Mauro Santayana
O governo conservador da Espanha foi obrigado a estatizar a Bankia, uma das instituições dedicadas ao financiamento imobiliário, a fim de evitar o desmoronamento geral do sistema. Não foi uma escolha, mas a única saída a fim de buscar solução para uma crise que levará ao caos, se não houver medidas paralelas e urgentes. O povo já se prepara para voltar à Praça do Sol e suas adjacências.
Na Inglaterra, em uma manifestação inesperada, 30 mil policiais se somam aos demais empregados públicos em greve. É uma advertência severa. Na Grécia se tenta coligação de centro-direita com o desmoralizado Pasok, dos que se diziam socialistas e se curvaram às exigências “austeras” de Berlim. Não se espera que a tentativa de formação desse governo à direita seja bem sucedida.
A França aguarda o que fará Hollande, uma vez que ele caiu na esparrela de aceitar a convocação de Ângela Merkel para visitar Berlim, logo depois de empossado. A chanceler alemã não titubeia. “Garante” ao mercado financeiro internacional, em nome de não sabemos bem o quê, que a Europa cumprirá as medidas de restrição fiscal a que chegaram ela, Sarkozy e esse arremedo de primeiro-ministro britânico, David Cameron. A arrogante senhora fala, provavelmente, em nome dos grandes bancos, que controlam as finanças mundiais, e entre os quais se destaca o Goldman Sachs.
A crise europeia é uma crise dos estados: ao tentar criar um superestado confederado, com soberania sobre os povos nacionais, os líderes europeus acabaram com as instituições históricas e não puderam substituí-las por outras mais eficazes. O caso do Banco Central Europeu é nisso clássico. Os bancos centrais nacionais, por mais se arrogassem independência, estavam sujeitos ao controle político dos governos, sob a pressão dos parlamentos e da cidadania. Vale a pena lembrar um editorial de Le Monde, de há alguns meses, sobre o tema.
Diz o grande jornal: “Historicamente, a primazia do político, isto é, sua capacidade de “enquadrar” os interesses financeiros, teve como instrumento essencial os bancos centrais. Não se pode perder de vista esta realidade: é por intermédio do poder monetário que é possível fazer prevalecer o interesse coletivo. Isso supõe que o Banco Central esteja colocado sob a autoridade do poder político. É o que se observa nas grandes democracias. Apesar dessa arquitetura, que se mostrou efetiva, ela não foi adotada pela zona do euro. Um Banco Central Europeu, separado da política, é uma péssima coisa. É, em si mesma, a expressão de uma crise muito profunda da democracia europeia, de sua impotência congênita”.
Convém relembrar que a mais inteligente e mais antiga das instituições humanas, o Estado, vem sendo erodido por dentro e por fora, há mais de trinta anos, a partir da deregulation de Reagan e de Mme Thatcher. Na mesma medida em que o Estado se encolhia, e as grandes corporações financeiras cresciam, os trabalhadores passaram a ser coisas descartáveis.
A razão de ser das empresas deixou de ser a criação de empregos e a inovação em produtos e serviços. Submetidas ao assalto de predadores, passaram a ser dirigidas por administradores alugados pelos grandes bancos comerciais, autorizados a atuar como bancos de investimentos. A “reengenharia” dessas empresas, umas menores e outras gigantescas, se limitou a demitir, demitir, demitir.
No auge da privatização e da globalização, alguém decretou que os incapazes de seguir o novo ritmo deviam contentar-se em tornar-se meros servidores domésticos dos vencedores. Voltando ao editorial do Le Monde: a moeda vinha sendo despolitizada, entregue à ilegítima soberania do mercado financeiro.
Era isso o que ocorria em nosso país, e que começa a ser diferente agora. Ao atuar lateralmente, determinando aos grandes bancos oficiais a redução do spread, a presidente Dilma Rousseff está recuperando para a chefia do Estado a autoridade sobre o Banco Central e colocando a moeda, como se deve, sob o controle político da sociedade que a elegeu. Mas há mais coisas que o Estado deve fazer na economia, e no cumprimento de seu dever de exercer a justiça.
Nisso, temos uma boa notícia, com a prisão do comandante da operação policial responsável pelo massacre dos trabalhadores sem-terra em Eldorado dos Carajás, o coronel Marcos Colares Pantoja. Não obstante essa prisão — que se faz diante do imenso clamor nacional contra a chacina, ocorrida há 16 anos — continua a violência no campo. O Estado não consegue cumprir nem mesmo o Estatuto da Terra, aprovado durante o regime militar.
Os grandes êxitos do governo, nos últimos dez anos, não podem ocultar os problemas que crescem, ao crescerem as expectativas, internas e externas, sobre o nosso futuro imediato. Temos que sujeitar o nosso entusiasmo a algumas reflexões sobre a situação atual, e continuar colocando na expansão da produção e do consumo interno os nossos esforços maiores. Só podemos, na realidade, contar com o próprio povo. Com sua inteligência, seu trabalho, seu amor ao país.
A política, segundo FHC
Marcos Coimbra
Na semana que passou, o ex-presidente Fernando Henrique voltou aos jornais em um novo artigo. Seu título era “Política e moral”.
Tratava do recente livro de seu amigo, o sociólogo Alain Touraine, dedicado à interpretação da vitória de François Hollande. Nele, Fernando Henrique entendeu haver uma discussão útil para a compreensão da sociedade brasileira.
O artigo está longe de ser uma obra-prima. Mas é importante pelo que revela do momento pelo qual passam as forças oposicionistas no País.
FHC continua a ser, para elas, a principal referência intelectual. Nenhuma de suas outras lideranças pretende – ou consegue – ocupar o lugar.
É possível que essa ascendência seja uma espécie de compensação dos correligionários. Desde quando deixou a Presidência, nenhum candidato a cargo majoritário de seu partido quis se mostrar verdadeiramente alinhado com ele ou foi firme em sua defesa, quando atacado.
Restou-lhe o papel de líder intelectual, seja da oposição partidária, seja dos segmentos da opinião pública que com ela simpatizam. Suas perplexidades e contradições assumem, portanto, relevância maior.
No artigo, FHC concorda com Touraine no diagnóstico da crise da “sociedade industrial” e do lugar da política dentro dela. A crise teria feito com que as formas clássicas de confrontação política – a “luta entre partidos, com programas e interesses opostos, marcados por conflitos diretos entre as classes” – fossem substituídas por outras.
Em razão “da globalização e do predomínio do capital financeiro-especulativo”, o confronto teria passado a ser entre o “mundo do lucro” e o “mundo da defesa dos direitos humanos e de um novo individualismo com responsabilidade social”. Nesse novo ambiente, a política estaria perante um novo desafio: “Contrapor os temas morais ao predomínio do econômico”.
Não faria sentido lutar pela social-democracia e, muito menos, o neoliberalismo. Como diz Fernando Henrique: “Trata-se de fazer o mundo dos interesses ceder lugar ao mundo dos direitos” e “libertar o pensamento político da mera análise econômica”. A política precisaria entrar na era “pós-econômica”.
Na sociedade que visualiza, os partidos não têm razão de existir, pois estão “petrificados” – como as demais instituições.
Qual a saída? “Só os movimentos sociais e de opinião, movidos por um novo humanismo expresso por lideranças respeitadas, podem despertar a confiança perdida”.
E o Brasil? Que temos a ver com isso? Tudo, segundo FHC. Em suas palavras: “Mutatis mutandi (Sic) a temática referida por Touraine está presente entre nós”. Ou seja: não apenas a análise, mas também suas implicações políticas seriam válidas para a nossa realidade.
Tanto nos momentos em que concorda com Touraine quanto naqueles em que expõe suas próprias opiniões a respeito do Brasil, Fernando Henrique realiza, no artigo, a proeza de “desdizer quase tudo que lhe disse antes” – e negar boa parte do que fez como presidente.
Agora que, aos olhos da população, existe um governo mais competente que o seu, nega mérito ao desempenho. Se os outros têm mais sucesso, que se acabe com a noção de eficiência. E ainda há quem brinque com Lula, dizendo que é a “metamorfose ambulante” de que falava Raul Seixas!
Parece que Fernando Henrique acha que Brasil e França são iguais. Que a agenda das duas sociedades é a mesma. Que também nós superamos a luta pela social-democracia e estamos na época da “pós-economia”.
Como se não soubesse que nossa tarefa mais urgente é assegurar a todos o mínimo de participação na sociedade e na riqueza. Que antes de ultrapassar a social-democracia temos de experimentá-la, como dizia Fernando Henrique à época da fundação de um partido que tinha esse projeto no nome.
Parece que se esquece: se houve um governo legitimado pelo economicismo, foi o seu. Eleito e reeleito pelo Plano Real, subindo e descendo na aprovação popular em função da evolução dos indicadores econômicos, com FHC tivemos o ápice da despolitização, em que mais faltou aquilo de que hoje sente falta.
Mas suas opiniões são explicáveis: ao decretar que os partidos caducaram e imaginar uma política de “base moral pós-econômica”, regida por “lideranças respeitadas” (será que está se oferecendo para o papel?), FHC reconhece que o espaço das oposições se reduziu a ponto de ser preciso inventar um novo.
Se, fazendo política, as perspectivas para elas são ruins, que tal inventar a pós-política? Resta saber se é isso o que o País deseja. Ou, como diria Mané Garrincha, se os russos estão de acordo.
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