Ambos surgiram na esquerda e ao virar conservadores ganharam poderosos
holofotes reservados aos chamados rolabostas
Os colunistas e escritores Christopher Hitchens e Paulo Francis
viveram vidas paralelas no jornalismo. Começaram na esquerda, Hitchens na
Inglaterra, Francis no Brasil – e acabaram por se transformar, com a idade, em
vitriólicos direitistas na capital mundial do conservadorismo, os Estados
Unidos. Ambos morreram nos Estados Unidos que adotaram e idolatravam, Francis
do coração, Hitchens de câncer na garganta arrasada por cigarros em quantidade
torrencial.
A guinada de ambos para o conservadorismo se deu num momento em
que a esquerda como alternativa parecia morta. Experiências calamitosas como o
comunismo soviético pareciam ter selado, na década de 1980, o destino da
esquerda. Ao mesmo tempo, o ideário de direita era apresentado como o triunfo
final no confronto das ideologias. Num livro célebre, o americano Francis
Fukuyama escreveu que a “história tinha acabado”: a direita vencera. Ronald
Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher, na Inglaterra, tinham, ou
pareciam ter, a receita do sucesso: o Estado Mínimo. Privatize, privatize e
ainda privatize: esta era a palavra de ordem.
Foi sob tais circunstâncias que Hitchens e Francis despontaram como
colunistas influentes e polemistas sem outro limite que não fosse a muralha do
conservadorismo que haviam erguido para si mesmos e seus escritos. Eram
estrelas da Direita Chique.
Por escrever em inglês, Hitchens falou para muito mais gente naturalmente. Francis,
em compensação, foi mais versátil: se saiu bem na televisão, na Globo — para
onde foi levado numa manobra astuta com a qual Roberto Marinho garantiu o
silêncio de um velho crítico seu que, na Folha de S. Paulo, adquirira uma
repercussão muito acima da que tinha no Pasquim.
Francis não chegou a ver o desabamento do mundo que julgara
vitorioso para sempre — e nem a ascensão de uma China governada pelo
confucionismo e não pelo thatcherismo ou coisa do gênero. Morreu em 1997, antes
que o declínio dos Estados Unidos se tornasse evidente. Hitchens, morto em
2011, presenciou contrariado a decadência americana – que acabou sendo, de
alguma forma, a sua também como uma voz ouvida e respeitada por muitos. Em seu
americanismo fanático, Hitchens se tornou islamofóbico depois do 11 de Setembro
– e apoiou a Guerra do Iraque, um episódio que o tempo mostraria ser marcante
na derrocada americana. (O presidente George W. Bush afirmou que o Iraque
possuía armas de destruição em massa para justificar uma guerra com finalidades
meramente financeiras que ele imaginava que seria vencida em dias. Não apenas
logo se comprovaria que tais armas não existiam como uma guerra supostamente
fácil acabaria por se arrastar até os dias de hoje.).
Hitchens teve tempo para promover um pequeno ajuste em seu
discurso conservador. Em seu melhor momento nos últimos anos, se submeteu a uma
sessão de waterboard – a simulação de afogamento que no governo Bush foi
considerada legal para interrogar suspeitos de terrorismo. Hitchens, ao cabo de
alguns poucos segundos, pediu que a experiência fosse interrompida. Era, sim,
tortura, ele logo constatou, apenas legalizada e sob um nome eufemístico.
As opiniões de Francis e Hitchens parecem
extraordinariamente obsoletas hoje, considerado o breve período de tempo
passado desde que elas os transformaram em celebridades jornalísticas.
Levantamentos sérios e independentes acabariam mostrando que o maior legado de
Reagan e Thatcher foi uma concentração de renda sem precedentes no mundo
contemporâneo. Por trás de sua retórica anti-Estado, Reagan e Thatcher
representaram o governo dos ricos, pelos ricos e para os ricos.
Paraísos fiscais e outros artifícios permitiram aos ricos pagar
cada vez menos impostos – uma situação que foi dramaticamente exposta por um
deles, o americano Warren Buffett. Num artigo publicado no New York Times,
Buffett informou que pagava proporcionalmente menos impostos que sua
secretária. Buffett entraria para a história como aquele caso raríssimo de
privilegiado que protesta contra os próprios privilégios.
Foi dentro desse cenário que acabariam surgindo movimentos de
protesto como o Ocupe Wall Street, que consagrou a divisão do mundo, nas
últimas três décadas, entre o 1% e os 99%. O conceito de Estado Mínimo tem sido
revisitado – e o que vai-se formando é um novo consenso. O Estado-Babá – como
os conservadores chamavam regimes que protegiam os interesses dos 99% — foi
sendo substituído por outro Estado-Babá. A diferença é que este novo
Estado-Babá pega no colo os superricos, ou o 1%.
Hitchens e Francis foram uma espécie de babás (ou vassalos)
intelectuais do 1% cujos interesses eles defenderam apaixonada e
brilhantemente — e por isso é impossível ler o que eles escreveram sem a
sensação de obsolescência que toma você ao pegar domingo o jornal de sábado.
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