A produção independente da tevê britânica “Muito Além do Cidadão Kane” foi ao ar pela primeira vez em 1993, através da BBC de Londres (a tevê pública do Reino Unido), no auge do poder do protagonista do documentário, o empresário brasileiro Roberto Marinho, então controlador do maior império de comunicação do país e um dos maiores do mundo.
Reproduzi o
documentário neste blog mais uma vez devido ao momento surpreendente que este país está vivendo, um momento que deve ser analisado tendo como pano de fundo o poder quase absoluto que Marinho teve em vida e que parecia inesgotável, mas que foi diminuindo ao longo da última década.
A produção britânica foi furiosamente censurada pelo ex-todo-poderoso magnata das comunicações durante a última década do século XX, valendo-se do poder de pressão sobre as instituições que amealhou durante aquele século ao prestar serviços à ditadura mais cruel que este país conheceu.
Todavia, a censura global não adiantou por muito tempo. A internet simplesmente anulou a proibição que a Justiça brasileira impôs ao povo em defesa dos interesses pessoais e comerciais de Marinho. Mas não foi só esse o poder que perdeu aquele que se tornou o símbolo maior do coronelismo eletrônico latino-americano.
O documentário britânico mostra como Marinho manipulava a política brasileira, elegendo e derrubando políticos ao sabor de seus próprios interesses e, reconheça-se, das próprias convicções ideológicas. Mas, também, mostra uma história de derrotas que sofreu apesar do poder imenso que detinha – e que seus sucessores genéticos, reconheça-se igualmente, ainda detêm, em parte.
As Diretas Já, por exemplo. O documentário mostra a ousadia da Globo de tentar esconder manifestações que chegavam a juntar um milhão de pessoas no Rio de Janeiro ou em São Paulo, mas mostra como os brasileiros, naquela época, já tinham aprendido a desconfiar de Marinho.
Tragicamente, o fracasso dos governos Sarney e Collor manteve o país enterrado em crises econômicas por mais de década após o fim do regime militar, permitindo à mídia conservadora incutir na sociedade uma certa “saudade” de uma ditadura que caiu, mais do que tudo, por ter atirado o país em uma crise econômica sem precedentes devido à corrupção imperscrutável dos ditadores.
Apesar do fracasso do Plano Real , de Fernando Henrique Cardoso, que reduziu por alguns anos o descontrole inflacionário – que retornaria ao longo de seu segundo mandato –, a mudança efetiva que tal plano promoveu na vida das pessoas por algum tempo restabeleceu a fé na democracia, mostrando ao povo que a política era, sim, o caminho para mudar de vida.
Sem a reversão do caos inflacionário ao fim do governo Itamar Franco e durante o primeiro mandato de FHC, a sociedade jamais teria ousado eleger Lula, que, em 2002, convertera-se em uma espécie de “última tentativa” popular para mudar o país através do voto, pois até havia pouco inexistia a crença em que a política pode melhorar a vida de todos.
Ressalte-se a importância do sucesso da era Lula, sem o qual o país seria tomado por uma profunda descrença na democracia, com resultados imprevisíveis sobre o próprio Estado Democrático de Direito.
E é na chegada da era Lula, na reeleição do ex-operário e na eleição da sucessora que indicou que se deve analisar o momento imediamente posterior à era Roberto Marinho, encerrada com a sua morte. Uma era que a Globo, agora sob a batuta de seus herdeiros, falhou miseravelmente em prorrogar, tendo perdido o poder de eleger os governos nacionais, ainda que tenha mantido sua capacidade de criar crises políticas.
À luz da realidade política contemporânea, o documentário Muito Além do Cidadão Kane soa meio fantasioso. Não se concebe que a Globo ousasse mentir hoje como o filme mostra que mentiu ao dizer que manifestação de um milhão de pessoas pelas Diretas Já fora um ato público em comemoração ao aniversário de São Paulo, ou que tentasse fraudar uma eleição, como fez com Leonel Brizola no Rio de Janeiro, no escândalo Proconsult.
Além dos fatores políticos que enterraram boa parte do poder da Globo e a totalidade da era Roberto Marinho, houve, também, o fenômeno da internet, que promoveu a maior revolução nas comunicações depois do surgimento da imprensa – aliás, uma revolução maior do que o surgimento da própria imprensa, a meu juízo.
Pouco após o “Cidadão Marinho”, o ritmo da história vai se mostrando, novamente, impermeável aos impérios, à ilusão dos déspotas de que poderes discricionários podem se manter indefinidamente.
Nesse aspecto, notícia recente dá conta de outro mito que vai caindo, o da supremacia eterna da audiência da Globo. A Record acaba de ultrapassar a audiência da concorrente logo ao fim do horário nobre da tevê.
Ainda que a sociedade esteja trocando seis por meia dúzia – Edir Macedo é um crápula menos pernicioso que Marinho, mas tampouco é flor que se cheire –, não se pode desconhecer que a mera desconcentração de audiência é um evento a comemorar. Pouco após o cidadão Marinho, já se pode sonhar com o fim das ditaduras midiáticas. Não é pouco.