A incerteza que antecede as definições do segundo governo Dilma mantém o Brasil em suspenso à direita e à esquerda.
Mercados financeiros giram feito barata tonta ao sabor dos mais desencontrados boatos.
Vendidos
suplicam por um boato baixista; comprados dão a vida por uma puxada nas
cotações. Ganha-se na diferença diária entre um zunzum e outro.
Especulações sobre o comando da economia oscilam entre o tudo e o nada, muito pelo contrário.
Há lastro.
É
evidente a dúvida e a divergência nos círculos da própria Presidenta e
do PT: como negociar sem regredir e, sobretudo, com preservar margem
para avançar?
A hipótese de se reeditar o modelo ‘Lula 1.0’,
ortodoxo na condução da economia, heterodoxo no fortalecimento ancorado
em expansão de salários, emprego e políticas sociais tromba na
história.
O quadro de bonança externa que permitiu a relação acomodatícia entre interesses conflitantes não existe mais.
O ciclo acabou na crise de 2008, que levou ao ‘Lula 2.0’ e ao primeiro Dilma, de recortes mais heterodoxos (
Leia a análise de Tarso Genro; nesta pág).
Não apenas isso.
O estreitamento da margem de manobra na economia não encontra qualquer compensação no ambiente político.
Dilma
sai inequivocamente vitoriosa de uma disputa histórica, marcada pelo
confronto feroz entre projetos distintos de país, em meio a uma
transição de ciclo econômico global.
A derrota da restauração neoliberal nas urnas brasileiras não encerra o confronto que permanece em aberto em todo o mundo.
Por isso é ilusório imaginar que o terceiro turno desta vez cederá tão cedo ou em troca de pouco.
Não cederá.
A percepção dessa rigidez adiciona tensões imagináveis na atormentada busca de uma ordenação do próximo governo.
Como
honrar a vitória nas urnas e exercer a iniciativa na esfera econômica e
social, sem ser emparedado pela roleta do mercado financeiro aqui e lá
fora?
O ‘salvacionismo da rendição’ ganha força à medida em que as escolhas giram em falso no relógio do tempo político.
Aqui e ali ouvem-se apelos extremados para Dilma ‘resolver logo’.
O que?
Tudo.
‘Tudo o que o mercado quer’.
Em vão imagina-se que assim haverá a trégua que o comunicado oficial da vitória na noite de 26 de outubro não ensejou.
Setores
do PT antigamente identificados com aquilo que se convencionou chamar
de ‘paloccismo, que vem a ser o neoliberalismo de estrela na lapela,
vendem a ilusão de um apaziguamento.
Em 2006 venderam a Lula a fraude de que se dissesse ‘fui traído’, as capas de ‘Veja’ sobre o dito ‘mensalão’ refluiriam.
O que se deu é sabido.
Dilma sabe que não dá para atender ao apetite pantagruélico e ao mesmo tempo cumprir as obrigações da urna.
Que fazer?
É aconselhável, em primeiro lugar, olhar em volta.
Quem recomenda é o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, em entrevista desta semana a Carta Maior
(assista nesta pág.).
A
desordem no capitalismo internacional é tão grave que o seu principal
bunker financeiro, o FMI, converge rapidamente para se transformar em
defensor de incentivos fiscais e do investimento público, aqui
demonizados pelos bravos rapazes e moças do jornalismo isento.
Até autoridades da zona do euro, arrasada pelo fracasso desse oximoro, a ‘contração expansiva’, ensaiam mudança de tom.
A busca do impossível –crescer e arrochar— faz água por todas as latitudes.
Ou não será essa impossibilidade metafísica que ordena o ziguezagueante discurso do G-20, reunido na distante Austrália?
Oxímoros -- contradições em seus próprios termos-- refletem o esgotamento de uma agenda.
Aquela que levou o mundo a transitar da longa convalescença de 2008 direto para uma era de estagnação.
O ‘novo normal’, a perder de vista, sob os timoneiros do arrocho, compõe um cotidiano em que nada se move.
Exceto
as curvas da desigualdade, o empoçamento do capital fictício, o
fastígio dos paraísos fiscais e a fuga da juventude desempregada para
lugar nenhum.
Os dados estão carimbados no rosto de pedra dos
participantes do G 20: 75 milhões de jovens nunca encontrarão trabalho
em sua vida; o estoque do desemprego mundial requer a criação de 200
milhões de vagas. Mas a Europa continua a despejar gente na rua,
enquanto nos EUA cresce o emprego precário e o rendimento da classe
média hiberna há 15 anos.
Que arranjo ministerial é o mais
indicado para enfrentar o terceiro turno do conservadorismo no Brasil,
enquanto se espera um alvorecer da longa noite neoliberal?
Trazer o conflito para dentro do governo é uma forma de rachar a frente derrotada em 26 de outubro.
A que custo, porém, sob o chicote do juro alto e do emprego declinante?
Outra
hipótese é reformar a bicicleta da correlação de forças pedalando o
mais depressa possível para longe da macroeconomia da recessão: baixar
juro, usar o dinheiro economizado para obras, coordenar o câmbio,
exportar, investir e contratar.
O jogral conservador diz que é o caminho para a morte súbita do governo Dilma.
É
melhor morrer em fogo lento? Degrau por degrau na ladeira do
desemprego, da erosão salarial e do desacorçoo, até o enterro solene em
2018?
Não há escolha fácil num mundo difícil, assoalhado de chão mole por todos os lados.
Mas
a história não é uma ciência exata; por mais que o mercado lhe sonegue
esse predicado ela muda sob a ação dos homens e de suas circunstâncias.
Mudanças no exercício do poder podem alterar as circunstancias e tornar possível o impossível.
Um exemplo meramente ilustrativo?
O Papa.
Nos
últimos dias, o Papa Francisco foi elogiado por duas estrelas
incontestáveis da constelação progressista latino-americana: sua
conterrânea argentina, Estela Carloto, líder do movimento das Abuelas
de Mayo, que ele recebeu no Vaticano e a seu neto recém localizado; e o
brasileiro Pedro Stedile, o indobrável dirigente do MST, um dos
convidados do Encontro Mundial de Movimentos Populares, patrocinado
pelo Papa, no final do outubro.
A receptividade do anfitrião impressionou o marxista Stédile.
‘O
Papa deu uma grande contribuição (ao encontro), com um documento
irrepreensível, mais à esquerda do que muitos de nós; em 2.000 anos,
nenhum Papa jamais organizou uma reunião desse tipo com movimentos
sociais’, atestou Stédile.
Antes de afrontar dois mil anos de
história, o sucessor de Bento XVI --o doutrinário conservador Ratzinger,
que renunciou em fevereiro de 2013--, já havia impressionado uns e
surpreendido outros ao deflagrar uma devassa nos círculos de poder
santo.
Sem cerimonia, Francisco afastou chefões acusados de
abusos sexuais; criou comissões investigativas para devassar as
sacristias do poder; abateu corruptos abrigados em batinas purpuras;
degredou veneráveis incrustrados na burocracia do Banco do Vaticano, de
laços conhecidos com o crime organizado italiano.
Nesta 4ª feira, outras vozes da esquerda regional rasgaram elogios ao Papa por uma nova decisão corajosa.
Francisco
determinou que o Vaticano abra seus arquivos secretos quando isso for
do interesse das investigações sobre desaparecidos políticos durante a
ditadura militar argentina.
Uma reforma jurídica do Estado do Vaticano foi determinada pelo Papa para legalizar essa ruptura.
Sua orientação atinge a ultraconservadora hierarquia do catolicismo argentino.
Ela
já começou a colaborar com as Abuelas de Mayo, na localização de filhos
de desaparecidos políticos, vítimas da ditadura que entre 1976 a 1983
matou cerca de 30 mil argentinos.
A decisão de abrir os arquivos da Igreja tem um significado político especial para o Papa Francisco.
Quando
o nome do Cardeal Arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, 76
anos, foi consagrado em março de 2013 pelo Concílio romano, a reação
predominante na esquerda latino-americana – inclua-se nisso Carta
Maior—foi de desalento e apreensão.
O 265° Papa de Roma, o primeiro latino-americano a ocupar o trono de Pedro, não oferecia motivos para comemorações.
A
própria Estela Carloto desabafou na época que o sucessor do Papa Bento
XVI fazia parte da “Igreja que escureceu o país” durante a ditadura.
‘É
verdade, não sentimos muita alegria com a sua eleição; nunca tínhamos
ouvido Bergoglio fazer menção aos desaparecidos, nem dar qualquer apoio à
busca pelas nossas crianças’, admitiu ela após o encontro efusivo no
Vaticano, onde fez uma autocrítica cercada de elogio ao renascido
conterrâneo.
Não apenas omissão. A principal acusação contra o bispo Bergoglio era de cumplicidade.
Ele poderia, mas nunca facilitou, por exemplo, a reunião das abuelas desesperadas com o Papa.
O
primeiro encontro delas com o Sumo Pontífice, em 1980, deu-se no Brasil
e só aconteceu por interferência de religiosos brasileiros.
No
livro “El Silencio”, o premiado jornalista argentino, Horacio Verbitsky,
recolheu depoimentos e reconstituições que lançam sombras ainda mais
densas sobre o passado do cardeal Bergoglio.
Sabe-se, por
exemplo, que no dia em que a ‘fumata bianca’ do Vaticano anunciou o
‘habemus papam’ e em seguida emergiu a figura do cardeal argentino no
balcão , Graciela Yorio esmurrou as paredes de seu apartamento, a 11.200
quilômetros de distância, em Buenos Aires.
O relato foi estampado nos jornais argentinos e também na Folha de S. Paulo.
A revolta deve-se a uma certeza guardada há 36 anos na memória dessa sexagenária.
Em
maio de 1976, seu irmão, padre Orlando Yorio, foi delatado à ditadura
sedenta e recém-instalada, juntamente com o sacerdote Francisco Jalics,
que hoje mora na Alemanha.
Os dois religiosos ficaram cinco meses
nas mãos dos militares. Incomunicáveis, na temível Escola Mecânica da
Marinha, adaptada para ser a máquina de moer ossos do regime.
Por
omissão ou conivência ativa, atribui-se ao então cardeal Bergoglio —
então com cerca de 40 anos, líder conservador dos jesuítas argentinos—um
pedaço da responsabilidade por essas prisões.
Essa é a convicção
de Graciela, baseada no que ouviu do irmão, falecido em 2000, militante
da Teologia da Libertação como Jalics, que se diz reconciliado com
Francisco.
Não faltaram vozes progressistas a rejeitar esse
enredo macabro, dando testemunho da retidão discreta do conservador
Bergóglio sob o terror militar.
A corajosa abertura dos arquivos
do Vaticano agora poderá dar-lhe o salvo conduto definitivo afastando
sua biografia da sombra desse período.
Mas o fato é que Bergóglio
já se reinventou sob o manto de Francisco. Hoje, figura como uma
referência sintomática do vento novo que sopra na contracorrente da
decadência neoliberal no mundo.
O que teria sido do Papa se mantivesse em Roma a ambiguidade discreta do seu cardinalato na Argentina?
Seria
maculado pela reprovação silenciosa de muitos; seria uma figura
irrelevante na desordem mundial; seria um pequeno conservador na cena
extremada de um mundo em busca de nova identidade e de um ciclo
renovador para o desenvolvimento, a vida e a espiritualidade.
Seriam, enfim, tudo o que Francisco decidiu não ser e não é.
O que sobra disso para a pasmaceira de um Brasil que oscila entre um Meirelles ou um Tombini na Fazenda?
Sobra
a lição da inexcedível capacidade humana para se reinventar nas amarras
das circunstâncias, alterando-as no processo, mesmo sem ignorá-las.
Sobra a hipótese de Dilma vestir o manto da Presidência e poder escolher entre ser Bergóglio ou Francisco.
Sobra o espaço das escolhas na história.
Não fosse assim ela não seria história, mas fatalidade.
Leia,
abaixo, trechos do ilustrativo discurso do Papa Francisco, em 27 de
outubro, na recepção aos participantes do Encontro Mundial de Movimentos
Populares, no Vaticano:
‘Obrigado por terem aceitado este
convite para debater tantos graves problemas sociais que afligem o mundo
hoje (...). Os pobres não só padecem a injustiça, mas também lutam
contra ela! Não se contentam com promessas ilusórias, desculpas ou
pretextos. Também não estão esperando de braços cruzados a ajuda de
ONGs, planos assistenciais ou soluções que nunca chegam ou, se chegam,
chegam de maneira que vão em uma direção ou de anestesiar ou de
domesticar’