Por Marcelo Salles,
via Fazendo Mídia
O professor de História, pesquisador e deputado estadual (PSOL-RJ) Marcelo Freixo, de 43 anos, é nascido e criado em Niterói e começou a se politizar no Fonseca, bairro da Zona Norte da cidade. Foi no Fonseca que Marcelo teve o primeiro contato com um presídio, o Ferreira Neto, onde jogava futebol com os amigos – único lugar do bairro onde havia um bom campo. Então com 16 anos, jamais imaginou que os presídios viriam a ser lugar comum em sua vida.
Freixo perdeu a conta das vezes em que esteve em uma unidade do sistema prisional. Conhece todos os presídios do Rio de Janeiro, onde deu aulas e elaborou relatórios denunciando maus tratos e tortura contra presos. Também foi figura-chave para mediar rebeliões e, por muitas vezes, foi levado de helicóptero pela polícia até os presídios – onde chegou a ficar três dias consecutivos, acordando e dormindo com a única missão de encerrar conflitos. “Em nenhuma das rebeliões que negociamos houve um preso morto, uma pessoa ferida; nunca houve preso espancado nem refém morto”, afirma, marcando uma diferença importante entre a realidade e a ficção apresentada em Tropa de Elite 2, em que o personagem inspirado em sua história, Diogo Fraga, é negociador de uma rebelião que termina em tragédia.
Nesta entrevista à Brasileiros, Freixo fala de sua infância humilde, da educação rígida que recebeu dos pais e da militância em direitos humanos. Também fala sobre sua primeira eleição em 2006, quando disputou o cargo para deputado estadual pelo PSOL e foi eleito com apenas 13 mil votos, e sobre a reeleição neste ano, com a expressiva marca de 177 mil votos – o segundo mais votado em todo o Estado. Como entender esse crescimento? Freixo credita o resultado ao entendimento da população de que é necessário tratar a coisa pública com respeito. E também considera uma vitória pedagógica, já que todos os que nele votaram conhecem seu histórico de luta pelos direitos humanos. Sem se esquecer das lutas nas áreas da Educação e da Cultura, para Freixo é preciso continuar trabalhando firme no eixo segurança pública-direitos humanos. Nessa esfera, seu mandato foi o responsável pela implantação da CPI das Milícias, que investigou e pediu o indiciamento de mais de 200 pessoas no Rio de Janeiro, além de propor 58 iniciativas para o combate desses grupos criminosos. Mais que isso, esse trabalho proporcionou uma reviravolta no entendimento da população. Houve um tempo em que autoridades, como prefeitos, defendiam abertamente a atuação desses grupos, que funcionariam como autodefesas perante o tráfico de drogas. Quanto a isso, Freixo é taxativo: “Milícia é máfia. Trata-se da maior ameaça à segurança pública no Estado”. E alerta: “Elas vão continuar crescendo enquanto não forem atacados seus braços econômicos”. E o tráfico de drogas? “Ao contrário das milícias, o varejo do tráfico não é organizado. O combate ao tráfico de drogas no Rio é muito mais utilizado para justificar a repressão nos lugares pobres que qualquer outra coisa.”
Quem é Marcelo Freixo?
Tenho 43 anos, moro em Niterói. Sou flamenguista, tenho dois filhos, o João tem 20 anos, a Isa tem 12. Minha mulher é a Renata, jornalista. Sou professor de História e dou aula há mais de 20 anos, continuo em sala de aula, mesmo sendo deputado. Sempre trabalhei com educação popular. Comecei a militar quando eu tinha 17 para 18 anos no Fonseca, bairro da Zona Norte de Niterói, no movimento cultural e comunitário do bairro. Depois, fazendo faculdade de História, tive a chance de começar a dar aula em presídios. Essa foi minha maior aprendizagem, foi onde me tornei militante dos direitos humanos. Eu era aluno da faculdade de História e consegui um estágio sem remuneração no presídio Edgar Costa, em Niterói, e ali dei aula muito tempo. Depois, coordenei um projeto de educação popular com base na metodologia Paulo Freire. Ao todo, são mais de 20 anos trabalhando dentro de prisões das mais variadas formas. Aí começa a militância, já trabalhei com prevenção à AIDS dentro das cadeias, depois fui presidente do Conselho da Comunidade, órgão que fiscaliza o sistema prisional, já visitei todas as prisões do Rio de Janeiro, fui pesquisador do Justiça Global, uma organização de direitos humanos, na qual trabalhei com pesquisa sobre segurança pública e direitos humanos.
E seus pais?
Meus pais são pessoas muito simples, vivem no Fonseca até hoje, onde nasci e fui criado. Meu pai tem pouca escolaridade, minha mãe tem um pouco mais, completou o ensino médio recentemente em um supletivo. Meu pai nem isso. Os dois sempre foram funcionários públicos, eram profissionais da educação, do setor de apoio; meu pai, inspetor, e minha mãe trabalhando na secretaria. Então, a escola sempre foi uma coisa muito presente na minha casa. Tenho dois irmãos, um faleceu há quatro anos e meio, o outro é o caçula, mora em Niterói também, é casado, tem dois filhos.
Como foi sua formação em casa? Teve formação religiosa?
Nunca tive formação religiosa. Minha mãe é católica, mas não é praticante. Meu pai nem isso. Então, a formação sempre foi muito firme no que diz respeito a valores de honestidade, de correção, de ética, muito mais por exercício prático que por formação teórica. Foi uma educação muito rígida nesse sentido, pelo exemplo que os dois davam na prática. Meu pai é do interior do Estado, de São Fidélis, e começou a trabalhar muito cedo, em padaria, camelô. Até que começou a trabalhar em escola, se aposentou e sempre foi muito simples. Nunca teve carro nem telefone, só depois de velho, porque antigamente era muito caro. Nunca tive telefone nem carro em toda a minha juventude. Não tinha dinheiro para comprar roupa, para fazer baladas. Tanto é que comecei a trabalhar com 15 anos, distribuindo papel na rua para poder ter dinheiro para pular Carnaval. Depois, comecei a trabalhar em banco. Trabalhei no Banco do Progresso, que era aqui na Rua do Ouvidor (Centro do Rio), trabalhei como boy, contínuo. Fui até os 19, quando saí para trabalhar como atendente em uma escola, na secretaria do Colégio Itapuca, em Niterói. Trabalhava de manhã e à tarde, enquanto fazia o pré-vestibular à noite. Aí, passei, fiz História na Universidade Federal Fluminense (UFF) e comecei a dar aula lá, nunca mais parei de dar aula. Trabalhei junto com meu pai, dando aula no colégio em que ele era inspetor.
Que lição você tirou desses trabalhos?
Isso atrapalhou um pouco o nível de estudo que eu queria ter, mas eu consegui ter a minha formação, mesmo estudando à noite. Sempre gostei muito de ler. E o trabalho ensinava muito. Sempre trabalhei, nunca tive medo de trabalho. Meu pai sempre teve uma humildade muito grande, e eu sempre carreguei isso, que acho que me ajuda muito como deputado hoje. Essa coisa de ter o olhar igual, o olhar da solidariedade, não me ver diferente de ninguém. Comi, durante muito anos da minha vida, em marmita. Tinha de abrir a escola, chegava às seis da manhã. Para ver se a escola estava toda organizada, ligava tudo. E tinham dois funcionários que varriam a escola, chegavam junto comigo, e eu sempre levava uma marmita muito grande e dividia com eles. Minha mãe me ajudava a fazer. E a gente almoçava junto nos fundos, saía da escola quase 11 horas da noite, e aí dormia, preparava a marmita e voltava no dia seguinte. Foi sacrificante, mas é como a maioria do povo brasileiro. Isso faz a gente aprender a valorizar o trabalho, a ter mais consciência. A consciência não vem apenas dos livros. Vem principalmente do que você passa. Pelo menos quando isso te atinge mais profundamente, vem mais do que você passa do que você lê. Não estou negando a formação teórica, mas acho que ela ganha mais substância quando você tem uma realidade prática que te conduz a outro entendimento da vida.
Como foi sua adolescência e juventude?
Tinha um presídio em Niterói, tem até hoje, a Penitenciária Vieira Ferreira Neto, onde eu jogava aos finais de semana. Era de um time que alugava o campo do presídio. O juiz era um preso, se faltava um jogador era um preso que completava. Então, quando comecei a trabalhar na cadeia, tinha muito a ver com o que eu passei na juventude. Quando eu era garoto, com 16 anos, eu nunca imaginava isso. Só queria jogar bola e lá era um bom campo – o único que tinha no Fonseca, diga-se de passagem. Mas é óbvio que isso mexeu comigo, que alguma coisa ficou. Depois que eu ganhei consciência, isso me ajudou.
Ganhar consciência: você se lembra em que momento da vida isso aconteceu?
Não tem um momento, isso veio acontecendo. Acho que o movimento comunitário cultural do Fonseca foi muito bacana, é um lugar de que eu gosto muito. Meus pais estão lá até hoje, meus verdadeiros amigos de infância também. Olhar o Fonseca, como as coisas aconteciam, como a polícia agia lá, amigos que a gente foi perdendo, outros que se envolveram com outras coisas, outros que não. Aos 18 anos, fui convidado para fazer um curso de Filosofia, aos sábados. Ficava lá o dia inteiro. Era um grupo inquieto, movido pela indignação, inconformismo, pela necessidade de pensar politicamente. E ali eu conheci gente ligada a música, poesia, gente que lia coisas que eu não conhecia. Então, esse momento foi muito importante na minha formação, Gustavo Stefan, que hoje é fotógrafo do jornal O Globo; Marcelo Diniz, que é letrista e poeta; Marcelinho Martins, que era saxofonista do Ivan Lins e do Djavan; Marcello Antony, que hoje é ator da TV Globo. A cultura contribuiu muito… Acho que foi um somatório de coisas que contribuíram para minha formação.
Em termos de leitura, o que te influenciou?
Tenho uma influência marxista muito forte. Porque antes de História fiz Economia e achava um saco a estatística e a matemática financeira, que são importantes em um curso de Economia. Então, eu lia muito sobre economia política. Lia a Escola de Frankfurt, Marx, Smith. Fiquei três anos estudando isso profundamente, até que ficou claro que meu caminho não era a Economia. Então, fui fazer História, que só me ampliou isso. Quando comecei a trabalhar mais com segurança pública, me inspirei muito em (Zigmunt) Bauman; também gosto muito do Loic Wacquant, esse pessoal que pensa segurança pública junto à questão do cárcere, pensando na sobra da sociedade, na distinção entre pessoas, quem vale e quem não vale, o elemento da dignidade.
O que você fazia na presidência do Conselho da Comunidade?
Esse conselho é formado pela sociedade civil organizada que tem, segundo a Lei de Execução Penal, a obrigação de fiscalizar os presídios e fazer relatórios. Foi um conselho que mobilizou muita gente. Tinha Justiça Global, Iser, Viva Rio, Conselho Regional de Psicologia, Conselho Regional de Serviço Social, Conselho Regional de Medicina, Grupo Tortura Nunca Mais. Então, eram muitas organizações importantes de direitos humanos, de peso, que foram para o Conselho da Comunidade. Aí, eu fui eleito presidente, em torno do ano 2000. Por quatro anos, fui presidente. Durante muitos anos, eu tive a Guta, a Maria Augusta, que faleceu há pouco tempo em um acidente de automóvel, como a grande companheira de visita nas prisões, de rebeliões. E foram dezenas de rebeliões em que passamos madrugadas. Quantas vezes ela deixou seu filho pequeno em casa, eu também deixei os meus, para ir negociar em rebeliões. Já fiquei três dias em Bangu negociando. Foram dezenas de vezes. Cada uma com uma história diferente, mas em nenhuma das rebeliões que negociamos houve um preso morto, uma pessoa ferida; nunca houve preso espancado nem refém morto. O Batalhão de Operações Especiais (BOPE) ia me pegar em casa de helicóptero, porque eram situações de emergência. O trabalho que eu fazia me ajudava muito, porque eu entrava sistematicamente nas prisões, então, quando chegava a uma rebelião, não estava chegando só na rebelião, os presos me conheciam, sabiam meu nome. Isso foi muito importante.
Quanto tempo você ficava nas visitas, uma, duas horas?
Muito mais, muito mais tempo. Então, isso me tornou uma pessoa conhecida nas cadeias. E os relatórios provocavam denúncias muito sérias. A gente tinha muito acesso à mídia e isso gerava um mal-estar muito grande. Isso foi até 2004.
Entre 2004 e 2006 você estava na Justiça Global?
Sim. Entrei em 2000. Era a Justiça Global que me indicava para o Conselho da Comunidade. Trabalhava com pesquisa, fizemos o relatório Rio, que fala da letalidade policial, uma das mais altas do mundo, da polícia do Rio, conta casos concretos de violações, documenta esses casos. Acompanhei os relatores da ONU aqui, Nigel Rodley e Asma Jahangir, que fizeram relatórios muito impactantes. Em 2005, saí do PT, depois de ser filiado por 20 anos. Em 2006, entrei no PSOL para ser candidato, convencido por Milton Temer e Chico Alencar. Em princípio, ia ficar nos movimentos sociais, militando.
O que eles disseram para te convencer?
Falaram da possibilidade de construção do PSOL, que era uma necessidade de cumprir um papel institucional de esquerda – todo mundo que tinha um trabalho social e fosse companheiro nosso que entrasse no PSOL e fosse candidato. Eu estava muito próximo da Anistia Internacional, tinha saído do Brasil durante um mês organizando a campanha contra o caveirão, foi um momento importante. Então, eles tiveram de me convencer muito. Entrei para ajudar a campanha do Chico. Acho que a dobrada comigo lhe daria um acesso aos movimentos sociais. E acabou que fui eleito.
Aí foi o ponto de virada? Treze mil votos, aquela surpresa. Era preciso pensar na sua vida, que iria mudar totalmente, montar equipe, etc. De cara, você propõe a CPI das Milícias, mas não só. Tem uma atuação importante na Educação, na Cultura, na cassação do Álvaro Lins (ex-deputado estadual pelo PMDB e chefe da Polícia Civil durante o governo de Rosinha Garotinho; Lins foi preso pela Polícia Federal em maio de 2008 sob acusação de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, facilitação de contrabando e corrupção passiva).
O Álvaro foi cassado pelos crimes que cometeu enquanto era chefe de polícia. Eu tive acesso aos documentos da Polícia Federal, pedi a cassação dele, ficou um ano aqui trancada, depois a PF o prende, a Assembleia tem de soltar e a situação vira. O bolsa-fraude (esquema de nomeação de laranjas para montar caixa 2 com o auxílio-escola dos filhos), nós descobrimos junto com um jornal, que provocou a cassação de duas parlamentares, mas podia ter cassado mais.
Nesse ponto, vale destacar o trabalho do Marcos Nunes.
Um jornalista excepcional, investigativo, correto. Na verdade, esses episódios marcam muito um campo ético, republicano, que acho que explica muito a nossa votação seguinte. Não são 177 mil votos ideológicos no PSOL, não tenho essa ilusão. Até quem tem um perfil conservador para outros assuntos acha que isso é importante, apesar de divergências menores. Então, vota pela questão da seriedade, na conduta com a coisa pública, acho que isso acaba tendo um grande peso na política hoje.
Você, Chico Alencar e Alessandro Molon, parlamentares que têm os direitos humanos como bandeira, tiveram quase o dobro de votos do que aqueles que fazem campanha aberta contra os direitos humanos, como a família Bolsonaro. Como você avalia isso?
Foi uma vitória. Uma vitória pedagógica. A gente reafirmou isso o tempo inteiro. A gente não fugiu do debate. Porque é caro o debate de direitos humanos. Porque em uma sociedade marcada pelo medo, você tem um processo de intolerância muito grande. A intolerância advém muitas vezes do medo. E a luta pelos direitos humanos sofre muito com isso. Não é à toa que o direito do consumidor é muito mais valorizado que os direitos humanos.
Por quê?
Porque é visto como cidadão quem consome. Toda a lógica do sistema é voltada para a lógica do mercado, desde as datas comemorativas até uma forte produção da necessidade do consumo. Então, o direito do consumidor é visto como uma coisa sagrada, enquanto os direitos humanos são polêmicos. Avança-se muito mais nas regras para garantir os direitos do consumidor do que nas regras para garantir os direitos humanos. O Programa Nacional de Direitos Humanos ficou muito longe do consenso, mas o Procon é consenso. Os direitos dos povos indígenas, dos homossexuais, das mulheres, dos presos, tudo o que a gente coloca nesse saco dos direitos humanos é polêmico, porque a história do Brasil não é marcada pela construção de uma cultura de direitos, ela é marcada pela intolerância, pela segregação. Então, uma campanha calcada nos direitos humanos, quando vitoriosa, é muito simbólica.
Você diria que há um componente forte de desinformação na produção dessa cultura do medo?
De desinformação e de uma outra formação, as duas coisas. Você tem uma formação religiosa conservadora que avança no País, que não pode ser chamada de desinformação, é uma determinada formação. E tem uma desinformação muito grande também. Por isso, eu digo que a luta é pedagógica, da construção do olhar. O professor Marcos Alvito, da UFF, faz uma análise interessante do olhar de medusa, que mata. Então, quando você olha para algo diferente e não aceita, você transforma em pedra, tira o brilho. A gente precisa reverter isso para o olhar da esperança, da tolerância, da solidariedade, do entendimento, da compreensão. Acho que as campanhas foram vitoriosas nesse sentido. Foram votos marcados por essa identidade. Ninguém que votou em mim tem dúvida de que sou um militante dos direitos humanos porque minha vida é marcada por isso.
Você poderia falar sobre a Lei do Funk?
A partir da nossa apresentação, o projeto de lei que descriminaliza o funk e retira as barreiras para a realização de festas foi aprovado na Assembleia Legislativa, em setembro de 2009. Agora, é o debate político. É preciso consolidar a lei em política pública, mais com o governo do Estado. Implementar o funk nas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) é um parto, não é fácil.
Qual é sua avaliação sobre a atual política de segurança pública no Rio de Janeiro e qual a sua opinião sobre o filme Tropa de Elite 2?
O filme é uma bela contribuição que o José Padilha dá, acho que é um filme que mexe com entretenimento, mas com responsabilidade social, traz o debate sobre as milícias para o andar de cima. Foi bom que tenha saído depois das eleições, assim ninguém vai dizer que nossos votos foram dados ao deputado Fraga (personagem inspirado em Marcelo Freixo) e sim para a gente. No meu entendimento, os atores tiveram grande atuação. Não sou crítico de cinema, mas a minha sensação é que os atores contribuíram muito. E não só, desde o Bráulio Mantovani, roteirista, até o Lulinha, responsável pela fotografia, todos são impressionantes. O Padilha, que é um diretor diferenciado, não foge da polêmica para todos os lados, está longe de buscar consensos, e acho isso ótimo.Tem um ano e três meses que eu li esse roteiro, fiz várias sugestões, reuniões, discutimos, acompanhei algumas cenas, ajudei no que pude. Tinha uma expectativa muito grande e o filme superou minha expectativa. Tem muita coisa de ficção e tem muito diálogo com a realidade, é tudo muito misturado. Aliás, uma das coisas mais interessantes do filme é fazer essa mistura, fazer com que a população fique tentando saber quem é quem. Esse jogo é muito legal. Porque pode ser um, pode não ser o outro, podem ser todos. Tirando o Fraga, que se identifica muito à minha história, nem o Padilha esconde isso, os demais personagens misturam várias histórias. Faz a população rir e pensar politicamente. E, no que diz respeito à caracterização da milícia no filme, acho que eles foram perfeitos. Eu estudei as milícias, investiguei esses caras durante muito tempo. O filme é preciso. Eles assistiram a todas as sessões da CPI das Milícias. Bráulio Mantovani assistiu a todos os vídeos da CPI das Milícias. Então, eles sabiam do que estavam falando. Então, acho que eles foram de uma felicidade incrível ao retratar o perfil dos milicianos.
As milícias continuam sendo o maior problema da segurança pública do Rio de Janeiro?
A cada momento mais. Foi feita a prisão de líderes, principalmente pela Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (DRACO) depois da CPI, mas prender os líderes não resolve. Milícia é máfia, a gente precisa tirar o braço econômico e o domínio territorial deles. Isso não foi feito no Rio de Janeiro, e eles continuam crescendo, o número de milícias é cada vez maior no Rio, mesmo com suas lideranças presas.
As sugestões de combate aos braços econômicos das milícias não foram adotadas?
Das propostas feitas pela CPI das Milícias, que mexem no braço econômico e territorial, nada foi feito. Até agora, a ação foi policial, não foi política.
A polícia do Rio está sem controle?
Você não tem ouvidoria, não tem corregedoria funcionando adequadamente, as estruturas são falhas, o nível de controle sobre a polícia é muito falho. E o nível de controle sobre a milícia é inexistente. Você tem a DRACO fazendo um trabalho excelente, mas é só uma delegacia, também com uma estrutura precária, que não vai resolver o problema das milícias. Quem tem de resolver é o Estado. É o Estado que tem de retomar o controle de territórios e cortar o braço econômico deles. Tira do gás, da van, do “gatonet”. Se não fizer isso, vão continuar crescendo.
E o tráfico de drogas?
O combate ao tráfico de drogas no Rio é muito mais utilizado para justificar a repressão aos lugares pobres do que qualquer outra coisa. Muito mais para legitimar a criminalização da pobreza que qualquer outra coisa. As armas não são apreendidas nunca nos portos e nas estradas, sempre são apreendidas nas favelas e todo mundo sabe que arma não é produzida na favela. Idem para as drogas. Então, o que se enfrenta não é o tráfico, se enfrenta a favela. O BOPE, que deixou de ser especial para virar cotidiano, entra e age exclusivamente nas favelas do Rio. Então, o que se tem é uma política de segurança voltada para o controle da pobreza. Isso legitima o processo de criminalização da pobreza, porque você legitima a ideia de onde mora o medo, onde mora o crime, você cria o CEP do crime. Você não enfrenta nunca o lucro do negócio, você enfrenta a ponta miserável do crime. Favela tem droga, tem arma e tem miséria, desemprego, abandono. E, aí, você escolhe onde as pessoas vão morrer. Você escolhe onde o Estado vai ser instrumento de barbárie. A lógica da segurança pública histórica desse governo é essa. E isso precisa ser quebrado. O chamado tráfico de drogas não é o grande problema do Rio de Janeiro. Até porque só há varejo da droga com corrupção policial. Não há nenhuma favela do Rio em que o tráfico funcione sem corrupção policial. Então, é a polícia barata e violenta se aliando a uma juventude abandonada e pobre. Esse caldo de cultura de organização da cidade é muito perverso. São homens de preto matando homens pretos ou quase todos pretos. Essa é a desgraça carioca. Não precisa de muro, de cerca, a polícia faz esse trabalho. Cria-se a legitimidade para isso a partir do medo que a sociedade tem. O medo cria na gente a tolerância para a naturalidade desses fatos – caveirão, autos de resistência fajutos, muros, barreira acústica… A gente vai naturalizando esse processo institucional de criminalização da pobreza. Então, o problema do tráfico não é um debate de criminalidade, mas um debate de concepção de cidade, de Estado. Esse é o debate que a gente tem de fazer. O tráfico é crime da miséria, crime da barbárie. As facções criminosas são gritos do medo organizado de dentro do sistema prisional pelo próprio Estado. Então, não representam nem de longe o crime organizado. Milícia é crime organizado. Porque é operado por agentes públicos com braços no Estado e com projeto de poder. O varejo das drogas nas favelas não tem nada de organizado. O tráfico internacional de armas sim, o tráfico internacional das drogas sim. Mas isso não tem nada a ver com a favela.
O que você pensa em fazer no próximo mandato?
A votação que a gente teve nos leva a crer que devemos continuar trabalhando o eixo de segurança pública e direitos humanos. Juntar o que tem de bom no Rio, juntar as pessoas boas no Rio. Durante essa entrevista, o Frei Betto telefonou dizendo que está feliz com a vitória, que é soldado raso do mandato. Tem muita gente boa, muita coisa boa acontecendo. O mandato tem de ter a capacidade de juntar isso, de transformar em ação política. De ser voz dos movimentos sociais, mesmo que contra a opinião pública em vários momentos. Tem uma questão que é central no Rio de Janeiro que é a preparação para os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo, que a gente tem de estar muito atento ao projeto de cidade que vai nascer. Acho que o mandato vai ter um papel importante nesse acompanhamento. O Brasil não pode ganhar medalha de ouro em segregação social, removendo favelas, por exemplo.
(*) Marcelo Salles é jornalista. Entrevista publicada originalmente na revistaBrasileiros.
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