Olhando a situação política da Venezuela através dos relatos da parcialíssima grande imprensa brasileira, e sem maiores explicações sobre a história recente do país, as atitudes do governo venezuelano soam esdrúxulas e autoritárias. Porém, o contexto político daquele país justifica medidas que em situação de normalidade democrática seriam realmente inaceitáveis.
Na quinta-feira da semana passada, o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma (59), foi preso pelo serviço de inteligência venezuelano (Sebin – Serviço Bolivariano de Inteligência) sob acusação de estar encabeçando preparativos para um golpe de estado através de um dito “plano Jericó”.
Assista, abaixo, à explicação do governo venezuelano sobre o plano golpista.
Ledezma era alvo de investigação havia mais de um ano sem que essa investigação fosse conhecida, e sua prisão foi levada a efeito sem apresentação de provas de seu envolvimento em um plano para derrubar o governo constitucional de Nicolás Maduro.
Curiosamente, no Brasil está em curso uma operação da Polícia Federal, agora encampada pelo Ministério Público e pela Justiça, que não perde em nada para a operação do serviço de inteligência venezuelano. A Operação Lava Jato encarcerou empresários sem apresentação de prova alguma justamente porque esse tipo de investigação é sempre conduzido em sigilo.
Sucedem-se os relatos sobre condições degradantes de encarceramento dos alvos da Lava Jato e sobre a falta de informações e apresentação de provas, tal qual ocorreu na Venezuela durante a prisão de Ledezma. Isso porque investigações e inquéritos como esse são levados a cabo em sigilo.
Então surgem as perguntas óbvias: como investigar alguém avisando-o de que está sendo investigado e por que a imprensa brasileira cobra apresentação de provas que, no Brasil, ainda são desconhecidas devido ao “segredo de justiça” envolvendo a Lava Jato?
Há duas vertentes na oposição venezuelana. Uma é encabeçada pelo candidato derrotado à Presidência Henrique Capriles Radonski e defende uma saída eleitoral e constitucional para chegar ao poder; outra tem como expoente o prefeito de Caracas, Antonio Ledezma, e prega, abertamente, que o poder seja tomado à força, porque acusa o regime bolivariano de fraudar eleições, comprar votos etc., o que centenas de observadores internacionais negaram tanto sobre a eleição presidencial de 2012, que Hugo Chávez disputou com Capriles antes de morrer, quanto sobre a de 2013, em que Maduro derrotou o mesmo Capriles.
Se a Venezuela vivesse uma situação de normalidade democrática como o Brasil seria defensável cobrar do governo daquele país uma condução mais serena e transparente dos processos contra opositores, já que, em princípio, usar o poder de Estado contra a oposição soa a autoritarismo. Porém, desde 2002 a Venezuela deixou de viver uma situação de normalidade democrática.
A imprensa brasileira apresentou o prefeito recém-encarcerado de Caracas como vítima inocente e indefesa de um regime truculento, mas não é bem assim.
Em fevereiro do ano passado, Ledezma defendeu publicamente a violência nos protestos contra o governo que deixaram 43 mortos e milhares de feridos. Ao longo do ano passado, houve quase uma guerra civil na Venezuela. Ocorreram mortes dos dois lados.
Ao lado do líder partidário Leopoldo Lopez e da ex-deputada Maria Corina Machado, Ledezma defendia abertamente que Maduro deveria deixar a Presidência sem citar processo de impeachment ou referendo revogatório como aquele a que Chávez se submeteu – e venceu –em 2004, dois anos após o golpe de Estado que sequestrou e encarcerou por 48 horas o presidente constitucional do país, até que o povo venezuelano cercasse os golpistas no Palácio Miraflores e exigesse a libertação de seu líder político.
Em janeiro deste ano, Ledezma foi signatário de um manifesto que considerava “inadiável” a deposição de Maduro em 2015. E como o texto não fazia menção a nenhum processo eleitoral para tirar o presidente do poder, contribuiu para a acusação de golpe sob a qual o prefeito de Caracas foi preso.
Contudo, o histórico golpista de Ledezma vem de bem antes.
Em abril de 2002, durante o fracassado golpe que tirou Chávez do poder, o atual prefeito caraquenho e um grupo de sicários sob seu comando invadiram a prefeitura do município de El Libertador – o principal município da Grande Caracas, que inclui o centro histórico da capital venezuelana – para derrubar pela força o prefeito Freddy Bernal, então aliado de Chávez, que estava sequestrado pelos golpistas.
Ledezma foi um dos artífices do golpe fracassado de 2002. Junte-se a isso a reiterada pregação que vem fazendo pela tomada do poder pela força e a atuação concreta para esse fim ao comandar protestos em que seus partidários pegaram em armas contra o governo no ano passado – do que resultaram dezenas de mortes de governistas e oposicionistas –, a forma como o prefeito caraquenho foi preso encontra justificativas.
Após a prisão de Ledezma, Maduro anunciou, publicamente, que, nesta segunda-feira (23), pretende apresentar ao mundo vídeos, áudios e “outras provas” de que Ledezma estava planejando executar plano que já anunciara publicamente de derrubar o regime sem detalhar por que forma isso seria feito.
A situação política sui-generis que vige na Venezuela, o histórico golpista da oposição, a atuação de Ledezma durante os protestos violentos de 2013 e 2014, tudo isso explica o cuidado do governo em prender o opositor para desarticular o que é verossímil que se julgue uma nova ofensiva golpista.
Claro que o governo venezuelano está obrigado a exibir ao mundo as provas que alega ter de que o tal “plano Jericó” não foi uma invenção para justificar atos de arbítrio, mas a história recente da Venezuela justifica medidas de exceção para manter a vontade que o povo daquele país manifestou em 2012 e confirmou em 2013.
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