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quarta-feira, 15 de setembro de 2010
37 anos do golpe no Chile e o legado de Allende
A direita entrou em pânico. Agustín Edwards (foto), dono do El Mercurio, voou aos Estados Unidos para pedir ao governo do país que interviesse no Chile, a fim de impedir que Allende tomasse posse no La Moneda. Em Washington, encontrou ouvidos receptivos no presidente Richard Nixon e no seu governo. Iniciou-se assim uma onda de atos terroristas por parte de grupos de ultradireita, que recebiam alento, dinheiro e instrução terrorista a partir do exterior.Hoje, como nos anos que precederam o triunfo de Allende, segue vigente a luta pelo que gestou a vitória de 1970. Referimo-nos à unidade de conjunto da esquerda, hoje atomizada. O artigo é de Manuel Cabieses, da revista Punto Final.
Manuel Cabieses - Punto Final
Da revista Punto Final
Faz quarenta anos que, em 4 de setembro de 1970 Salvador Allende venceu as eleições presidenciais, embora tenha de ter ainda esperado pelo Pleno do Congresso. O triunfo de Allende constituiu-se num fato histórico e numa lição política que não devem ser esquecidos. A incansável luta para forjar uma identidade de esquerda orientada para o socialismo tinha, enfim, dado frutos. Nunca uma eleição presidencial no Chile alcançou um caráter tão dramático. Os cidadãos estavam conscientes de que estavam em jogo questões transcendentais no país, as quais determinariam seu futuro. O enfrentamento básico era entre a esquerda e a direita, representadas pelo senador Salvador Allende Gossens e pelo ex-presidente e empresário Jorge Alessandri Rodríguez. Havia um terceiro candidato, Radomiro Tomic Romero, da Democracia Cristã, com um programa que defendia o “socialismo comunitário”, que o aproximava das questões de esquerda.
A direita encurralada buscava fórmulas desesperadas para defender seus interesses. Não descartava nada. Em fins de 1969, um levante no regimento Tacna, encabeçado pelo general Roberto Viaux levou o governo de Frei Montalva à beira do precipício. Grupos de ultradireita levantavam a cabeça. No plano político, a direita postulava a “Nova República”, que esboçava elementos neoliberais e um firme autoritarismo para interditar o caminho da esquerda. Por sua parte, a Unidade Popular, ampla aliança de socialistas e comuninistas, integrava o partido Mapu, e laicos e progressistas que se definiam de esquerda. A candidatura de Salvador Allende emergia com possibilidades de vitória. A esquerda vinha ganhando terreno e um sólido movimento sindical, organizado em torno da Central Única de Trabalhadores, estendia-se ao campo por através de sindicatos agrícolas mobilizados e de grande capacidade de mobilização. O movimento estudantil, majoritariamente de esquerda, era potente e de alcance nacional. O movimento dos sem teto campeava nas principais cidades.
Existia assim uma ampla base social para o movimento político que defendia um programa centrado na nacionalização das riquezas básicas, no aprofundamento da reforma agrária e na constituição de uma área social da economia, conformada pela banca, pelos principais monopólios e empresas estratégicas. Ainda assim se propunha uma nova Constituição e uma institucionalidade de acordo com as transformações que se impulsionavam, uma ampliação da democracia e a vigência real dos direitos e liberdades individuais e coletivos. Era, em síntese, o que se conheceu como “a via pacífica do socialismo”, um projeto inédito na história da humanidade.
Internacionalmente eram os tempos da Guerra Fria; a União Soviética e o socialismo apareciam competindo exitosamente com o imperialismo. Na América Latina – a partir de 1959 com a Revolução Cubana – havia avanços populares que o Estados Unidos olhava com preocupação. Não queria “uma nova Cuba” em seu quintal. Com esse pretexto tinha invadido a República Dominicana para derrocar o governo democrático de Juan Bosch em 1964, respaldado o golpe militar no Brasil, que derrocou o presidente João Goulart. No entanto, o avanço dos povos não cessava. Na Bolívia, depois da morte do comandante Ernesto Che Guevara numa operação dirigida por estadunidenses, produziam-se avanços democráticos com o governo do general Juan José Torres (1970-71), enquanto na Argentina o peronismo impulsionava o retorno de seu líder, e no Peru o general Juan Velasco Alvarado se empenhava nas reformas anti-imperialistas e integradoras da população indígena. No Uruguai a situação era inquietante para a oligarquia.
Para os Estados Unidos, o Chile era uma peça-chave no seu xadrez de dominação regional. Nas eleições de 1964 já tinham apoiado sem disfarces a candidatura de Eduardo Frei Montalva e sua “revolução em liberdade”. Enormes fluxos de dólares financiaram uma campanha impressionante de terror contra Salvador Allende e a esquerda. O presidente Ke Kennedy - que impulsionava a Aliança para o Progresso – imaginava que a Democracia Cristã no Chile poderia se apresentar como alternativa à Revolução Cubana.
A trajetória de Salvador Allende como parlamentar e líder popular era impecável. Tinha sido ministro da Saúde do governo da Frente Popular (1938-41) e como senador foi democrata irredutível, anti-imperialista e partidário do entendimento socialista-comunista da unidade da classe trabalhadora e dos mais amplos setores da sociedade explorados pelo capitalismo. Defensor valente da Revolução Cubana, memoráveis foram suas lutas contra a Lei de Defesa Permanente da Democracia, paradigma de anticomunismo, e sua constante denúncia dos movimentos do imperialismo e da exploração feita pelas as empresas estadunidenses Anaconda e Kennecott do cobre chileno. Allende era um líder respeitado e querido pelo povo, que sabia que não seria traído por ele. Em muitos aspectos era um educador e um organizador notável, de exemplar perseverança na luta pela unidade da esquerda.
No país, a sociedade se convulsionava. Surgiam os “cristãos pelo socialismo”, os estudantes da Universidade Católica tomavam a reitoria para impor profundas reformas e denunciavam as mentiras do El Mercurio; produziu-se a tomada da Central de Santiago pelos sacerdotes, religiosas e laicos que pediam maior compromisso da igreja com o povo. O país esperava grandes mudanças no marco de um novo período histórico repleto de promessas de justiça e igualdade. A campanha eleitoral foi muito dura. A direita se lançou com tudo, reeditando – corrigida e aumentada – a campanha de terror de 1964. intensificou a pressão sobre as forças armadas, nas quais boa parte da oficialidade tinha passado pelas escolas de formação anti-subversivas do Pentágono. O financiamento da CIA voltou à carga por meio da ITT, que controlava o monopólio telefônico. Contudo, as eleições foram tranquilas e, sobretudo, estreitas. Allende obteve algo mais que um milhão de votos, ganhando por 40 000 votos de Alessandrini, e obtendo 36,3% do total de sufrágios. Tomic obteve 27,84%, com mais de oitocentos mil votos. Como boa parte da votação era antidireita, estava claro que a esquerda contava com um apoio muito superior à direita.
Os resultados foram conhecidos na tarde de 4 de stembro e de imediato Tomic reconheceu a vitória de Allende. Nessa mesma noite, depois de momentos de tensão – quando tanques do exército passaram na Alameda – houve uma enorme manifestação frente à Federação dos Estudantes do Chile. Dezenas de milhares de pessoas chegaram das periferias para celebrar a vitória. Parecia que nunca o povo tinha se sentido tão alegre e esperançado. O discurso de Allende foi emotivo e profundo. Recordou as lutas populares, os esforços cotidianos do povo para subsistir e lutar, e assumiu seu triunfo como uma continuidade com a Frente Popular e, antes, com o governo do presidente José Manuel Balmaceda – levado à morte pela oligarquia – e com a luta incansável de Luis Emilio Recabarren, organizador da classe trabalhadora chilena. Os sessenta dias seguintes, até o momento em que o novo presidente devia assumir o comando, foram emocionantes.
A direita entrou em pânico. Agustín Edwards, dono do El Mercurio, voou aos Estados Unidos para pedir ao governo do país que interviesse no Chile, a fim de impedir que Allende tomasse posse no La Moneda. Em Washington, encontrou ouvidos receptivos no presidente Richard Nixon e no seu governo. Iniciou-se assim uma onda de atos terroristas por parte de grupos de ultradireita, que recebiam alento, dinheiro e instrução terrorista a partir do exterior.
Em 3 de novembro de 1970, porém, derrotando as manobras e os atos criminosos, como o assassinato do general René Schneider, comandante em chefe do exército, Salvador Allende assumiu o país. Começou assim o governo mais progressista, liberador e popular da história do Chile. Em meio à oposição férrea e à conspiração da direita, junto com o governo dos Estados Unidos, Allende conseguiu feitos notáveis, como a nacionalização do cobre, o aprofundamento da reforma agrária, as políticas de saúde, educação e habitação, e avanços gigantescos no plano cultural. As forças criadoras do povo se desataram no influxo de um programa socialista e democrático. Os pobres da cidade e do campo alcançaram o protagonismo e a participação que, durante décadas lhes tinham sido negados. No plano internacional o Chile conseguiu um reconhecimento mundial que valorizou o projeto de avançar o socialismo em liberdade. Mas esse propósito nobre viu-se frustrado pela conspiração interna e externa, sem negar os erros da própria Unidade Popular, que culminaram com o golpe militar de 11 de setembro de 1973. O presidente Salvador Allende, fiel a seu juramento, preferiu morrer no La Moneda a trair a confiança do povo.
Hoje, como nos anos que precederam o triunfo de Allende, segue vigente a luta pelo que gestou a vitória de 1970. Referimo-nos à unidade de conjunto da esquerda, hoje atomizada. É esse o passo indispensável para construir sua própria identidade ideológica e programática e, a partir daí, avançar nos acordos políticos e sociais mais amplos. Na América Latina hoje ganham espaço tendências revolucionárias que, com suas diferentes particularidades estão fazendo o caminho que o Chile tentou. De alguma maneira os processos da Venezuela, da Bolívia e do Equador reivindicam a via pacífica do socialismo, que proclara com decidida convicção o democrata e presidente mártir Salvador Allende. Reiniciam-se tempos de revolução que, nas condições contemporâneas fazem voltar os olhos para o caminho que o presidente Allende abriu com sacrifício.
(*) Manuel Cabieses é o diretor do quinzenário da esquerda chilena Punto Final.
Tradução: Katarina Peixoto
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