Num livro publicado pela primeira vez em 1912, o constitucionalista mexicano, professor Emilio Rabasa (La Constituición y la Dictadura,
 Ed. Porrúa, México 2006), ao falar, sobre o sufrágio universal, 
reportando-se ao que ocorria na França, à época, diz que lá “são os 
operários das grandes fábricas, mediante a intervenção de patrões 
benquistos (que não chegam a prevalecer como grupos subordinados) “e 
portanto são apenas perturbadores”. Era a época em que o Estado de 
Direito não aparecia, ainda, como Estado Social de Direito, no qual os 
“perturbadores” passam a ter um protagonismo democrático que redesenhou a
 sociedade de classes, ao longo do século passado.
Uma separata 
recente da “Revista de Derecho Social”, traz um poderoso artigo do 
jurista Antonio Baylos Grau, relatando e comentado uma sentença da 
Primeira Seção da Sala Penal da Audiência Nacional Espanhola, que julgou
 “delitos contra as Instituições do Estado, atentados, associação 
ilícita, e um delito de danos”, por fatos que teriam ocorrido em junho 
de 2011, numa manifestação que o Movimento 15-M convocou ante o 
Parlamento da Catalunha.
A palavra de ordem da convocatória foi 
‘bloquear o Parlamento’ (…), “não permitiremos que aprovem os cortes!” 
(sociais, no Orçamento Público). A sentença, que teve uma grande 
ressonância midiática, absolveu todos os acusados, excetuando um 
imputado por delito de “dano”, condenado pela ação individual de autoria
 comprovada, que arruinou com um “spray” a indumentária da deputada 
socialista Montserrat Tura.
Os manifestantes geraram incidentes 
com os deputados, tentaram bloquear a entrada dos mesmos no recinto do 
Parlamento e proferiram insultos contra eles. A sentença interpretou 
estas manifestações coletivas de uma ótica oposta à tradicional visão de
 Segurança do Estado. Construiu as premissas de absolvição dos acusados 
pelo Ministério Público, a partir do reconhecimento de que elas, as 
manifestações, visavam a defesa dos “direitos fundamentais”. A sentença 
fez uma rigorosa separação entre as ações coletivas, que manifestam a 
sua indignação contra a agressão àqueles direitos, de uma parte, e as 
responsabilidades individuais por delitos comuns, de outra.
Os
 crimes comuns, ou contravenções -extraí-se da sentença- devem ser 
destacados da ação política coletiva, voltada para travar a agressão aos
 direitos fundamentais, representada pelos cortes orçamentários. Não só 
porque aqueles delitos se originam de comportamentos individuais, no 
interior da ação política (fora dos propósitos do movimento) como, a 
rigor, vem em seu prejuízo, sendo ordinariamente originários de 
infiltrados ou eventuais participantes que, na verdade, são indiferentes
 às finalidades das lutas em curso e estão ali por outras motivações.
Ao
 colocar a Segurança do Estado no mesmo plano dos direitos fundamentais,
 a sentença da Audiência Nacional integra a “segurança social” do Estado
 Social de Direito, no próprio conceito de Segurança do Estado. E 
exclui, do âmbito da intervenção penal, conduta que promove uma 
“legítima defesa” dos direitos sociais constitucionalmente amparados, 
recusando o conceito tradicional de “segurança nacional”, originário da 
“Guerra Fria”, acolhido pelos juristas mais conservadores. Estes 
conceitos são baseados na premissa de que o Estado pode, ou deve ser 
“seguro”, mesmo às custas da concreta insegurança da maioria dos seus 
cidadãos.
A questão da “ordem pública”, portanto, neste 
diapasão, deve repousar numa ordem social que gere o compartilhamento de
 certos níveis de segurança para todos, como elemento essencial do 
Estado, para o exercício do seu monopólio de violência legítima. A 
sentença leva em consideração que, na época em que a formação da opinião
 pública é facilmente manipulável pelos meios de comunicação, que 
massivamente transmitem as mensagens do “caminho único”, é preciso 
garantir a visibilidade de ideias que existem na sociedade e que tem, 
nas manifestações públicas, “o único meio de de difundir seus 
pensamentos opiniões”.
“Quando os leitos de expressão e de 
acesso ao espaço público -diz a sentença- se encontram controlados por 
meios de comunicação privados, quando setores da sociedade tem uma 
grande dificuldade para fazer-se ouvir ou para interferir no debate 
político, somos obrigados a admitir um certo excesso no exercício das 
liberdades de expressão ou manifestação, se queremos dotar de um mínimo 
de eficácia o protesto e a crítica, como mecanismos de imprescindível 
contrapeso numa democracia que se sustenta sobre o pluralismo, valor 
essencial que promove a livre igualdade das pessoas, para que os 
direitos sejam reais e efetivos, como anuncia a Constituição no seu 
preâmbulo”.
No momento em que o oligopólio da mídia faz um 
esforço combinado para legitimar o golpismo, que levou ao poder de 
maneira articulada a pior parte do Governo Dilma, aliada com a pior 
parte da oposição, uma sentença como essa não pode ficar desconhecida 
dos nossos Juízes e do Ministério Público. O Governo que aí está, 
programou a demolição da Constituição através do sucateamento dos 
direitos fundamentais, arduamente conquistados na Constituição de 88. E o
 que sustenta este Governo ilegítimo, senão o oligopólio da mídia e duas
 centenas de deputados com contas a prestar na Justiça? Nada. A não ser o
 temor reverencial sobre a insegurança de um futuro incerto.
        
        
          
            Créditos da foto: Guilherme Santos / Sul21