Fazer jornalismo influente, no Brasil, tornou obrigatória a eficiência na composição de manchetes que – pela “eloquência” – induzam o leitor a, não raro, formar opinião sem ter lido nada além do título da matéria, seja opinativa ou noticiosa. Isso é contingência de uma era em que a quantidade de informação disponível excede a disponibilidade de tempo do leitor.
A despeito da necessidade de consumir informação com mais rapidez, a tendência cultural do brasileiro, por triste que seja admitir, é injustificadamente tendente ao mínimo de leitura e ao máximo de conclusões apressadas sobre ideias prontas.
Nesse aspecto, o conteúdo das matérias – sobretudo as da grande mídia, que atingem camadas menos intelectualizadas da sociedade – acaba servindo apenas para justificar manchetes que costumam dizer o que aquele conteúdo a que remetem não diz.
Manchetes que acusam encimam textos que revelam açodamento, manchetes que absolvem emolduram justificativas facciosas. Mas o pior é que a hierarquização das manchetes, fenômeno que ocorre em veículos que divulgam vasto conteúdo, decorre de manipulações desonestas que buscam evidenciar o que interessa e esconder o que não interessa.
Essa prática ocorre hoje em grande profusão nas mídias controladas por impérios de comunicação que, em nosso país, resumem-se a, no máximo, uma dúzia de grupos empresariais, mas que, no cerne, originam-se de quatro grandes grupos de mídia.
Organizações Globo, Grupo Folha, Grupo Estado e Editora Abril são responsáveis por uma parte descomunal e desproporcional do conteúdo jornalístico e de entretenimento. São aberrações geradas pela concentração arcaica da propriedade de meios que vitima o país.
Diante desse universo microscópico de fontes originais de conteúdo, constata-se uma tragédia: todos acalentam as mesmas posições políticas, ideológicas, comportamentais, econômicas etc., reduzindo o debate de ideias a um monólogo estúpido.
Em razão de tal quadro, não é preciso gastar tempo buscando diferenças entre os Quatro Cavaleiros do Apocalipse da comunicação. Viu um, viu todos. Este Blog, por exemplo, elegeu o Grupo Folha como amostra generalista, ainda que seja necessário ficar de olho nos outros braços desse oligopólio. Porém, o foco em um de seus braços economiza tempo.
Nesse aspecto, a última edição dominical da Folha de São Paulo nos oferece um belo exemplo de como a escolha de manchetes de primeira página – equivalente da “escalada” dos telejornais, por exemplo – é uma “ciência” que não obedece à mais tênue noção de lógica e interesse público.
Na última sexta-feira, este Blog publicou matéria que afirmou que a lista de “vítimas de terroristas” divulgada pelo Clube Militar para se contrapor ao relatório final da Comissão da Verdade continha toda sorte de manipulações, inclusive a de citar vítimas falsas da guerrilha de esquerda do período ditatorial. A edição em questão do jornal citado, avançou no tema.
Contudo, apesar de a Folha ter feito boas matérias sobre o assunto, escolheu para ir à primeira página a matéria menos importante. Para entender por que, lembremo-nos de uma frase que todo estudante de jornalismo acaba conhecendo. No século XIX, o jornalista norte americano John B. Bogart ensinou que “Se um cachorro morde um homem não é notícia, mas se um homem morde um cachorro, é”.
Passemos, então, às matérias da Folha sobre a tal “lista de vítimas” emitida na semana passada pelo Clube Militar. Apesar de o jornal ter publicado várias, escolheu uma para a primeira página e pôs as seis matérias (inclusive a de capa) nas longínquas páginas A10 e A11.
Como se vê na matéria que foi para a primeira página, tanto a manchete como a legenda sob ela opõem as “vítimas da esquerda” aos trabalhos da Comissão da Verdade. Essa ideia pronta, porém, não oferece ao leitor a mínima noção de que a tal lista de “vítimas da esquerda” contém várias farsas, apesar de a matéria em evidência dizer isso.
A matéria em evidência na primeira página não explica que pessoas que figuram na lista de mortos do Clube Militar foram encontradas vivas, ou que muitas foram mortas pela própria repressão do regime militar. As matérias lá das páginas A10 e A11 dizem tudo isso. Inclusive a matéria a que a manchete de capa remete.
Mas uma dessas matérias mostra um fato extremamente importante para que as pessoas entendam por que não faria sentido incluir as ações da guerrilha de esquerda nos trabalhos da Comissão da Verdade.
Como se vê, pessoas que praticaram atos de violência no âmbito da resistência ao governo ilegal decorrente de um golpe de Estado foram presas e torturadas. Cumpriram pena, inclusive. Inclusive as que não cometeram atos de violência, como a própria presidente Dilma Rousseff, que jamais foi acusada desse tipo de ação, apesar de ter sido barbaramente torturada, tendo hoje problemas nos dentes da frente por conta dos socos que levou na boca, violência que sofreu estando indefesa e amarrada diante dos verdugos da ditadura.
A esquerda foi brutalmente penalizada por reagir ao estupro da democracia que a ditadura praticou. Só quem nunca pagou por seus crimes foram os autores de atos diabólicos de tortura que impressionam pela “criatividade” em infligir sofrimento àqueles que queriam que dessem informações.
Só para não estender muito um assunto doloroso e chocante, o relatório da Comissão da Verdade cita torturas como colocar pregos em pênis ou baratas em vaginas durante os “interrogatórios” da ditadura. Acadêmicos, religiosos, estudantes, pessoas que jamais pegaram em armas passaram por isso.
A esquerda não praticou nada igual.
Desse modo, a iniciativa do Clube Militar de publicar uma lista com mais de uma centena de nomes de pessoas supostamente assassinadas pela esquerda e da qual se sabe que incluiu pessoas que estão vivas, é uma afronta ao país e revela o total descompromisso dessa organização com a verdade.
A principal pergunta que se faz, é a seguinte: seria possível encontrar uma só falsidade como essas no relatório da Comissão da Verdade? Não seria porque tudo que revelou a CNA se fez acompanhar de provas, depoimentos, investigação exaustiva.
O trabalho da Comissão da Verdade destinou-se a purgar um tipo de ação do Estado que é incompatível com a democracia e com o Estado de Direito, ou seja, o Estado agir criminosamente, ilegalmente, desumanamente. Os excessos – sob certo ponto de vista – que a resistência à ditadura possa ter cometido foram punidos pela mesma ditadura.
Por fim, voltamos à escolha de manchetes, essa “ciência” sem lógica. Todos sabem que a direita aponta “vítimas da esquerda”. Essa “notícia” que foi à primeira página da Folha é o “cachorro mordendo o homem”. Já a lista do Clube Militar de “mortos pela esquerda” conter pessoas que estão vivas, é o homem mordendo o cachorro. Qual deveria ir à primeira página?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
comentários sujeitos a moderação.