Reproduzo abaixo um artigo do brilhante cientista político Wanderley Guilherme dos Santos.
Do Valor Econômico
Repartição de renda faz sua última eleição.
Wanderley Guilherme dos Santos| Do Rio
30/09/2010
Registro dois óbitos iminentes: o da eficácia eleitoral da política de redistribuição de renda e o do poder desestabilizador da grande mídia. São movimentos dessa natureza que brazilianistas e a nova direita chic, os comunistas nostálgicos, não antecipam. Há quem acredite que nada mudou no Brasil desde a Primeira Missa. Outros, que mudou para pior desde a Primeira República. São ecos do passado, nutridos pela lerdeza real com que o país tem resolvido alguns problemas clássicos da modernidade. A urbanização custou a chegar, assim como a industrialização e a transformação da estrutura ocupacional. Argentina, Chile e Uruguai brilhavam com taxas européias de urbanização e alfabetização (nada de industrialização, é bem verdade) quando o mundo era campestre e a poesia e o romance, bucólicos. Em um par de décadas, contudo, a urbanização e a transformação ocupacional brasileiras bateram recordes históricos, deixando na rabeira não só a América do Sul, mas China, Índia e, em alguns aspectos, a Rússia, inventando ao longo da travessia um eleitorado de 136 milhões de votantes, indomável a qualquer elite leninista e, cada vez mais, insubmissa ao comando coronelista. A poda das oligarquias hereditárias ocorre de Norte a Sul do país. Por fim, descobriu-se uma classe média (próxima de 90 milhões de pessoas) quase do tamanho do Japão. Dezenas de milhões de "japoneses", digamos assim, falando português, mas com igual apetite consumista, invadiram as lojas de eletrodomésticos, de roupas, agências de viagens, aviões, hotéis e, até mesmo, as revendedoras de automóveis japoneses propriamente ditos. Não há nostalgia que suporte isso sem virar ressentimento. Mas, a contragosto, será nesse depósito que a história obrigará os conservadores a colher votos no futuro.
Do berço ao túmulo, a população brasileira passou a ser assistida por complexa rede de políticas sociais institucionalmente inéditas, em grande parte, e incomparáveis em sua cobertura. Multidões foram extraídas à miséria e à pobreza em prazo mínimo, se confrontado aos quase cem anos que o sistema social europeu exigiu para ser elaborado e implementado. Evidentemente, nossos séculos preguiçosos legaram tal espetáculo de carências que a profunda subversão de prioridades operada pela era Lula não está senão a meio caminho da empreitada em seus efeitos estruturais. Metas ainda por atingir, ocasionais gestões deficientes, equívocos de formulação inicial de alguns programas fazem parte da história real do período e comparecem na queda de braço das argumentações eleitorais. Mas não é nesse discurso ao tele-espectador que se encontra o coração da matéria.
Grande parte das políticas sociais em curso dispensa intermediários. Os atingidos têm acesso direto aos benefícios, extinguindo-se o pedágio de gratidão que deveriam pagar aos agentes executivos das ações distributivas. A fruição dos bens sociais a que têm direito independe de conexão com algum doador individualizado, subordinando-se tão somente ao vínculo formal com a apropriada agência de implementação. O funcionamento do sistema, naturalmente, claudica aqui e ali e a eficiência da máquina não é uniforme. Isso tende a melhorar. E tende a melhorar na exata medida em que os beneficiados deixam de aceitar o serviço ou o bem como favor (a cavalo dado não se olham os dentes) e a entendê-lo como obrigação do Estado. Nessa mesma medida o voto-gratidão ou se transforma em voto-confiança ou migra. Em breve a população brasileira sentirá a rede social em expansão (volume e qualidade) como estado da natureza, solo sobre o qual se desloca sem prévia licença de autoridade política a que deva lealdade. Certamente que o eleitorado, sobretudo o mais antigo, preserva um estoque de confiança nas lideranças que deram origem à re-fundação do pacto político original. Mas a simples lembrança daquele momento pode se tornar insuficiente para a renovação da confiança. E é assim que deve ser.
Nova classe média tende ao conservadorismo por entender que existem limites à mobilidade social ascendente
Parte considerável da nova classe média tende ao conservadorismo por entender com absoluta lucidez que existem limites à mobilidade social ascendente e que mudanças, dadas certas circunstâncias, serão, provavelmente, para pior. É sociológica e economicamente impossível que a totalidade das pessoas que alcançaram ou venham a alcançar em breve o topo salarial ou de posição em algum ramo do comércio, serviços ou ocupação industrial, se transfiram para um patamar acima na estratificação social, dando início a nova trajetória ascendente. A maioria das moças e rapazes que, recém alfabetizados ou saídos de escolas profissionalizantes, encontram vagas em abundância como atendentes, vendedoras, caixas, recepcionistas etc., irão se aposentar na mesma profissão ou em profissão aparentada. Algumas chegarão a supervisora ou gerente de filial; pouquíssimas a postos de direção. Grandes agregados sociais não costumam pular dois degraus na estratificação, independente da orientação dos governos e dos sociólogos de boa vontade. A ascensão inter-geracional é outra história. Em uma geração, porém, o jovem que se entusiasmava com o fervilhante trânsito social é o mesmo adulto maduro que, seguro em sua posição atual e aposentadoria próxima, teme promessas de solavancos sociais. O mais provável é que o solavanco o desaloje. Alguns chamam o fenômeno de "aversão ao risco", mas podemos chamá-lo, sem ofensa, de "potencial de votos conservadores". Em próximas eleições, o aceno da consolidação de conquistas feitas pode ser tão ou mais atraente do que prometida alvorada de grandes transformações.
E eis que o poder desestabilizador da grande mídia parece agônico. Poder que detinha menos em função do jornalismo político investigativo, exacerbado em períodos eleitorais, e mais pelas ilações que faz, os olhos que a liam e os ouvidos que as ouviam. Acusar a mídia de omitir informações, procede, com frequência, mas é trivial. Negar os resultados reais do jornalismo investigativo é tolo e inútil. O mesmo leitor que recusa o exagero aceita o fato comprovado. E o que importa, em primeiro lugar, são os fatos comprovados. Culpa cabe ao governo, ao atual, aos anteriores e a todos os que vierem depois, por entregarem seus eleitores e apoiadores aos embaraços de se verem expostos aos resultados de uma política negligente de recrutamento de pessoal para cargos de absoluta relevância e respeitabilidade. Não é aceitável, em nenhum governo, que ocupantes de cargos de confiança estejam a salvo para operar sem sistemático escrutínio da legalidade e lisura de seus atos. Os órgãos de segurança do governo devem ser responsabilizados pelas constantes provas de incompetência que vêm dando. Um aparato estatal oligárquico, historicamente destituído de capacidade operacional para implementar políticas de grande envergadura – por isso mesmo obrigado a recrutar rapidamente quadros capazes, mediante concursos e funções de confiança – está especialmente sujeito a ser penetrado por funcionários cuja idoneidade ainda está para ser comprovada. O cuidado com o funcionamento da engrenagem governamental deve ser permanente e habilidoso, antes que meramente burocrático. Não é o governo que se torna vulnerável. Isso pode passar. São os seus eleitores que se envergonham e gaguejam, pagando enorme preço em estima social pela confiança que depositaram em governantes, e que a transferiram à desonra. Por isso, não é a grande mídia a responsável. Ao contrário, deve-se ao jornalismo investigativo de boa fé a fiscalização que órgãos governamentais deixam escapar e que a desídia de uma oposição de nariz arrebitado não exercita.
Referia-me ao jornalismo investigativo de boa fé. As ilações editoriais pertencem a outro departamento. Fora da temperatura eleitoral, não há pessoa de bom senso suscetível à idéia de que o presidente Luiz Inácio, ou qualquer outro presidente normal, tenha montado um governo para saquear o país ou promover o nepotismo como política oficial. Não haveria recursos, tempo e sequer mão de obra para, ao mesmo tempo, reduzir espetacularmente a miséria, redistribuir renda e estimular o desenvolvimento econômico. A transferência de significado dos reais ilícitos administrativos para deliberadas intenções políticas se deve ao exercício do poder desestabilizador da grande mídia. Não consta de nenhuma apuração jornalística nem faz qualquer sentido no contexto geral das eleições. Mas é recorrente no Brasil. Assim aconteceu em 1950, 1954, 1960, 1964, no século passado, e em 2002 e 2006, no atual. Ao contrário de épocas pretéritas, todavia, suspeito que esse poder desestabilizador agoniza e, por isso, esperneia.
Tudo começou, creio, com a decisão do então presidente Fernando Henrique Cardoso de criar o Ministério da Defesa, entregando seu comando a um civil. O grande economista Inácio Rangel sorriria ao verificar que, mais uma vez, teria que ser um membro da elite a tomar medidas bastante ousadas. Fernando Henrique, candidato preferencial que fora da oficialidade militar, fez, sem susto, o que Lula, certamente, não teria condições de fazer, à época. Firmou-se constitucional precedente e a sucessão de ministros naturalizou a condição civil do cargo. Despreocupado com problemas de soberania, contudo, Fernando Henrique levou as Forças Armadas à mesma dieta do resto do funcionalismo público e das instituições do Estado, fazendo-as raquíticas, quando não as esfacelando. Outra vez, coube agora ao ex-espantalho Lula, comprometido com a recuperação do povo e da soberania nacional, re-incorporar as Forças Armadas à sociedade e integrá-las em projeto comum. Hoje, nem o Exército nem as demais forças militares estão em busca de identidade, como diria o sociólogo Edmundo Campos, distinta da identidade dos demais segmentos do país. Não obstante resquícios de privilégios, preconceitos e temores herdados de passado nem tão remoto, o entendimento entre as instituições civis e militares se manifesta na total discrição e profissionalismo com que os responsáveis pelos comandos armados têm agido de tempos para cá. Na verdade, o que está fugindo ao poder desestabilizador da grande mídia são os olhos e ouvidos militares. Ela nunca interpretou, fora raros momentos, o sentimento da maioria da população, valham as sucessivas derrotas de seus candidatos como recibo da afirmativa. Mas vociferava aboletada em tanques. Hoje, resta-lhe o potencial para assassinatos de caráter – algo ainda terrivelmente assustador. Tímidas tentativas de se aconchegarem aos bivaques, entretanto, diria o marechal Castelo Branco, têm sido apenas patéticas.
A influência dos meios de comunicação nos processos eleitorais é inteiramente normal em democracias. Inevitável, ademais. Perigoso é quando, além da malícia retórica, o poder desestabilizador busca se realizar, irresponsável, pela mão de terceiros. Isso, parece, está fora de cogitação. A propósito, em 2012 o opúsculo "Quem Dará o Golpe no Brasil?" completará cinquenta aninhos.
E para não dizer que não falei de flores: o poder desestabilizador se concentra, hoje, nesse fóssil institucional que é a Justiça Eleitoral.
Wanderley Guilherme dos Santos integra a Academia Brasileira de Ciências/Universidade Candido Mendes
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