Conceição Lemes
Juliana Machado tem 28 anos, é formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), faz mestrado em Sociologia na USP, integra o coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão) e apóia movimentos por moradia.
Na última quarta feira, 11 de janeiro, ela e a colega Dulce Sampaio voltavam para casa por volta de 23h30, quando, passando pela rua Conselheiro Brotero, na Barra Funda, perceberam três viaturas em frente ao número 215.
Pararam. Umas 20 pessoas (uma grávida de quase 9 meses) retiravam seus pertences (móveis e roupas) de dentro da casa, seis eram crianças (de 2 e 8 anos), algumas deitadas no colchão estendido na calçada. Estavam ali há oito dias, vindos da favela do Moinho, após o incêndio que arrasou parte dos barracos.
“Infelizmente, quando chegamos já não havia muito o que fazer – os ocupantes já estavam do lado de fora do imóvel – nem eles tinham condições de resistir”, contou-me Juliana. “Eu e minha colega, como observadora, ficamos para tentar garantir que não haveria a costumeira violência policial neste tipo de ação, e também mediar uma solução coletiva para aquele momento.”
“Sem opção para morar, aguardavam definição da Prefeitura da cidade de São Paulo sobre a promessa de receberem bolsa aluguel de 450 reais por 10 meses, ‘talvez’ a partir de fevereiro”, contaram-lhe. “A casa ocupada estava abandonada há muito tempo. Antes de eles entrarem na casa, um grupo de usuários de crack utilizava o imóvel.”
Juliana permaneceu ali, com eles, até 3h30. Pesquisadora de remoções forçadas, foi a primeira vez que esse tipo de tragédia urbana bateu à sua porta:
A MAIOR PARTE TINHA SAÍDO PARA TOMAR BANHO QUANDO A POLÍCIA CHEGOU
“As pessoas estavam desesperadas. Àquela hora da noite não sabiam para onde ir e como levar suas coisas, pois não havia carroças/catadores para ajudar. Elas tinham sido avisadas um pouco antes pela PM que teriam que deixar o local, pois o proprietário havia solicitado a desocupação.
A maior parte deles tinha saído para tomar banho quando a polícia chegou. Não houve possibilidade de resistir. Retiraram os móveis pacificamente. A PM alegou que a casa havia sido interditada pela Defesa Civil
Só que, passando por ali diariamente, percebi a colocação de placas de concreto apenas dois dias antes da ação da PM. Havia também três representantes do proprietário. Segundo eles, o imóvel tinha sido comprado recentemente e seria demolido. O que se apresentou como advogado “negociava” com os ocupantes, o pagamento de um carreto para levar as coisas de volta ao Moinho, onde eles ficariam na calçada, embaixo da lona.
Os ocupantes ficaram divididos. Parte queria buscar outro imóvel para o cupar e dormir aquela madrugada. Parte queria voltar ao Moinho. Mas ninguém sabia ao certo como sair daquele impasse, pois naquele horário nem as ocupações no centro os receberiam.
Não houve violência na ação da PM, porém ficou óbvio que estava ali para a defesa dos interesses do proprietário, sem qualquer preocupação com a situação dos ocupantes.
Como um dos prepostos do dono do imóvel, que se identificou como “Pedro”, se recusava a dialogar com os ocupantes, tratando-os como criminosos, a PM passou a mediar a negociação.
Logo um caminhão de lixo da Prefeitura encostou, para carregar os pertences daquelas pessoas e levá-los para a calçada e viaduto entorno do Moinho.
Numa estratégia clara de dividi-los, o representante do proprietário passou a oferecer dinheiro a cada um, separadamente. A uma mulher ofereceu trabalho, a outra pagou R$ 40. Ao final, deu R$ 200 para serem divididos entre as 15 pessoas restantes.
A estratégia de dar alguns merréis funcionou. Não permitiu uma decisão coletiva por parte deles, que arriscaram o pouco oferecido para não sair sem nada”.
SEM ORDEM JUDICIAL NEM CONDIÇÕES DE RESISTIR
“Em diversos momentos, chamei a atenção da PM e dos ocupantes para o fato daquela ação poderia ter acontecido durante o dia e não naquela hora. Só que, na cidade de São Paulo, é praxe a expulsão durante a madrugada, quando , quando já não havia qualquer possibilidade de buscar acolhimento e ajuda.
Não havia ordem judicial para a reintegração de posse, tampouco a PM apresentou o laudo de interdição da defesa civil.
Se a desocupação foi difícil? Não. A maioria dos ocupantes havia saído do para tomar banho, e os poucos que estavam no imóvel não resistiram ao assédio da polícia”.
INCÊNDIO “CRIMINOSO”, COMO VÁRIOS OUTROS
“Até então, o que eu sabia da favela do Moinho é que a comunidade havia vencido a primeira batalha judicial. Ação do escritório modelo da PUC conseguiu-lhes, em 1ª instância, o usucapião coletivo. Na prática, essa decisão suspende qualquer possibilidade de reintegração de posse, despejo, remoção por parte da Prefeitura, já que o caso está sub judice.
Só que – de novo, o só que — , no apagar das luzes de 2011, época de Natal/Ano Novo, ocorreu ali um “incêndio”.
Espalhou-se a versão de que uma usuária de crack havia sido a responsável. Em tempos de operação sufoco, é incrível a facilidade de se culpar o lúmpen do lúmpen, o cidadão de segunda categoria de tão estigmatizado e rechaçado…
Não acredito nessa versão. Para mim, foi um incêndio “criminoso”, como vários outros que tem ocorrido em favelas de São Paulo nos últimos anos. É curioso verificar que aqui acontecem incêndios quase mensais em favelas, enquanto no Rio de Jane iro, onde tem mais favelas, quase não há registro de incêndios.
Seja como for, o incêndio facilita a retirada gradual dos moradores do Moinho, pois parte deles, sem ter para onde ir, acaba aceitando a bolsa-aluguel de R$ 450 ou o cadastramento em algum programa habitacional. Em ambos os casos em bairros distantes dali. O valor da bolsa não contempla um aluguel para uma família no centro. Um quarto em cortiço, para uma família inteira morar, costuma custar cerca de R$ 800″.
ESTRATÉGIA HIGIENISTA, SIM!
“Vendo a ação policial na Cracolândia, o incêndio no Moinho, as ameaças constantes de despejo das ocupações e cortiços na região central, a presença ostensiva da PM nesses bairros e o grande pretexto da vez – as drogas – são táticas que fazem parte de uma mesma estratégia higienista.
Ou seja, varrer do centro de São Paulo a população mais pobre e abrir caminho para um projeto de transformação urbana (Nova Luz) que vai beneficiar o grande capital imobiliário, colocando a coisa pública (serviços, transporte, infraestrutura e localização privilegiada) a serviço de interesses privados, em conluio com a Prefeitura da capital e o governo do Estado de São Paulo.
A reurbanização (também chamada revitalização) do projeto Nova Luz pressupõe que não há vida naquele local. Porém, sabemos que os bairros da região são pulsantes de vida, comercio, circulação de pessoas, serviços e equipamentos públicos. Só que foram abandonados pelos governos da cidade, que deixaram de realizar a zeladoria urbana”.
MAIS UMA FORMA DE EXTERMÍNIO
“Se esse projeto de cidade se concretizar na Luz, pode significar um precedente perigoso e ser aplicado em toda a cidade.
Da mesma forma, o tratamento que está sendo dado aos usuários de crack da região pode, por sua vez, significar o recrudescimento da política de repressão e encarceramento dos usuários de drogas, começando pelos párias que não têm interesse nenhum para o capital. É mais uma forma de extermínio, primeiro a céu aberto, depois em instituições manicomiais.
Na verdade, ação policial na Cracolândia, incêndio no Moinho e despejos de ocupações na região central de São Paulo são formas de extermínio a céu aberto.
Daí a necessidade de articulação rápida entre movimentos de moradia da região central, usuários de drogas, defensores de direitos humanos, entidades, movimentos sociais, etc. Essa articulação pode ser a trincheira de resistência para disputar este projeto, que já está sendo implementado.Talvez a mobilização social, devidamente unificada, consiga minimizar os estragos que virão”.
Leia também:
Fátima Oliveira: A polêmica da internação compulsória
Juliana Machado tem 28 anos, é formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), faz mestrado em Sociologia na USP, integra o coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão) e apóia movimentos por moradia.
Na última quarta feira, 11 de janeiro, ela e a colega Dulce Sampaio voltavam para casa por volta de 23h30, quando, passando pela rua Conselheiro Brotero, na Barra Funda, perceberam três viaturas em frente ao número 215.
Pararam. Umas 20 pessoas (uma grávida de quase 9 meses) retiravam seus pertences (móveis e roupas) de dentro da casa, seis eram crianças (de 2 e 8 anos), algumas deitadas no colchão estendido na calçada. Estavam ali há oito dias, vindos da favela do Moinho, após o incêndio que arrasou parte dos barracos.
“Infelizmente, quando chegamos já não havia muito o que fazer – os ocupantes já estavam do lado de fora do imóvel – nem eles tinham condições de resistir”, contou-me Juliana. “Eu e minha colega, como observadora, ficamos para tentar garantir que não haveria a costumeira violência policial neste tipo de ação, e também mediar uma solução coletiva para aquele momento.”
“Sem opção para morar, aguardavam definição da Prefeitura da cidade de São Paulo sobre a promessa de receberem bolsa aluguel de 450 reais por 10 meses, ‘talvez’ a partir de fevereiro”, contaram-lhe. “A casa ocupada estava abandonada há muito tempo. Antes de eles entrarem na casa, um grupo de usuários de crack utilizava o imóvel.”
Juliana permaneceu ali, com eles, até 3h30. Pesquisadora de remoções forçadas, foi a primeira vez que esse tipo de tragédia urbana bateu à sua porta:
A MAIOR PARTE TINHA SAÍDO PARA TOMAR BANHO QUANDO A POLÍCIA CHEGOU
“As pessoas estavam desesperadas. Àquela hora da noite não sabiam para onde ir e como levar suas coisas, pois não havia carroças/catadores para ajudar. Elas tinham sido avisadas um pouco antes pela PM que teriam que deixar o local, pois o proprietário havia solicitado a desocupação.
A maior parte deles tinha saído para tomar banho quando a polícia chegou. Não houve possibilidade de resistir. Retiraram os móveis pacificamente. A PM alegou que a casa havia sido interditada pela Defesa Civil
Só que, passando por ali diariamente, percebi a colocação de placas de concreto apenas dois dias antes da ação da PM. Havia também três representantes do proprietário. Segundo eles, o imóvel tinha sido comprado recentemente e seria demolido. O que se apresentou como advogado “negociava” com os ocupantes, o pagamento de um carreto para levar as coisas de volta ao Moinho, onde eles ficariam na calçada, embaixo da lona.
Os ocupantes ficaram divididos. Parte queria buscar outro imóvel para o cupar e dormir aquela madrugada. Parte queria voltar ao Moinho. Mas ninguém sabia ao certo como sair daquele impasse, pois naquele horário nem as ocupações no centro os receberiam.
Não houve violência na ação da PM, porém ficou óbvio que estava ali para a defesa dos interesses do proprietário, sem qualquer preocupação com a situação dos ocupantes.
Como um dos prepostos do dono do imóvel, que se identificou como “Pedro”, se recusava a dialogar com os ocupantes, tratando-os como criminosos, a PM passou a mediar a negociação.
Logo um caminhão de lixo da Prefeitura encostou, para carregar os pertences daquelas pessoas e levá-los para a calçada e viaduto entorno do Moinho.
Numa estratégia clara de dividi-los, o representante do proprietário passou a oferecer dinheiro a cada um, separadamente. A uma mulher ofereceu trabalho, a outra pagou R$ 40. Ao final, deu R$ 200 para serem divididos entre as 15 pessoas restantes.
A estratégia de dar alguns merréis funcionou. Não permitiu uma decisão coletiva por parte deles, que arriscaram o pouco oferecido para não sair sem nada”.
SEM ORDEM JUDICIAL NEM CONDIÇÕES DE RESISTIR
“Em diversos momentos, chamei a atenção da PM e dos ocupantes para o fato daquela ação poderia ter acontecido durante o dia e não naquela hora. Só que, na cidade de São Paulo, é praxe a expulsão durante a madrugada, quando , quando já não havia qualquer possibilidade de buscar acolhimento e ajuda.
Não havia ordem judicial para a reintegração de posse, tampouco a PM apresentou o laudo de interdição da defesa civil.
Se a desocupação foi difícil? Não. A maioria dos ocupantes havia saído do para tomar banho, e os poucos que estavam no imóvel não resistiram ao assédio da polícia”.
INCÊNDIO “CRIMINOSO”, COMO VÁRIOS OUTROS
“Até então, o que eu sabia da favela do Moinho é que a comunidade havia vencido a primeira batalha judicial. Ação do escritório modelo da PUC conseguiu-lhes, em 1ª instância, o usucapião coletivo. Na prática, essa decisão suspende qualquer possibilidade de reintegração de posse, despejo, remoção por parte da Prefeitura, já que o caso está sub judice.
Só que – de novo, o só que — , no apagar das luzes de 2011, época de Natal/Ano Novo, ocorreu ali um “incêndio”.
Espalhou-se a versão de que uma usuária de crack havia sido a responsável. Em tempos de operação sufoco, é incrível a facilidade de se culpar o lúmpen do lúmpen, o cidadão de segunda categoria de tão estigmatizado e rechaçado…
Não acredito nessa versão. Para mim, foi um incêndio “criminoso”, como vários outros que tem ocorrido em favelas de São Paulo nos últimos anos. É curioso verificar que aqui acontecem incêndios quase mensais em favelas, enquanto no Rio de Jane iro, onde tem mais favelas, quase não há registro de incêndios.
Seja como for, o incêndio facilita a retirada gradual dos moradores do Moinho, pois parte deles, sem ter para onde ir, acaba aceitando a bolsa-aluguel de R$ 450 ou o cadastramento em algum programa habitacional. Em ambos os casos em bairros distantes dali. O valor da bolsa não contempla um aluguel para uma família no centro. Um quarto em cortiço, para uma família inteira morar, costuma custar cerca de R$ 800″.
ESTRATÉGIA HIGIENISTA, SIM!
“Vendo a ação policial na Cracolândia, o incêndio no Moinho, as ameaças constantes de despejo das ocupações e cortiços na região central, a presença ostensiva da PM nesses bairros e o grande pretexto da vez – as drogas – são táticas que fazem parte de uma mesma estratégia higienista.
Ou seja, varrer do centro de São Paulo a população mais pobre e abrir caminho para um projeto de transformação urbana (Nova Luz) que vai beneficiar o grande capital imobiliário, colocando a coisa pública (serviços, transporte, infraestrutura e localização privilegiada) a serviço de interesses privados, em conluio com a Prefeitura da capital e o governo do Estado de São Paulo.
A reurbanização (também chamada revitalização) do projeto Nova Luz pressupõe que não há vida naquele local. Porém, sabemos que os bairros da região são pulsantes de vida, comercio, circulação de pessoas, serviços e equipamentos públicos. Só que foram abandonados pelos governos da cidade, que deixaram de realizar a zeladoria urbana”.
MAIS UMA FORMA DE EXTERMÍNIO
“Se esse projeto de cidade se concretizar na Luz, pode significar um precedente perigoso e ser aplicado em toda a cidade.
Da mesma forma, o tratamento que está sendo dado aos usuários de crack da região pode, por sua vez, significar o recrudescimento da política de repressão e encarceramento dos usuários de drogas, começando pelos párias que não têm interesse nenhum para o capital. É mais uma forma de extermínio, primeiro a céu aberto, depois em instituições manicomiais.
Na verdade, ação policial na Cracolândia, incêndio no Moinho e despejos de ocupações na região central de São Paulo são formas de extermínio a céu aberto.
Daí a necessidade de articulação rápida entre movimentos de moradia da região central, usuários de drogas, defensores de direitos humanos, entidades, movimentos sociais, etc. Essa articulação pode ser a trincheira de resistência para disputar este projeto, que já está sendo implementado.Talvez a mobilização social, devidamente unificada, consiga minimizar os estragos que virão”.
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