Nota do autor:
A presente reflexão foi estimulada pelo artigo do governador Tarso Genro sobre a Internacional do Capital Financeiro publicado pela Carta Maior. Desde
o seu princípio organizador, o modo de produção capitalista
caracterizou-se por se expandir sistemicamente, incorporando e
articulando crescentes espaços territoriais até se tornar global. Tudo
isso a partir da existência de um centro dinâmico integrador de um todo
periférico.
Ainda que combinada pela lógica sistêmica, a dinâmica
capitalista se manteve desigual, seguida por crises de curta e longa
durações. Mesmo que o centro dinâmico tenha se alterado poucas vezes ao
longo do tempo, a condição de periferia seguiu se produzindo e
reproduzindo intensamente.
Para assumir a posição de centro
dinâmico, três dimensões se fariam fundamentais. A primeira identificada
pela capacidade de deter moeda de curso internacional com suas funções
de troca, reserva de valor e unidade de conta permanente ativas.
A
segunda dimensão está associada ao poder das forças armadas para levar
adiante – sempre que necessário – o que a diplomacia não se apresenta
como suficiente. A terceira dimensão refere-se à capacidade de produzir e
difundir tecnologia enquanto elemento dinâmico e acesso da competição
intercapitalista.
Pela Revolução Industrial e Tecnológica do
século 18, na Inglaterra, o capitalismo alçou a condição de trânsito da
antiga sociedade agrária para a moderna sociedade urbana e industrial. O
processo de mecanização na época gerou ganhos de produtividade
crescentes com a incorporação tecnológica e a consequente ampliação na
divisão do trabalho, garantindo à armada inglesa o poder do exercício da
força pela condição de centro dinâmico mundial.
Mas até o início
do século 20, o capitalismo se expandia demarcado pela forma
fundamental dos impérios (britânico, austro-húngaro, otomano, português,
espanhol, entre outros) em relação às colônias. Neste meio, os avanços
econômicos possibilitados pela industrialização retardatária (Alemanha,
EUA, França, Rússia, Japão e Itália), seguida da Segunda Revolução
Tecnológica no último quartel do século 19, colocou em xeque o centro
dinâmico mundial, posto que a Inglaterra convivia com o esvaziamento
produtivo frente ao poder financeiro crescente da City.
Ademais,
as duas grandes guerras mundiais (1914-18 e 1939-45), intermediadas
pela Grande Depressão de 1929, tornou real e efetiva a disputa entre
nações emergentes como Alemanha e Estados Unidos pela sucessão da
liderança inglesa.
A partir do fim da década de 1940, o novo
centro do mundo se estabeleceu sob a liderança inconteste dos Estados
Unidos, cujo american way of life se generalizou mais rapidamente pelo
consumo de bens e serviços do que a descentralização da produção de
manufatura pelo mundo.
Em plena Guerra Fria (1947-1991), mais de
150 países se constituíram frente ao desmoronamento dos antigos impérios
e de suas colônias. Ao mesmo tempo, a maior parte da periferia alcançou
a soberania nacional, reposicionando o papel do Estado em defesas de
políticas nacional-desenvolvimentistas. Isso porque, o centro dinâmico
mundial exercido pelos EUA acobertou a conformação dos Estados nacionais
regidos por normas monitoradas pelas Nações Unidas e organismos
multilaterais (Otan, BM, FMI, acordos de livre comércio, entre outros),
diferenciando-se do padrão anterior da hegemonia inglesa.
Por
acordo entre as nações, conforme realizado em Bretton Woods, em 1944, o
dólar estadunidense se transformou em moeda de curso internacional,
mantendo-se conversível ao ouro e com valor fixo por 27 anos (1944 e
1971). A valorização do dólar ocorrida no período era compatível com a
posição de maior exportador e responsável por 2/3 das reservas de ouro
do mundo no imediato segundo pós-guerra.
A condição de centro
dinâmico assentou-se no tripé interno de forças a exercer a vontade da
maioria política. De um lado, o poder armado sob a liderança de grandes
generais vitoriosos da Segunda Grande Guerra Mundial (Douglas MacArthur,
George Marshall Jr, Dwight Eisenhower, entre outros) e, de outro, as
forças produtivas representadas pelos grandes conglomerados industriais
(famílias Gould, Rochefeller, Ford, Carnegie, entre outros). Por fim, a
expressão da sociedade civil organizada em grande medida pela força dos
sindicatos e dos movimentos de direitos humanos assumiu importância em
determinados momentos do segundo pós-guerra.
A partir da década
de 1970, contudo, as condições de exercício da hegemonia estadunidense
fragilizaram-se substancialmente. Três acontecimentos significativos
ameaçaram as dimensões do centro dinâmico do mundo.
O primeiro
deles ocorreu em 1971, com a desvalorização do dólar em relação ao ouro,
e teve o grande final em 1973, com o fim da conversibilidade da moeda
estadunidense ao ouro. Com a decisão do presidente Richard Nixon, o
dólar assumiu a condição de uma moeda como qualquer outra, sem mais
equivaler ao ouro, o que resultava em descrédito à dimensão monetária
fundamental de valorização do capital em qualquer país capitalista.
O
segundo acontecimento se deu em 1975, com a derrota das forças armadas
estadunidenses na Guerra do Vietnã (1965-75). A decisão do presidente
Gerald Ford reafirmou o descrédito no poder militar dos EUA em termos
internacionais, bem como internamente frente à vitória nas eleições pelo
Partido Democrata e nas repercussões políticas geradas pelas massivas
manifestações populares contra a guerra.
Por fim, o terceiro
acontecimento se deu em 1979, com a Revolução Iraniana e a entrada da
Rússia no Afeganistão. A ameaça ao domínio dos Estados Unidos no Oriente
Médio pelo avanço das forças pró-União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas poderia abrir um novo flanco de insegurança energética,
fundamentalmente representada pelo petróleo, rico na região.
A
decadência relativa dos Estados Unidos era evidente tanto no seu setor
produtivo, que assumia a condição inédita de importador líquido de
mercadorias na década de 1970, como na incapacidade da política
macroeconômica superar a fase de estagflação da época. Ao mesmo tempo em
que crescia o risco da insegurança energética num país importador de
petróleo, o poder das forças armadas se mostrava fraco.
Diante
disso, países como a Alemanha e Japão eram vistos como possíveis
sucessores dos Estados Unidos, mais preparados para exercerem a condição
de centro hegemônico do mundo. Somente uma guinada na conformação de
uma nova maioria política poderia restabelecer a retomada do poder
estadunidense.
As eleições de 1979 terminaram por restabelecer um
novo pacto de poder, consagrado pela adoção das políticas neoliberais. A
começar pela recomposição da linha estratégica nas forças militares,
com a ascensão da liderança dos “falcões” assentados na estratégia da
guerra cibernética.
Para isso, o redirecionamento de parte do
orçamento se mostrou fundamental, associando a realocação dos recursos
públicos à pesquisa e desenvolvimento das novas tecnologias de
informação e comunicação (TICs). A terceira Revolução Industrial e
Tecnológica teve impulso para além da eletrônica, com o salto das
empresas pontocom no Vale do Silício estadunidense.
O programa
militar identificado como Guerra nas Estrelas (Defesa Estratégica no
Espaço) foi lançado pelo presidente Ronald Reagan em 1983 com o objetivo
de reestabelecer a superpotência militar estadunidense. Ao mesmo tempo
interligou o gasto militar com a pesquisa, originando, inclusive, a
internet para uso civil ao final da década de 1980.
A segunda
inovação no pacto de poder estadunidense ocorreu com articulação mais
fina entre o Departamento de Estado e as petroleiras, especialmente nas
ações no Oriente Médio. Como se sabe, a Revolução Iraniana, em 1979,
desencadeou o segundo choque de petróleo, quando o barril chegou a US$
80.
Somente sete anos depois, em 1986, o preço do barril voltou à
normalidade, contando com importante articulação entre a diplomacia dos
EUA e as forças armadas no Oriente Médio, simultaneamente às ações das
grandes empresas petroleiras, visando garantir a segurança energética do
maior importador de petróleo do mundo.
A terceira inovação foi a
substituição do poder dos industriais estadunidenses pelo dos
banqueiros, uma vez que, com a política realista de Paul Volcker no
Banco Central dos EUA (Federal Reserve), a partir de 1978, a taxa de
juros voltou a ser mais elevada que a inflação. Desde a Grande Depressão
de 1929, quando os banqueiros foram tidos como dos principais
responsáveis pela especulação financeira vigente à época, que a taxa de
juros se mantinha, em geral, abaixo da inflação, objetivando estimular
os investimentos produtivos na economia.
A política do dólar
forte na década de 1980 contribuiu para que a política neoliberal da
desregulação financeira e bancária ganhasse difusão não apenas nos
Estados Unidos. Por consequência, a elevação da taxa de juros nos EUA
atraía a centralidade das aplicações financeiras naquele país, salvo
elevação simultânea dos juros nos demais países, o que terminou
esvaziando a autonomia da política monetária para o conjunto das
economias.
A globalização financeira ganhou escala e passou a
liderar em novas bases a ordem capitalista mundial. Os banqueiros do
mundo todo se uniram, conformando grau de poder jamais visto, capaz de
submeter empresas e países à lógica financeira, inclusive parcela da
política, que tem crescente presença de parlamentares e governos
operando como verdadeiros funcionários do capital fictício.
Com a
reconfiguração da nova maioria política nos EUA, os resultados da
dominação militar e financeira se apresentaram evidentes frente ao
enquadramento do Japão e da Alemanha à situação de países submissos.
Houve ainda o fim da Guerra Fria. A partir dos anos de 1989, com a queda
do Muro de Berlim e, de 1991, com a derrocada da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, o império estadunidense se constituiu enquanto
tal, favorecendo o exercício unipolar da dinâmica econômica mundial e
retirando poder dos Estados nacionais na efetividade de suas políticas,
seja monetária, seja nas TIC’s, seja na área militar, entre outras.
Contraditoriamente,
o êxito alcançado terminou também sendo portador da corrosão das bases
produtivas do capitalismo estadunidense. Guardada a devida proporção, os
EUA passaram a seguir trajetória similar à experimentada pela economia
inglesa no final do século 19, quando a contaminação pelo vírus do
improdutivismo, gerado pelo processo da financeirização da riqueza,
levou à decadência do império britânico.
Paralelamente, parte
da Ásia confirmou, por intermédio de várias experiências nacionais, a
constituição atual de uma nova fronteira de expansão do capitalismo
global. Justamente a China e a Índia, que foram, em especial, os dois
grandes territórios do planeta perdedores diante do avanço da hegemonia
inglesa e estadunidense na primeira e segunda Revolução Industrial e
Tecnológica, voltaram a se tornar emergentes diante da implantação de
experiências associadas ao planejamento central e ao vigor do Estado.
Resumidamente,
as reformas neoliberais realizadas desde a década de 1980 terminaram
por esvaziar parte da estrutura produtiva dos países desenvolvidos –
outrora referência da expansão capitalista global. Na sequência do
deslocamento da produção industrial ocidental para a Ásia vislumbrou-se a
continuidade da desenvoltura de mais uma revolução tecnológica
motivadora de novas centralidades no planeta, tais como as cadeias
globais de valor geridas por grandes corporações transnacionais.
A
manifestação da grave crise global a partir de 2008 tornou mais clara o
conjunto de sinais da decadência relativa dos Estados Unidos. A
ineficácia das políticas neoliberais e o poder concentrado e
centralizado das grandes corporações transnacionais apoderaram-se do
Estado em grande parte dos países desenvolvidos e foram responsáveis
pela adoção de políticas caracterizadas como socialismo dos ricos.
Enquanto os trabalhadores pagam com o esvaziamento de seus rendimentos, a
perda de empregos e a precarização das ocupações, os grandes grupos
econômicos se ajustam com somas crescentes junto ao orçamento público,
incapaz de recuperar a dinâmica produtiva, salvo a da indústria da
financeirização da riqueza.
Simultaneamente, percebe-se o
reaparecimento da multicentralidade geográfica mundial com um novo
deslocamento do centro dinâmico da América (EUA) para a Ásia (China).
Também países de grande dimensão geográfica e populacional voltaram a
assumir maior responsabilidade no desenvolvimento mundial, como no caso
da China, Brasil, Índia, Rússia e África do Sul, que já respondem
atualmente pela metade da expansão econômica do planeta. São cada vez
mais reconhecidos por países-baleia, que procuram exercer efeitos
sistêmicos no entorno de suas regiões, fazendo avançar a integração
suprarregional, como no caso do Mercosul e Asean, que se expandem com
maior autonomia no âmbito das relações Sul-Sul.
Não sem motivos
demandam reformulações na ordem econômica global (reestruturação do
padrão monetário, exercício do comércio justo, novas alternativas
tecnológicas, democratização do poder e sustentabilidade ambiental).
Uma
nova divisão internacional do trabalho se vislumbra associada ao
desenvolvimento das forças produtivas assentadas na agropecuária,
mineração, indústria e construção civil nas economias-baleia. Também
ganham importância as políticas de avanço do trabalho imaterial
conectado com a forte expansão do setor de serviços. Essa inédita fase
do desenvolvimento mundial tende a depender diretamente do vigor dos
novos países que emergiram cada vez mais distantes dos pilares
anteriormente hegemônicos do pensamento único (equilíbrio de poder nos
Estados Unidos, sistema financeiro internacional intermediado pelo dólar
e assentado nos derivativos, Estado mínimo e mercados desregulados),
atualmente desacreditados.
Nestes termos, percebe-se que a
reorganização mundial desde a crise global em 2008 vem se apoiando numa
nova estrutura de funcionamento que exige coordenação e liderança mais
ampliada. Os países-baleia podem contribuir muito para isso, tendo em
vista que o tripé da nova expansão econômica global consiste na
alteração da partilha do mundo derivada do policentrismo associado à
plena revolução da base técnico-científica da produção e do padrão de
consumo sustentável ambientalmente.
A conexão dessa totalidade
nas transformações mundiais requer o resgate da cooperação e integração
supranacional em novas bases. A começar pela superação da antiga divisão
do trabalho entre países assentada na reprodução do passado (menor
custo de bens e serviços associado ao reduzido conteúdo tecnológico e
valor agregado dependente do uso de trabalho precário e da execução em
longas jornadas sub-remuneradas). Com isso, o desenvolvimento poderia
ser efetivamente global, evitando combinar a riqueza de alguns com a
pobreza de outros.
As decisões políticas de hoje tomadas pelos
países de grandes dimensões territoriais e populacionais podem asfaltar,
inexoravelmente, o caminho do amanhã voltado à constituição de um novo
padrão civilizatório global. Quem sabe faz acontecer, como se pode
observar pelas iniciativas brasileiras recentes.
Todavia, elas
ainda precisam ser crescentemente aprimoradas, avançando do
enfrentamento dos problemas de ordem emergencial, como valorização
cambial e elevada taxa de juros, que comprometem a competitividade, para
as ações estratégicas que atuam sobre a nova divisão internacional do
trabalho.