com a chegada de um negro ao cargo de maior poder na Terra.
O que será que aconteceu com Obama? Será que se rendeu ou será que entendeu? Talvez tenha descoberto que governar uma nação deixou de ser submetê-la aos próprios desejos, nem quando são os mais nobres, até quando são abjetos, meros caprichos como os de reis e imperadores de outrora que detinham o poder de impor a própria vontade.
Governar, hoje, é tomar decisões amparadas em sentimentos coletivos, tentando, ao máximo, sobrepor a justiça à injustiça, o que está longe de ser o ideal, mas que é melhor do que era dado à aristocracia, àqueles que, à diferença do que acontece no regime democrático, não precisavam demonstrar coerência ou se explicar.
É confuso. Haveria que discutir a Realpolitik, haveria que discutir a influência de grupos de pressão sobre governos, haveria que discutir a autonomia de mandatários para deliberarem. Haveria que discutir muita coisa.
O escritor e político alemão do século XIX Ludwig August von Rochau, seguindo a idéia de Klemens Wenzel von Metternich de achar caminhos para equilibrar as relações de poder, formulou a teoria da Realpolitik, da política “real”, a qual vige, prepondera ou, do contrário, gera o que se viu no Paraguai recentemente. Gostemos ou não.

MERCOSUL SUSPENDE PARAGUAI E VETA GOLPISTA NA CÚPULA DE MENDOZA

*TV Pública do Paraguai  estaria ocupada  nesse momento por partidários de Lugo**emissora teve  sinal cortado por cerca de 30 minutos quando transmitia protestos; um deles, de madrugada, contou com a participação do próprio Lugo. Veja: http://www.telam.com.ar/nota/29411
  
EM comunicado neste domingo, Argentina, Brasil, Uruguai e demais associados do Mercosul anunciaram a decisão de suspender o Paraguai de imediato e, portanto, impedir o dirigente golpista Federico Franco de participar da XLIII Reunião do Conselho do Bloco e da Cúpula dos chefes de Estado que acontece a partir desta 2ª feira,Mendoza, na Argentina. No encontro estava prevista a passagem da Presidência pro tempore do Mercosul à República do Paraguai, leia-se, ao presidente democraticamente eleito, Fernando Lugo. A decisão é o desfecho de um cerco regional crescente ao golpe que destituiu Lugo, na última sexta-feira, um simulacro de impeachment, em rito sumário, que durou menos de 30 horas. Já no sábado, em entrevista à TV Pública de seu país, Cristina Kirchner fora enfática quanto a posição de seu governo --'Argentina no va a convalidar el golpe de Estado en Paraguay'(veja aqui:http://www.telam.com.ar/nota/29325/ ). N
o mesmo dia, a Casa Rosada retirou seu embaixador em Assunção, assumindo a liderança do rechaço regional à derrubada de Lugo. Horas depois, o Brasil adotaria atitude parecida, seguido pelo Uruguai. Neste domingo Chávez fez o mesmo e cortou o envio de petróleo ao Paraguai. O comunicado do Mercosul adianta que novas represálias poderão ser adotadas em Mendoza. (LEIA O COMUNICADO AQUI)


O que difere este golpe de um histórico golpista na região? O uso das armas? O que mudou?
A lição tem que ser assimilda.Primeiro Honduras, nada fora feito de mais firme. Agora O vizinho do sul, mostrando que é preciso que haja o aprimoramento das instituições que, democraticamente eleitas, se sobrepomham as forças de interesse minoritária que detenham o capital e um grande  poder de interesses dessas classes de minorias abastadas. Não podemos deixar que fique barato sem uma dura resposta dos que fazem adjacência com nossas fronteiras. É profético o último artigo do Sr Mauro Santayanna, sobre tentativa de desmantelamento do Mercosul, com a criação da aliança do Pacífico, em conjunção com USA, Espanha,México. Soa conhecido? a recarga da ALCA? O momento é grave, creio. Caso haja uma resistência maior dos golpistas, o que será feito. Come se posicionaram os países do norte, com notório interesses na região.
Interesses que vão desde a criação de uma base militar, mais uma, no Paraguai, até à agua. ( opedeuta)

Saiba por que países do Sul e do Norte divergem sobre Paraguai


Nesse imbróglio da deposição-relâmpago do bispo Fernando Armindo Lugo de Méndez da presidência do Paraguai, o que importa menos, agora, é o desempenho que vinha tendo.  Acusado por todos os partidos com representação congressual, estava isolado e faria um governo anódino até o fim, mas foi alvo de uma farsa que se tornou o cerne da questão.
As queixas sobre seu desempenho eram muitas e de variadas origens e a debilidade política de seu governo revelou sua inabilidade. Há, ainda, informações de que não vinha sendo tão progressista quanto se esperava, ainda que sejam opiniões de grupos políticos paraguaios mais à esquerda.
Sendo verdadeiros os relatos sobre a incompetência política e administrativa de Lugo, não se entende por que foi desfechado um processo como o que se viu, no qual lhe foram negadas as mínimas condições de defesa. Surgem várias questões:
1)      Por que o processo precisou ser tão rápido?
2)      Por que a Justiça não pôde se pronunciar?
3)      Por que tudo foi feito em surdina até o último momento, surpreendendo até o povo e a comunidade internacional?
4)      Por que causou tanta comoção um processo que a classe política paraguaia esperava que fosse muito mais facilmente aceito?
5)      Países como Estados Unidos, Alemanha, Espanha e Canadá estão reconhecendo o processo político. Por que os países latino-americanos não?
As respostas a tais perguntas são facilmente respondíveis.
1)      O processo de cassação do mandato de Lugo foi rápido para não dar tempo a articulações e exigências de prazo condizente a um juízo de tal importância
2)      Se houvesse um grão de legalidade nesse processo, não poderia ter sido concluído sem que a Justiça recebesse e analisasse o questionamento que o presidente deposto tentou fazer, mas, quando lhe bateu à porta, não havia quem recebesse a ação.
3)      Vide resposta um.
4)      Vide resposta dois.
5)      Porque o que aconteceu no Paraguai não tem poder de se alastrar pelos países que aceitaram o processo suspeito, mas tem para se alastrar pelos países latino-americanos.
Ainda assim, talvez tudo pudesse ser visto como mais uma das excentricidades de uma nação que funciona como um entreposto de livre comércio de tudo que é legal e ilegal (armas, drogas etc.), que não tem qualquer importância econômica e onde golpes de Estado constituem quase uma tradição – o último ocorreu há míseros 13 anos.
Coincidentemente, os países da Unasul, que não estão deixando o episódio paraguaio cair no esquecimento, são os mesmos em que grupos políticos e empresariais vêm tentando produzir situação semelhante.
Alguns desses países, aliás, acreditam que podem se tornar a bola da vez após a ruptura institucional paraguaia – que, repito, deu-se por a Justiça ter sido apartada e pela rapidez do processo. Bolívia, Equador e Venezuela, por exemplo, nos quais, em períodos recentes, houve tentativas de desencadear o mesmo, são os candidatos mais fortes.
Na noite de sábado, no Twitter, o senador petista Delcídio Amaral (MS), considerado um dos mais moderados e acusado por alguns de ser um dos petistas mais tucanos, tuitou propugnando retaliação dura ao novo regime paraguaio.
A própria Dilma Rousseff, que tem se pautado pela sobriedade e pelo comedimento, deu declarações fortes e chamou o embaixador brasileiro para consultas.
Como podem existir visões tão distintas como a dos países ricos e a dos países do entorno paraguaio? Foi um processo “normal”, como disse, por exemplo, o chanceler alemão, ou foi um processo golpista, como disse, em outro exemplo, a presidente argentina?
Em países parlamentaristas como os do norte, a destituição de Lugo seria normal. Um gabinete de primeiro ministro pode cair em prazos tão curtos e sob acusação de mau desempenho, mas, no presidencialismo – em que o presidente é não só chefe de Estado, mas também de governo -, não.
Nos EUA, nação presidencialista que nos inspira, o apoio ao golpe tem outra razão que não a confusão entre parlamentarismo e presidencialismo. É má fé mesmo.
O que está levando países como Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Equador ou Venezuela, entre outros países latino-americanos, a repudiar a destituição de um presidente tão polêmico quanto era Lugo e a propugnarem retaliação ao novo regime paraguaio, portanto, são as reações políticas em cada um deles.
Seja nos periódicos argentinos Clarín ou La Nacion, seja nos bolivianos El Deber ou El Mundo, seja nos chilenos El Mercúrio ou La Tercera, seja nos brasileiros Folha de São Paulo ou Globo, seja nos equatorianos Últimas Notícias ou El Comercio, seja nos venezuelanos El Universal ou El Nacional, sem falar das televisões, o tom é de comemoração e apoio ao golpe.
Em todos esses países, acusações de “corrupção” e de “incompetência” do governo central – acusações usadas contra Lugo – são a tônica do discurso da mídia e da oposição. Em quase todos eles, à exceção de Argentina, Brasil e Chile, de uma forma ou de outra já houve tentativas recentes de golpe – no Brasil, porém, houve tentativa de tentativa de golpe com o mensalão.
As reações da comunidade internacional, porém, estão assustando os golpistas paraguaios. O novo presidente, percebendo o estado de espírito dos governos vizinhos, trata de fazer gestos conciliadores como oferecer a Lugo que permaneça na residência oficial do governo até quando queira e lhe pede, até, para que ajude a explicar ao mundo o golpe que sofreu…
A televisão pública paraguaia, que estava censurando manifestações e que destituiu seu diretor porque mandava cobri-las, retrocedeu, a mando do presidente, e, no último sábado, transmitiu manifestação de milhares de pessoas contra o golpe que a mídia brasileira escondeu e que, nas poucas informações que divulgou, reduziu a duzentas pessoas.
O isolamento do Paraguai decorre da velha máxima de que “Gato escaldado tem medo de água fria”. O processo paraguaio é altamente suspeito. O conflito no campo usado como desculpa não será mais investigado por comissão do governo formada por Lugo antes de sair, o que sugere que o novo presidente, que tomou tal decisão, teme o resultado da investigação.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Cunha e as verrugas da história mal contada

“Pinte-me como eu sou, com verrugas e tudo.”

Amaral de Souza: retocado... e Lorde Cromwell: com verrugas e tudo



O Conversa Afiada reproduz imperdível artigo de Luiz Claudio Cunha sobre as verrugas de um leal servidor dos militares, extraído da Sul21:



Amaral de Souza (1929-2012): As verrugas da história mal contada da ditadura

Por Luiz Cláudio Cunha
Especial para o Sul21
Pinte-me como eu sou, com verrugas e tudo.
(Oliver Cromwell, 1599-1658, Lorde Protetor do
Reino Unido, ao pintor oficial da corte, Peter Lely)
Um jovem mal informado ou desatento imaginaria que o Rio Grande do Sul perdeu um gigante, na quarta-feira (13), quando morreu o ex-governador gaúcho José Augusto Amaral de Souza, dois meses antes de completar 83 anos, vítima de complicações de um AVC que desde 2006 o confinava a uma cadeira de rodas. Ele ganhou honras de Estado, luto oficial de três dias e os discursos e elogios de praxe da generosa tradição brasileira, que cobre qualquer morto com a pátina da complacência e repinta biografias sem as cicatrizes, espinhas e rugas conferidas pela vida política.
“Um líder importante do Rio Grande”, definiu, com exagero, o governador Tarso Genro. Foi desenhado com linhas ainda mais indulgentes pelos sete políticos de partidos e tendências diversas que o sucederam no Palácio Piratini, a partir de 1982, por decisão exclusiva do voto popular: Jair Soares (PP), Pedro Simon (PMDB), Alceu Collares (PDT), Antônio Britto (PMDB), Olívio Dutra (PT), Germano Rigotto (PMDB) e Yeda Crusius (PSDB). No limite da fidalguia, uns e outros louvaram Amaral pelos adjetivos piedosos que ocultam a rugosidade natural do último governador indicado pela ditadura dos generais de 1964: “conciliador, absoluto respeito pelos adversários, afável, vida pública sem máculas, atuação importante na política, administrador sério, importância fundamental na transição para a democracia, um amigo, grande companheiro”, e coisas do gênero.
Os sete sucessores de Amaral de Souza que alcançaram pelo voto popular o palácio que Amaral ocupou sem nenhum voto do eleitor gaúcho não cometeriam a deselegância de admitir publicamente o que muitos deles reconhecem mas ninguém diz: Amaral de Souza conseguiu ser a figura mais medíocre da safra dos quatro apagados governadores indiretos, escolhidos pelos quartéis, no período sem povo e sem liberdade que marcou o Piratini e o Rio Grande do Sul entre 1966 (dois anos após o golpe) e 1983 (dois anos antes da queda da ditadura). Ildo Meneghetti (PSD) só escapou dessa sina porque foi eleito pelo voto popular em 1962, quando o país ainda era uma democracia, e sobreviveu ao golpe militar até o final de seu mandato, em 1966, simplesmente porque era um dos golpistas embebido até a medula na conspiração contra o Governo Goulart.
A partir de Meneghetti, com o advento do bipartidarismo imposto pela nova ordem, só a legenda da ditadura podia chegar ao poder. Assim foi com os quatro governadores biônicos da ARENA, elevados sucessivamente ao poder com o indispensável beneplácito dos generais: Peracchi Barcelos (1966-1971), Euclides Triches (1971-1975), Synval Guazzelli (1975-1979) e Amaral de Souza (1979-1983). Só um regime de força pode explicar a inusitada aparição de um político de biografia tão pífia na galeria de 37 governadores do Rio Grande do Sul a partir da proclamação da República em 1889 — 19 deles eleitos pelo povo gaúcho. Amaral estreou na política partidária aos 30 anos, eleito vereador em sua terra natal, Palmeira das Missões, pelo velho PSD, partido conservador ligado às oligarquias rurais.
Virou deputado estadual em 1962, na chapa que elegeu Meneghetti governador, e deu sua tacada certeira dois anos depois, apoiando o golpe que seria a alavanca de sua improvável carreira. Com a extinção dos partidos em 1965, pulou para o barco da ARENA, sucessora do PSD e sigla de confiança dos generais. Amaral elegeu-se deputado federal em 1966, cultivou as estrelas certas em Brasília e ganhou em 1974 o posto sem voto de vice-governador na chapa de Synval Guazzelli. Não era uma homenagem a ele, mas um prêmio de consolação a seu padrinho político do ex-PSD, senador Tarso Dutra, frustrado pelo revés sofrido ante o adversário da ex-UDN, senador Daniel Krieger, que tinha emplacado o afilhado Guazzelli como governador.
Só o forçado atalho dos quartéis é que pode explicar, quatro anos depois, a surpreendente escolha do opaco Amaral como sucessor de Guazzelli. Seu cabo eleitoral tinha todas as luzes que ele necessitava: era o general quatro estrelas Fernando Belfort Bethlem, comandante do poderoso III Exército, a maior força terrestre do país, que reunia as tropas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Seu cacife melhorou ainda mais, em outubro de 1977, quando Bethlem trocou Porto Alegre por Brasília, para assumir o ministério do Exército, na crise que levou à demissão do ministro linha-dura Sylvio Frota pelo duríssimo presidente Ernesto Geisel.
Amaral tinha os amigos certos e os inimigos ideais para aqueles tempos verde-oliva. Seu adversário dentro da ARENA, na disputa sem voto pelo Piratini, era o deputado federal gaúcho Nelson Marchezan, um parlamentar de origem democrata-cristã que cometia um pecado mortal para os mandamentos da ditadura: flertava demais com a oposição, que fizera um esforço quase subversivo em 1966 para eleger um professor liberal, Ruy Cirne Lima, como governador por via indireta, na Assembleia gaúcha. A coligação antigolpe tinha 31 das 55 cadeiras, mas a cassação preventiva de oito deputados transformou a minoria arenista em maioria, a conta exata dos quartéis para eleger o coronel Peracchi Barcellos.
Marchezan ficou marcado pela ousadia. E piorou suas chances, em 1967, quando integrou a oposição na CPI que investigava o aparecimento do cadáver de um ex-sargento do Exército, ligado a Leonel Brizola, boiando nas águas do rio Jacuí, com marcas de torturas e as mãos atadas às costas. O assassinato do sargento Manoel Raimundo Soares — o ‘Caso das Mãos Amarradas’ — virou um escândalo internacional e serviu para Amaral amarrar politicamente as mãos de Marchezan e Guazzelli no decisivo colégio eleitoral dos generais que escolhiam com exclusividade os governantes.
O então vice-governador, com o olho e a ideia fixa na cadeira de titular do Piratini, cultivava com cálculo político os amigos militares que garantiam seu emprego, sua sobrevivência e seu futuro no regime. Nunca recusava o convite para uma partida camarada de cartas com o sucessor do padrinho Bethlem no comando do III Exército, o general Oscar Luís da Silva. Amaral e sua mulher, dona Miriam, eram parceiros fieis no joguinho de biriba com o casal Oscar e Marina na residência oficial do general, na mansão bem vigiada de uma esquina da avenida Cristóvão Colombo, no bairro Higienópolis.
Em março de 1976, o olho atento e o ouvido alerta de Amaral perceberam uma oportunidade preciosa para melhorar seu ibope no exclusivo colégio eleitoral dos generais. Numa sexta-feira, 19 de março, o MDB fez uma reunião política no maior produtor de soja do Estado, Palmeira das Missões, cidade de 65 mil habitantes, 374 km a noroeste da capital. Menos de mil pessoas lotaram o cine Gaúcho para ouvir uma dúzia de deputados estaduais e federais, comandados pelo líder do MDB gaúcho, deputado Pedro Simon. As duas figuras mais animadas da noite eram os federais gaúchos Nadyr Rossetti e Amaury Muller, destaques do bloco dos Autênticos, a ala mais radical do MDB. Nadyr Rossetti mandou brasa:
— A queda do regime é coisa certa. Se não for por podre, será pela corrupção.
Amaury Muller ecoou:
— Somos governados não pela vontade do povo, mas pela força das armas. Estamos em um regime de golpe, não de revolução, dominados pela aristocracia fardada.
A reunião acabou, sem maiores sobressaltos. Afinal, parecia apenas uma justa e previsível lambada de uma oposição sufocada, desabafando num cinema empoeirado do interior distante. Três dias depois, 22, uma segunda-feira, o encontro irrelevante num grotão gaúcho pipocou de repente em Brasília, na tribuna da Câmara dos Deputados, pela palavra veemente do deputado federal gaúcho Fernando Gonçalves, da ARENA, que deu relevo nacional ao encontro da província. Tudo ali tinha o olho, o ouvido e o dedo rígido de Amaral.
Por acaso, o deputado Gonçalves era o cunhado do vice-governador. Por fatalidade, Palmeira das Missões era a terra natal de Amaral. Por gentileza, um assessor do vice-governador conseguiu uma cópia da gravação com todos os discursos daquela noite no cinema. Por patriotismo, a fita do assessor de Amaral caiu nas mãos do parceiro de biriba, o comandante do III Exército. Na quarta-feira, 24, o agradecido general Oscar Luís da Silva embarcou para a reunião do Alto Comando do Exército em Brasília levando na pasta o mimo gravado pela turma de Amaral. Na quinta, 25, a manchete do jornal Correio do Povo dava a crônica da morte anunciada: “Discursos do MDB levados por Oscar Luís a Brasília”.
Rossetti e Muller foram cassados pelo AI-5 na segunda-feira, 29 de março. Graças ao ouvido sensível, ao olho bom e ao dedo ruim de Amaral de Souza, louvado na morte pelos seus sucessores no Piratini e seus esquecidos opositores na ditadura como “um amigo, grande companheiro, afável, conciliador, vida pública sem máculas e absoluto respeito pelos adversários…”.
Em setembro de 1977, um mês antes de assumir o ministério em Brasília, o general Bethlem operava em Porto Alegre como o cabo eleitoral mais graduado e decisivo para as pretensões futura de Amaral. Chamou ao QG do III Exército, na rua da Praia, o homem mais poderoso e influente da comunicação gaúcha — Breno Caldas, dono da Caldas Júnior, a empresa jornalística que, além do prestigiado Correio do Povo, tinha outros dois diários e uma rádio. No ranking de 1969 da revista Visão, o empresário despontava como o sexto homem mais rico do país. Na ficha dos militares, Breno Caldas era lembrado pelo apoio que dera ao golpe de 1964 e no enfrentamento diário a Leonel Brizola. Ao final do almoço, em pé para o cafezinho, cercado por meia dúzia de generais, Bethlem entrou de coturno no assunto:
— Dr. Breno, nós o convidamos para vir aqui pois queríamos ouvir sua opinião sobre o convite que desejamos fazer ao vice-governador Amaral de Souza para ser o próximo governador…
A democracia sem sutileza daqueles tempos era assim. General, e não o povo, é que ‘convidava’ alguém para ser governador. O Dr. Breno ficou surpreso.
— Como assim? A minha opinião?… Não conheço essa pessoa o suficiente para dar uma opinião, isto é, para emitir um conceito. Não tenho opinião formada a seu respeito. Poderia quando muito dar uma impressão… E que não é favorável!
Os generais se empertigaram, ainda mais curiosos.
— Mas… Qual é a sua impressão? Nós gostaríamos de saber…
Breno Caldas não se acuou diante das estrelas que o cercavam.
— A minha impressão é que ele está abaixo do nível necessário… Falta-lhe pelo menos um palmo e meio.
— Como assim? – perguntou o comandante do III Exército, espantado diante da inusitada régua de medição do empresário. – Em que sentido, Dr. Breno?
— Em todos os sentidos. Ele não tem estatura física, nem pessoal, nem moral…
Apesar do palmo e meio a menos, Amaral subiu as escadarias sem povo do Palácio Piratini em março de 1979, numa cerimônia que mais parecia um velório do que a festiva transmissão de posse entre dois companheiros de legenda. As fotos da época mostram a derrota fragorosa estampada na cara funérea de Guazzelli, fisionomia cerrada, cenho franzido, incapaz de esconder o constrangimento que teve de engolir — pela escolha dos quartéis e pela decisão irrecorrível do general Ernesto Geisel, o gaúcho de Bento Gonçalves cujo voto solitário prevaleceu sobre a vontade soberana de 6 milhões de gaúchos.
Esta, afinal, é a lógica das ditaduras.
O espantoso diálogo de Breno Caldas com os generais só vazou porque o próprio jornalista resolveu relembrar tudo aquilo, em fevereiro de 1983, em editorial por ele escrito e publicado na edição dominical do Correio do Povo para seus 100 mil assinantes, intitulado “Palmo e meio”. O empresário reagia à péssima notícia que recebera ainda na festa de inauguração do Polo Petroquímico do Sul, em Triunfo, a 52 km de Porto Alegre. O Banrisul, banco oficial do Estado, subordinado ao ainda governador Amaral de Souza, tinha entrado naquele dia na Justiça com uma ação executiva pela dívida da Caldas Júnior.
Mais de cinco anos após aquela esquisita conversa no QG, Breno Caldas resolveu contar ao mundo o que costumava circular apenas nas dobras mais íntimas do poder discricionário da época. Convertido de repente às virtudes do regime democrático que ajudou a derrubar em 1964, o Breno Caldas endividado de 1983 agora lamentava os pecados da escolha autocrática dos generais. Escreveu ele no editorial:
“Como o personagem em causa [Amaral de Souza] não foi submetido ao teste de uma eleição direta, mediante a qual existisse a possibilidade de consenso amplo, não sei se minha impressão, que depois se tornou opinião consistente, seria, ou não, aprovada pelo grande número. Não sei. Para mim, o que se viu não deixa dúvidas”.
Amaral de Souza, o personagem em causa, só chegou ao Piratini pela via oblíqua dos quartéis porque a ditadura sempre dispensa o ‘consenso amplo’ típico das democracias, tardiamente lembrado pelo nostálgico Breno Caldas. Apesar da falta de ‘estatura física, pessoal e moral’ anotada pelo mais importante jornalista gaúcho da época, Amaral escalou o Palácio Piratini com o braço amigo e a mão forte do Exército, que compensou sem sobressaltos o palmo e meio de sua escassa biografia política. Conseguiu ser o menor dos 36 homens e uma mulher que governaram o Estado, desde a República.
Com seus ralos 1m58, Amaral de Souza conseguia ser ainda mais baixinho do que Getúlio Vargas, que saiu da vida e entrou na história como líder de massas, regente por um quarto de século de um país redesenhado politicamente à sombra descomunal que se projetava de seu parco 1m60 de altura.
Amaral não correu jamais esse risco de grandeza, até porque ganhou notoriedade na política como um mero Amaralzinho, o diminutivo que explica melhor sua miúda passagem pela história.
Amigos apressados e adversários educados tentaram dourar sua morte com encômios pela conquista do Polo Petroquímico, de tão amarga memória para o desafeto Breno Caldas. Mas não passa de uma inverdade histórica, que tenta dar algum lustro ao reles mandato de Amaralzinho. A construção do terceiro polo petroquímico do país, que o Rio Grande do Sul disputava com São Paulo, Pernambuco e a Bahia do poderoso Antônio Carlos Magalhães, então presidente da Eletrobras, foi decidida em agosto de 1977 pelo general Ernesto Geisel, convencido por uma inédita união entre governo e oposição no sul.
De um lado, a ARENA do governador Synval Guazzelli e, de outro, o MDB de Pedro Simon, que controlava uma folgada maioria de 31 das 56 cadeiras da Assembleia Legislativa, onde se criou uma Comissão Especial. Pelo Polo de Triunfo, Guazzelli e Simon foram a uma inédita, rara reunião com Geisel em Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai. A vitória gaúcha ficou evidente quando Geisel reagiu, animado, diante da presença inesperada do MDB: “Como não aceitar um pedido de uma composição tão exemplar que a política do Rio Grande está dando como exemplo para todo o Brasil?”.
As digitais do pequeno Governo Amaralzinho se percebem com a aparição do inquieto CPERS, o Centro de Professores do Estado, que ocupou a praça da Matriz e infernizou a vida do governador ao longo de 13 dias de uma greve barulhenta pelo piso de 2,5 salários mínimos. A partir de Amaralzinho, nenhum governador mais pode festejar o silêncio do CPERS. Como uma maldição de Breno Caldas, morto em 1989 aos 79 anos, Amaral também deixou o governo endividado, com um aumento de 79,1% no rombo das contas públicas, obrigando o Estado a buscar recursos no Banrisul e no BRDE para cobrir o déficit operacional.
No final de 1980, Amaral promoveu o policial mais famoso do sul, Pedro Carlos Seelig, a delegado de quarta classe, o ponto mais alto da hierarquia da segurança. Era o contraponto ao crepúsculo do homem mais temido do DOPS gaúcho, cuja carreira entrou em declínio após o fiasco do sequestro dos ativistas de esquerda uruguaios Universindo Díaz e Lílian Celiberti e seus dois filhos, presos numa ação clandestina da Operação Condor, em novembro de 1978 em Porto Alegre, executada por agentes de Seelig e militares da repressão do Uruguai. Braço longo da repressão no sul, onde era conhecido como “o Fleury dos Pampas”, Seelig tinha a proteção incondicional da área militar, que sempre merecia atenção especial de Amaral.
Isso não impediu que, em maio de 1982, um ano após o frustrado atentado do Riocentro que escancarou a ação terrorista do DOI-CODI, Amaral tomasse uma ousada decisão: extinguiu o DOPS de Seelig. O secretário de Segurança, João Leivas Job, explicou o ato: “Como consequência do processo de abertura, o DOPS não é mais necessário”. Na verdade, era o sistema repressivo da ditadura se preparando para o advento das eleições diretas, em outubro daquele ano, que poderia abrir documentos incômodos aos governantes eleitos pela oposição. Uma decisão reservada de Brasília estava transferindo preventivamente as ações de repressão política dos Estados para a área mais confiável da Polícia Federal.
Dois dias depois, uma quinta-feira, 27 de maio de 1982, Amaral aumentou sua aposta, determinando a incineração dos preciosos arquivos do DOPS. Quatro caminhões de mudança levaram toneladas de documentos do DOPS da avenida Ipiranga para os fornos de uma olaria da Brigada Militar em Gravataí, na Grande Porto Alegre, onde queimaram durante oito horas. Viraram cinzas os papéis que contavam 44 anos de repressão política do DOPS gaúcho, criado na ditadura do Estado Novo de Vargas.
O ativista Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), qualificou a pirotecnia de Amaral como uma ‘farsa’, pois parte dos documentos supostamente destruídos foi localizada anos mais tarde em Montevidéu. “Os documentos foram microfilmados. O arquivo do DOPS foi modernizado e entregue ao Comando Militar do Sul”, diz Krischke, referindo-se à nova denominação do III Exército. Ele diz que, nos arquivos do MJDH em Porto Alegre, existem documentos do extinto DOPS com anotações de datas posteriores à queima pública. “Se essas fichas foram queimadas, como aparecem aqui com atualizações?”, pergunta ele.
Na época da fogueira, o então candidato do PT a governador, Olívio Dutra, resumia assim a questão: “O Governo já perdeu as eleições no Rio Grande e quer evitar que os arquivos caiam nas mãos da oposição”. Amaralzinho, muito precavido, parecia também acreditar nisso. Como se sabe, porém, o Governo não perdeu. Dividida entre PMDB, PT e PDT, a Oposição deixou de ganhar uma eleição que parecia líquida e certa. O candidato de Amaral, Jair Soares, da ARENA rebatizada como PDS, venceu o favorito Pedro Simon, do PMDB, por apenas 22.373 votos, cerca de 0,6% do eleitorado gaúcho, numa apuração controversa contaminada pela suspeita de fraudes — nunca provada e estimulada pelo precoce reconhecimento da derrota pelo PMDB, o que desativou todo o mecanismo de fiscalização do pleito.
Assim, com tantos serviços prestados ao regime que serviu com fidelidade canina, Amaralzinho pode enfim passar o cargo em 1983 a um governador eleito diretamente pelo povo, algo que não acontecia no Estado há 21 anos — o tempo de vida da ditadura (1964-1985). A ironia é que, depois de duas décadas sem o ‘consenso amplo’ da democracia, a primeira eleição direta no Rio Grande consagrou um legítimo herdeiro da ARENA da ditadura que cassou o voto popular e que gerou governantes com palmo e meio de legitimidade política. Esta, talvez, tenha sido a marca mais expressiva daquele governo pontuado pela inexpressividade.
Resta lamentar que um Estado um dia conhecido por sua cultura e coragem política não consiga, em plena democracia, pintar o justo retrato, com verrugas e tudo, que nos revelam os homens e suas imperfeições perante a História. Esta é uma tarefa indelegável das lideranças políticas, uma obrigação permanente da imprensa e seria uma reação previsível de seu braço mais militante — os blogs e sites combativos que, estranhamento, engoliram em seco a visão adocicada sobre Amaralzinho e seu legado político. Um país maduro e informado se constrói todo dia pelo retrato sem retoque daquilo que é, daquilo que se faz e daquilo que se vê.
Até um gênio da pintura pode errar a mão. O alemão Hans Holbein (1498-1543), o Jovem, um dos mestres do retrato no Renascimento, em tempos sem Internet e sem Photoshop, foi contratado pela Corte inglesa para fazer o retrato prévio de Ana de Cleves, filha do duque alemão de Dusseldorf que atraía os olhares gulosos do rei inglês Henrique VIII (1491-1547).
Holbein se esmerou e retratou uma jovem que ficou mais bonita na moldura da parede do que na cama do rei. Chegou ao requinte de ocultar as cicatrizes de varíola na face que poderiam assustar o real pretendente. Quando enfim foi apresentado à noiva, o rei conferiu pessoalmente o engano. Ainda assim, Henrique VIII conseguiu aguentar seis meses de casamento em 1540 com Ana, a quarta rainha de sua coleção de seis mulheres.
Quase um século depois, Oliver Cromwell, o líder puritano que decapitou o rei Charles I (1600-1649), revogou a monarquia absoluta e estabeleceu uma fugaz República em Londres 140 anos antes da queda da Bastilha, não perdeu a cabeça ao encomendar seu retrato ao mestre Peter Lely (1618-1680). Com o desprendimento que seria útil a qualquer político ou repórter diante das verrugas de Amaralzinho, o temido Cromwell, Lorde Protetor do Reino Unido, isentou o pintor oficial da corte de qualquer autocensura.
Peter Lely, de origem holandesa, era o retratista particular de Charles I, mas sobreviveu ao rei pelo talento e obediência às ordens de Cromwell em 1635: “Mr. Lely, eu desejo que você use toda a sua habilidade ao pintar o meu retrato verdadeiramente como sou, sem lisonjas. Observe todas essas rugosidades, espinhas, verrugas e tudo como você me vê. Se não for assim, não pagarei um centavo por ele”.
A máscara mortuária de Cromwell comprova que Lely foi fiel às determinações do retratado, preservado as duas enormes verrugas que marcam o rosto do Lorde — uma no queixo, abaixo do lábio, outra sobre o supercílio direito, próxima ao nariz. A lição de honestidade imposta por Cromwell fez escola, como se pode ver em retratos semelhantes pintados por outros artistas, todos preservando as rugas, espinhas e verrugas da vida real.
Quase quatro séculos depois, o retrato público de Amaralzinho retocado pela indulgência plenária de seus crédulos simpatizantes prova que o exemplo de Cromwell continua necessário. Afinal, o pentimento da história não se resgata com o fingimento da política.

Luiz Cláudio Cunha é jornalista
[cunha.luizclaudio@gmail.com]

segunda-feira, 28 de maio de 2012

A “vacina” do doutor Gilmar


Fiquei sabendo da última da dupla Veja/Gilmar Mendes na tarde de sábado, durante o 3º Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, que ocorreu no fim de Semana em Salvador. O assunto foi muito discutido pelos blogueiros. E caso alguém esteja chegando agora de Marte e não saiba do que se trata, aí vai um breve relato.
Veja publicou mais uma daquelas “denúncias” baseadas em grampos sem áudio e declarações sem provas. Parece até surpreendente pela ousadia, mas não é. Para falar a verdade, é tudo até bem banal.
Segundo a revista, Gilmar Mendes teria encontrado Lula “casualmente” no escritório de Nelson Jobim e, então, o ex-presidente teria tentado chantagear o ministro do STF para que “aliviasse” para os envolvidos no inquérito do mensalão, que será julgado proximamente. Teria ameaçado o magistrado com os indícios de envolvimento seu com Demóstenes Torres e Carlinhos Cachoeira.
O colunista de O Globo Jorge Moreno, no mesmo sábado da chegada de Veja às bancas, fez contato com Jobim, que negou tudo. E, claro, esse colunista que vive pedindo desculpas públicas aos chefes por matérias que os desagradam conclui o relato do desmentido de Jobim bem ao estilo de O Globo, insinuando que “sentiu”, pela voz do entrevistado, que ele mentiu para encobrir Lula.
Em conversas com outros blogueiros em Salvador, especulamos muito sobre o que pode ter levado  Veja a publicar matéria tão fraca, apesar do suposto endosso de Mendes à acusação da revista. Particularmente, fiquei com a pulga atrás da orelha. Seria Veja tão idiota? Estaria tão “desesperada”, como muitos acham que está? Desespero algum. Veja faz essas coisas como se estivesse escovando os dentes.
Primeiro, não nos esqueçamos de uma coisa: a história do grampo sem áudio, protagonizada por Mendes e Demóstenes Torres, derrubou Paulo Lacerda, um dos policiais mais respeitados do país. Ou seja: uma história sem pé nem cabeça, que jamais foi provada, produziu uma das maiores injustiças da era Lula e uma longa investigação (inútil, porque não encontrou nada) da Polícia Federal.
Diante de fatos assim, percebemos que uma empresa de comunicação conseguiu manipular a República sem maior esforço. E por que? Simplesmente porque tinha uma autoridade do porte de um ministro do Supremo a respaldá-la. Assim, a investigação mostrou que jamais existiu grampo algum e tudo ficou por isso mesmo.
Ou seja: não chega a ser surpreendente o que acaba de acontecer.
Diante do desabamento iminente da história de Mendes/Veja, decorrente do desmentido de Jobim, as forças que a produziram saíram logo com um boato que estão fazendo circular na internet, de que o ministro do STF teria gravado a suposta tentativa de Lula de chantageá-lo.
Se existisse isso, teríamos que concluir que Lula enlouqueceu com o tratamento contra o câncer. Com tantos ministros do STF que nomeou, por que iria se preocupar em cometer um crime chantageando um adversário? Estamos falando de Lula, do homem que nomeou procuradores-gerais da República que atacaram seu grupo político sem dó nem piedade.
Então vamos lá: o que direi agora não é uma opinião, mas um fato que logo irá se comprovar. As gravações da Polícia Federal que geraram a CPI do Cachoeira envolvem Mendes até o pescoço. E não só a ele. Envolvem Veja, envolvem Globo (como mostra reportagem de Leandro Fortes na Carta Capital deste fim de semana) e outros grandes veículos. E junho será o mês dessas revelações.
Para que se tenha uma idéia, há dezenas de gigabites de gravações, vídeos e áudios da PF que ainda não foram transcritos, que estão em estado bruto, e que agora chegam à CPI. Fontes fidedignas garantem que o que existe ali é dinamite pura. Tanto que a Globo, segundo a Carta Capital, teria procurado Michel Temer para mandar um recado a Dilma: a mídia não pode ser investigada. Senão…
Senão o quê? O que a mídia poderia fazer além do que fez em 2005 e 2006, durante o escândalo do mensalão? Forjaria uma gravação que, após periciada e considerada falsa pelos peritos, a mídia diria não poder endossar ou negar como fez com a ficha policial falsa de Dilma que a Folha de São Paulo publicou na primeira página? Faria, sim.
O que vem agora, pois, é que é apenas opinião do blogueiro: a iniciativa da mídia e de Gilmar Mendes foi tentativa de criar uma vacina contra o que virá à tona, para que possam dizer que tudo decorre de “vingança” de Lula pela denúncia do ministro do STF e da revista contra si.
Veja a manipulação, leitor: o site Consultor Jurídico pediu ao ministro Celso de Melo, do STF, que analisasse a hipótese de Lula ter realmente feito o que Veja e Mendes dizem que fez. O que se esperaria que ele dissesse, que não haveria nada demais? Claro que não. Diria que, sendo verdade, seria um crime. E o que faz a mídia? Divulga a entrevista como se Melo estivesse condenando Lula, apesar de só estar falando sobre mera hipótese.
Manipulação pura e simples dos fatos pela mídia não é novidade para ninguém. E essa de agora é só mais uma, que servirá como estratégia diversionista, ou seja, para tirar o foco da CPI e intimidar seus membros.
Todavia, podem escrever aí: essa jogada só tornará inevitável a convocação de Policarpo Júnior ou até de Roberto Civita pela CPI. E mais: irá quebrar resistências da base governista, notadamente no PMDB, que, agora, foi diretamente atacado com a tentativa de colocarem Jobim e Lula no mesmo balaio.
A matéria da Veja enterrou de vez uma possibilidade que jamais existiu, de ser produzido um arreglo entre governo e oposição para a CPI terminar em pizza. E essa matéria é a prova definitiva de que a mídia e Mendes concluíram que o PT e aliados estavam dispostos a levar o processo até o fim. Por isso fizeram ataque desse porte.

sábado, 26 de maio de 2012

Confirmado: Gilmar Mendes e a revista do crime organizado mentiram

 

Jobim nega pressão de Lula sobre STF para adiar julgamento do mensalão 
Ex-presidente teria se encontrado com Gilmar Mendes no escritório do ex-ministro da Defesa, segundo 'Veja'
Estadão

O ex-ministro da Defesa Nelson Jobim negou hoje que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tenha pressionado o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a adiar o julgamento do mensalão, usando como moeda de troca a CPI do Cachoeira.

Reportagem da revista Cachoeira News Veja publicada neste sábado relata um encontro de Lula com Gilmar no escritório de advocacia de Jobim, em Brasília, no qual o ex-presidente teria dito que o julgamento em 2012 é "inconveniente" e oferecido ao ministro proteção na CPI, de maioria governista. Gilmar tem relações estreitas com o senador Demóstenes Torres (sem partido, GO), acusado de envolvimento com a quadrilha do bicheiro Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira.

"O quê? De forma nenhuma, não se falou nada disso", reagiu Jobim, questionado pelo Estado. "O Lula fez uma visita para mim, o Gilmar estava lá. Não houve conversa sobre o mensalão", reiterou.
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Jobim disse, sem entrar em detalhes, que na conversa foram tratadas apenas questões "genéricas", "institucionais". E que em nenhum momento Gilmar e o ex-presidente estiveram sozinhos ou falaram na cozinha do escritório, como relatou Veja. "Tomamos um café na minha sala. O tempo todo foi dentro da minha sala, o Lula saiu antes, durante todo o tempo nós ficamos juntos", assegurou.

Questionado se o ministro do STF mentiu sobre a conversa, Jobim respondeu: "Não poderia emitir juízo sobre o que o Gilmar fez ou deixou de fazer".

Procurado pelo Estado, Pertence negou ter sido acionado para que intercedesse junto a Carmen Lúcia: "Não fui procurado e não creio que o ex-presidente Lula pretendesse falar alguma coisa comigo a esse respeito".

Gilmar Mendes na Papuda, já! - Gilmar Mendes tem culpa no cartório

 

 

 

A maior ameaça ao Supremo
Luis Nassif

Para se expor dessa maneira, só há uma explicação para a atitude do Ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal): tem culpa no cartório.

Gilmar participou de duas armações anteriores com a revista Veja: o “grampo sem áudio” (junto com seu amigo Demóstenes Torres) e o falso grampo no Supremo.

No primeiro caso, pode ter participado sem saber. No segundo foi partícipe direto.

Como se recorda, a revista abriu capa com a informação de que havia sido detectada escuta em uma das salas do Supremo. Serviu para uma enorme matéria sobre a “república do grampo” e para a prorrogação da CPI. Tudo com o objetivo de derrubar a Operação Satiagraha.

Era falso. O relatório da segurança do Supremo – entregue à revista por pessoas ligadas à presidência do órgão – não indicava nada.

Era um relatório banal, que havia captado alguns sinais de fora para dentro. Entregue à CPI, o relatório foi publicado aqui e em pouco tempo engenheiros eletrônicos desmontaram a farsa: como é possível um grampo que capta sinais de fora para dentro? Era isso o que o relatório indicava. O mais provável é que fosse um mero sinal de alguma externa de emissora de televisão. E Gilmar-Veja conseguiram, com essa armação, prorrogar uma CPI!

Nenhum especialista em grampo cairia nessa confusão. Gilmar ou seus homens apenas seguiram o roteiro tradicional da revista para criar escândalo: uma verdade irrelevante (a captação de sinais de fora para dentro), a ocultação do fato relevante (sinais de fora para dentro não têm nenhum significado) e, pronto!, mais um escândalo fabricado - impossível de ser desmentido, já que o acordo com a velha mídia colocava uma barreira de silêncio a todos os abusos da revista.

Àquela altura, Veja mostrava seu enorme despreparo para entender as novas mídias. Não se deu conta de que a blogosfera tinha se convertido em uma alternativa eficaz contra pactos de silêncio. E a denúncia da armação foi difundida.

Agora, com as redes sociais em plena efervescência, com os métodos da revista sendo progressivamente questionados, tenta-se essa jogada, que lança Gilmar Mendes no centro do vulcão.

O que o levou a essa provável armação é óbvio: medo da CPI. Pela matéria da revista, fica-se sabendo que o fato que o ameaça teria sido uma suposta viagem à Alemanha bancada pelo bicheiro Carlinhos Cachoeira.

Na matéria, Gilmar desmente, afirma que vai para a Alemanha como Lula vai a São Bernardo. E diz ter condições de comprovar que pagou as despesas. Que mostre, então (a revista não mostra os comprovantes).

Tem mais.

Até hoje não deu as explicações devidas pelo factóide do tal grampo no Supremo. Quem armou a jogada? Foi o chefe de segurança que contratou e que era especialista em grampos? Foi seu chefe de gabinete? Foi o assessor de comunicação do Supremo?

Aliás, o próprio Supremo – não fosse o corporativismo rançoso – há muito deveria ter cobrado explicações de seu então presidente. Os mais altos magistrados do país comportam-se como qualquer juiz que não quer julgar, “porque isso não é comigo”, ou procurador que testemunha uma grave ofensa a interesses difusos, mas não se julga responsável por atuar, por não ter sido provocado.

E é a imagem da Suprema Corte que está em jogo, da qual cada Ministro deveria se sentir responsável.

Com seu açodamento, falta de limites e de respeito pela casa, nunca houve Ministro do STF como Gilmar Mendes.

Talvez apenas Saulo Ramos conseguisse superá-lo - caso tivesse sido indicado por José Sarney.

terça-feira, 22 de maio de 2012

Lula, Agnaldo Timóteo e o preconceito

Na contramão da História

Leitor da seção “O Globo há cinquenta anos”, recomendo sua leitura por alunos e professores em sala de aula. Ali, quase diariamente, encontra-se um repositório notável do atraso de nossa vida republicana, o que nos possibilita conhecer o papel de nossa imprensa corporativa como eficiente correia de transmissão da ideologia da Guerra Fria (importando um embate que não nos dizia respeito e trazendo para cá a visão estadunidense), invariavelmente de costas para os interesses nacionais, avessa aos interesses populares e sempre atenta aos negócios do grande capital, principalmente o capital internacional.
os grandes jornais sempre se opuseram ao nacional e ao popular, e assim combateram a campanha do “Petróleo é nosso” e ainda hoje rejeitam a Petrobrás. Foto: José Vieira Trovão / Ag. Petrobras
 
 
Escrevo “nossa imprensa” de forma proposital, pois O Globo não era, não foi e não é uma exceção nesse servilismo aos interesses antinacionais e, sobretudo, contrários ao desenvolvimento do país e a tudo que diga respeito ao povo. O cheiro dos marmiteiros sempre ofendeu ao olfato sensível dos comensais dos Le bec fin.
Por coerência, os grandes jornais sempre se opuseram ao nacional e ao popular, e assim combateram a campanha do “Petróleo é nosso” e ainda hoje rejeitam a Petrobrás e se arrepiam, irritadiços, sobressaltados, diante de qualquer movimento que lhes possa sugerir o menor sintoma de nacionalismo (ou defesa dos interesses nacionais) que possa pôr em risco o projeto do grande Império. Ou de defesa do Estado. E sempre que este submerge, quem paga o pato são os interesses da Nação e dos mais pobres.
Exemplar do que afirmo é a primeira página da edição do Globo do dia 26 de abril de 1962. Depois de anunciar com alegria a “Primeira explosão nuclear no Pacífico”, sem danos ambientais (embora também diga que “o engenho lançado de um avião que voava a grande altitude, desencadeou numa força explosiva calculada entre 20.000 e um milhão de toneladas de TNT”), o jornal condenava a ameaça de aprovação do projeto do deputado Aarão Steinbruch que instituía o 13º salário: “Os meios financeiros consideram altamente inflacionária e de consequências desastrosas para a economia nacional a implantação de um 13º salário”.
A previsão catastrofista vem no discurso do oráculo do conservadorismo de então: “Deixando de lado a agricultura, para a qual faltam dados positivos, o economista Eugênio Gudin calcula em cerca de Cr$ 80 bilhões a sobrecarga que o aumento representaria no orçamento das empresas”.
Contam os fatos que o projeto foi aprovado e que sua aplicação acumula, hoje, 50 anos de sucesso. Nenhuma empresa faliu por conta dele, o comércio ganhou (e ainda hoje festeja a iniciativa) e começávamos ali a investir no que até os ortodoxos reconhecem ser a alternativa de nossa economia, a saber, o fortalecimento do mercado interno.
 
Mino Carta: Eternos chapa-branca
Na contramão da História, a mesma imprensa combatia, desde sua instituição, tanto o salário mínimo (Decreto-Lei n.2 2.162 , de 12 de maio de 1940), quanto seus reajustes anuais, sempre apontados como inflacionários. Assim, em 1954, o anúncio de um reajuste de 100%, afinal concedido, provocou grande campanha de imprensa, a edição de um famoso e subversivo “Memorial dos Coronéis” e, afinal, a demissão do Ministro do Trabalho, João Goulart. Jamais aumentar salários, jamais regular a remessa de lucros para o exterior, taxar as grandes fortunas e as grandes heranças. Jamais estabelecer alíquotas crescentes do Imposto sobre a Renda. Derrubar a CPMF e assim desfalcar o orçamento de nada menos que o ministério da Saúde, ah! isso, sim… Para “destravar a economia”? Não. Seu objetivo era reduzir o controle das movimentações financeiras.
Lembremo-nos de que um dos primeiros atos dos golpistas de 1964 foi a revogação da lei de remessa de lucros…
Agora, já começa a mesma imprensa a dizer que o combate aos juros altos, aumentando o crédito ao consumidor, pode constituir-se em agente inflacionário. Todos os países do mundo podem ter juros mais baixos que o nosso e muitos deles crescer em índices superiores ao nosso. Mas o Brasil, não. Esquecem-se os catastrofistas, e esquecem propositalmente, que nosso país sempre cresceu por força da expansão de seu mercado interno, responsável, ademais, pela resistência de nossa economia ao abalos exógenos, de que é exemplo esta última (no sentido de a mais recente) crise do capitalismo financeiro.
O panorama internacional é de desaceleração (e sabemos hoje que as potências europeias não conhecem vacina para a crise, cenário persistente ainda por muitos anos), principalmente na medida em que insistem na suicida política recessiva, imposta unilateralmente (contra os países e suas populações) por uma Alemanha governada pelos interesses dos banqueiros.
A desaceleração das grandes economias, seja qual for o comportamento da China, cuja taxa de crescimento tende a decair sob controle (felizmente), indica, para países como o Brasil, uma queda de suas exportações, principalmente em setores como a exportação de produtos primários, commodities e minérios.
Esse panorama, que assim se descreve desde a aceleração da crise, cobra da economia brasileira o fortalecimento do mercado consumidor interno. Consumidor, bem entendido, na medida em que tiver trabalho e renda.
O fortalecimento desse mercado interno – antigo e permanente pleito da esquerda brasileira – é uma das mais significativas conquistas do governo Lula. Para tal objetivo foi importante o Bolsa Família, foram importantíssimas as políticas de transferências previdenciárias e de assistência social e o apoio à agricultura familiar. Mas fundamental foi o aumento de algo como 60% do salário mínimo. Essas medidas foram responsáveis, em seu conjunto, pela criação do que se chama de Classe C (ou de uma nova classe C), cujo poder de compra é equivalente a 12% do PIB.
Essa política é aprofundada pela presidente Dilma quando, corajosamente, decide enfrentar a ganância do sistema financeiro insaciável e irresponsável, impondo uma política de juros consentânea com nossa realidade e as necessidades de nosso mercado, a saber, aumentando o acesso ao crédito, de que decorre o aumento do poder de compra do mercado interno, a reativação do comércio e da indústria, transformando em virtuoso o círculo vicioso da recessão que aumentaria a recessão.
Nesse ponto identificamos um salto de qualidade da atual política, na medida em que se livra dos grilhões do sistema financeiro (parasita por definição) e se associa ao capital produtivo, construindo novas perspectivas de vida para as grandes massas, sempre marginalizadas pelos monetaristas de plantão.
Sabe-se, porém, que a nova política de Dilma, nada obstante sua decisão pessoal, não seria exequível se o governo não dispusesse do tripé Banco do Brasil-Caixa Econômica Federal-BNDES, quase privatizados pela insânia neoliberal.
A política Lula-Dilma, assim, incorpora ao desenvolvimento sua fundamental dimensão social, o acesso à cidadania das populações mais pobres.
Enquanto isso, do outro lado do Equador, as economias classicamente desenvolvidas (EUA, Inglaterra e Japão, para não lembrar Grécia, Irlanda, Espanha e Itália…) convivem com altas taxas de desemprego, baixíssimas taxas de crescimento (tendendo para a estagnação) e no limiar da recessão, com seu perverso custo político, as restrições ao Estado do bem-estar, a xenofobia, as restrições ao livre-trânsito dos nacionais em suas fronteiras, e, mesmo, a realimentação da direita, na França com o fortalecimento da herdeira de Le Pen e na Grécia com o reaparecimento de um arremedo de nazismo, e como tal tanto abjeto quanto grotesco.
A combinação de recessão, miséria e desemprego foram sempre o caminho mais curto para a instauração das tiranias.
De outra parte, os países que se afastaram do monetarismo e do catecismo neoliberal, como o Brasil, retomaram o crescimento, aumentaram suas taxas de emprego e até aqui mantêm sob controle a ameaça da recidiva inflacionária, e, assim, em situação melhor que os “ricos” a enfrentar a crise global, uma crise do sistema privado que estourou no colo do setor público.
Por isso mesmo, cada vez mais consolidamos a opção democrática e começamos a transitar da democracia formal (política), para o que, num amanhã ainda distante, poderemos chamar de democracia real (à falta de denominação mais adequada), aquela que realizará a justiça social.