Para o professor Júlio Cerqueira César Neto, o grande responsável pela atual crise da água é Alckmin: “É uma crise anunciada que começou a ser gestada em 2001, quando ele assumiu o governo de São Paulo”
por Conceição Lemes
24 março de 2014. Em entrevista ao Viomundo, o engenheiro Júlio Cerqueira César Neto, professor aposentado de Hidráulica e Saneamento da Escola Politécnica da USP, denunciou que Alckmin e a Sabesp já faziam racionamento de água nas áreas pobres da capital há mais de dois meses e mentiam:
“Apesar de o nível do sistema Cantareira
diminuir dia após dia, o governador Geraldo Alckmin (PSDB) insiste: o
racionamento de água está descartado em São Paulo”.
“Na verdade, o racionamento começou há
mais de dois meses. A Sabesp já está cortando água em vários pontos da
cidade de São Paulo e em municípios da região metropolitana, como
Osasco, Guarulhos, São Caetano do Sul. Em português, o nome desses
cortes é racionamento”.
“Só que essa forma de fazer o
racionamento me parece completamente injusta, pois é dirigida aos
pobres; vão deixar os ricos para o fim”.
“Ao não contar todas as coisas que está fazendo, o governador mente”.
“O sistema de chuvas funciona de acordo
com ciclos naturais da natureza. Esses ciclos de secas e enchentes,
menos água, mais água – chamados de ciclos hidrológicos negativos –,
ocorrem naturalmente. Nós não temos influência grande nisso. Nosso
sistema de abastecimento de água, portanto, deveria ter sido feito de
forma a prevê-los e superá-los. Não é o que aconteceu”
“O nosso abastecimento de água está
totalmente insuficiente em função das disponibilidades que o meio
ambiente nos fornece. Se o governo do Estado tivesse feito há mais de 10
anos as obras de reforço necessárias, nós não teríamos falta d’água
hoje”.
“O racionamento já existe, quando a ANA
[Agência Nacional de Águas] determina. Quando ela diz que você tem que
reduzir de 33 para 17 [metros cúbicos por segundo] no Cantareira, é
óbvio que você já está em restrição. O que estou dizendo é que se
tirávamos 33 metros cúbicos por segundo [de água], e hoje estamos
tirando 17, é óbvio que nós temos uma restrição hídrica”.
Em menos de 24 horas, essa decisão foi cassada pelo presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador José Renato Nalini.
A Justiça autorizou, assim, a cobrança de multa – a chamada sobretaxa — em 31 cidades atendidas pela Sabesp, inclusive a capital. A multa será de 40% para quem consumir até 20% acima da média registrada entre fevereiro de 2013 e janeiro de 2014. Caso o consumo exceda a média de 20%, a multa será de 100%.
15 de janeiro de 2015. Um dia após admitir a toda a imprensa a existência do racionamento, Alckmin voltou atrás com a desculpa esfarrapada de que foi mal interpretado:
“Estamos evitando o racionamento. O que é
o racionamento? É você fechar o registro. Então, estamos procurando
através de campanhas, de bônus, da utilização das reservas técnicas [o
volume morto], da integração dos sistemas ultrapassar essa dificuldade
da crise da seca”.
“Será que o governador vai mudar de opinião amanhã ou depois de amanhã?” questiona o advogado Carlos Thadeu, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). “O governador, o presidente da Sabesp e o secretário de Saneamento e Recursos Hídricos estão perdidos, pois não têm um plano B para a crise da água.”
MÍDIA FOI E CONTINUA SENDO CÚMPLICE E PARCEIRA DE ALCKMIN NA CRISE HÍDRICA
Em 1º de janeiro, no discurso de posse do novo mandato, o governador salientou:
Um dos pilares deste governo será o da
inovação permanente, sempre a serviço do cidadão. Temos, a nosso favor,
um histórico do qual nos orgulhamos.
Transparência absoluta: Portal da Transparência, Bolsa eletrônica, Indicadores Criminais, Salários dos servidores na internet.
A crise hídrica é a maior prova. Desde o início, Alckmin a trata com sofismas, inverdades e dissimulações, porque tem a seu favor a mídia tradicional, que acoberta todos os seus malfeitos, inclusive os da água.
Primeiro, a grande mídia quase não divulgou a falta de água enquanto o problema atingia apenas a periferia. Tanto que praticamente ignorou-a durante o primeiro semestre de 2014.
Depois, relacionou a falta de água a apenas aspectos climáticos — “estiagem”, “seca”, “falta de chuvas”. Omitiu e passa por cima até hoje da falta de planejamento de Alckmin e de seu antecessor José Serra (PSDB).
“Com a complacência da mídia, o governo Alckmin passou toda a campanha eleitoral de 2014 , enviando sinal trocado em relação à crise da água”, observa Edson Aparecido da Silva, coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental. “Ao mesmo tempo em que pedia para economizar água, afirmava que ela não faltaria e tudo estava sob controle.”
Em português claro: a mídia “comprou” e” vendeu” a versão dos tucanos paulistas de que a culpa é de São Pedro, poupando a incompetência e a irresponsabilidade do governo Alckmin de não ter investido em novos mananciais, como estava previsto desde 1995.
Marzeni Pereira da Silva, oposição no Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema-SP), reitera denúncia feita ao Viomundo em novembro de 2014: “A mídia foi e continua sendo cúmplice e parceira do governo Alckmin na crise de abastecimento de água em São Paulo”.
Tanto que fez vista grossa às artimanhas tucanas para aprovação da sobretaxa.
AUDIÊNCIA NA ANTEVÉSPERA DO ANO NOVO: “MÁ-FÉ E JOGO DE CARTAS MARCADAS”
Em 18 de dezembro, sem ouvir órgãos de defesa do consumidor e entidades da sociedade civil que atuam em defesa dos recursos hídricos, Alckmin anunciou a criação da sobretaxa. Também disse que a Arsesp – a agência reguladora de saneamento e energia ligada ao governo do Estado – tinha aprovado naquele dia.
Não foi bem assim.
A Arsesp é a responsável pela autorização ou veto à sobretaxa proposta pelo tucano. Oficialmente ainda não tinha se manifestado sobre a questão.
Só no dia seguinte ao anúncio de Alckmin foi publicado no Diário Oficial do Estado de São Paulo o comunicado da Arsesp convocando uma audiência pública para deliberar sobre a tarifa de contigência na conta da água, que é como ela chama a multa, ou sobretaxa.
A Arsesp convocou a audiência para – pasmem! — 29 de dezembro de 2014.
“A data foi proposital, de má-fé”, acusa o coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental. “Na antevéspera do Ano Novo, a possibilidade de mobilização é muito reduzida. O objetivo era que não fosse ninguém.”
Mesmo com a manobra da Arsesp, houve grande mobilização e compareceram, além do pessoal da casa (membros da Sabesp e da própria agência), 23 representantes de quatro entidades e cidadãos. A saber: Comissão de Direito do Consumidor da OAB-SP, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Proteste, Instituto Socioambiental e Instituto Pró-cidadania.
Na mesa da audiência pública só diretores da Arsesp. Da esquerda para a direita: Waldemar Bon Júnior (Relações Institucionais); José Bonifácio de Souza Amaral Filho (Regulação Econômico-Financeira e de Mercados); Antonio Luiz Souza de Assis (Regulação Técnica e Fiscalização dos Serviços de Distribuição de Gás Canalizado); e Anton Altino Schwyte (superintendente de Análise Econômica Financeira)
Durante a audiência, depois em documento (na íntegra, ao final) enviado à Arsesp , as quatro entidades impuseram uma condição para aprovação da sobretaxa. A de que o governador Geraldo Alckmin decretasse oficialmente o racionamento, como determina o artigo 46 da lei federal do Saneamento Básico 11.445/07:
“Em situação crítica de escassez ou
contaminação de recursos hídricos que obrigue à adoção de racionamento,
declarada pela autoridade gestora de recursos hídricos, o ente regulador
poderá adotar mecanismos tarifários de contingência, com objetivo de
cobrir custos adicionais decorrentes, garantindo o equilíbrio financeiro
da prestação do serviço e a gestão da demanda”
“A audiência foi só para cumprir uma formalidade legal”, observa Edson Aparecido da Silva. “A decisão já estava acertada com Alckmin. Jogo de cartas marcadas. Desrespeito com as entidades que compareceram à audiência e com a sociedade em geral.”
“Decretar oficialmente o racionamento não é mera formalidade como tenta fazer crer o governador”, avisa Carlos Thadeu, do Idec. “Além de tornar legal a cobrança da sobretaxa para quem usar mais água, implica transparência de tudo o que está acontecendo. O consumidor tem o direito à informação.”
DNA DE ALCKMIN DESDE 2001, QUANDO TEVE INÍCIO A GESTAÇÃO DA ATUAL CRISE
O fato é que o governador passou esse último ano escondendo e/ou maquiando a verdade verdadeira sobre a crise da água na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP).
“Na verdade, o grande responsável por essa crise da água que estamos vivendo em São Paulo é o senhor governador Geraldo Alckmin”, afirma o engenheiro Júlio Cerqueira César Neto. “É uma crise anunciada que começou a ser gestada em 2001, quando ele assumiu o governo de São Paulo, logo após a morte de Mario Covas.”
Alckmin, só para relembrar, foi governador de 6 de março de 2001 a 31 de março de 2006. De 2007 a 2010, o posto foi ocupado por José Serra, que também tem culpa no cartório. Não fez o que deveria. Em 1 de janeiro de 2011, Alckmin voltou a ocupar o Palácio dos Bandeirantes, onde está até hoje.
Não é à toa que ele foge do racionamento da água como o diabo da cruz. Quer evitar a todo custo o carimbo de governador do racionamento, ou do rodízio. Tal como aconteceu com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e o apagão de energia elétrica, em 2001.
O DNA de Alckmin, porém, está ao longo de todo processo que desembocou na atual e gravíssima crise, como mostra o professor Júlio:
1985: Inaugurado o Cantareira, um sistema de Primeiro Mundo. Capacidade de 66 m³/s, para uma demanda:51 m³/s. A RMSP tinha 14 milhões de habitantes.
2000: Capacidade disponível e demanda eram iguais: 66 m³/s.
Para uma população de 18 milhões, o sistema já estava meia boca, como diz o professor Júlio. Foi o início do déficit de abastecimento de água. Nessa altura, já deveria ter sido providenciado novo manancial de grande porte.
2003: Foi o primeiro alerta. Estiagem prolongada levou o sistema Cantareira à beira do colapso.
2004: Nesse ano foi feita a renovação da outorga (direito de utilização da água) do sistema Cantareira por 10 anos. No contrato, foram incluídas várias exigências que deveriam ser cumpridas pela Sabesp nesse período de dez anos. Entre elas, a implantação de novos mananciais para atender a região metropolitana, diminuindo, assim, a dependência do Cantareira no abastecimento dessa área.
A renovação da outorga venceu em agosto de 2014 e a Sabesp não cumpriu essa exigência.
2005: O DAEE (Departamento de Águas e Esgotos do Estado de São Paulo) concluiu as barragens de Biritiba-Mirim e Paraitinga e disponibilizou mais 5,7 m³/s do sistema Alto Tietê para a região metropolitana. Só que não pode ser usado porque a Sabesp não tinha ampliado a capacidade da Estação de Tratamento de Água de Taiaçupeba de 10 para 15 m³/s. Taiaçupeba só passou a usar essa vazão em 2012.
2007: A Sabesp declarou oficialmente que era gravíssima a situação da deficiência dos mananciais da RMSP e não tinha condições de superá-la.
A empresa solicitou então ao governo paulista que assumisse essa responsabilidade. O que ele fez. Para isso, contratou a elaboração do Plano Diretor de Recursos Hídricos da Macrometrópole Paulista. O prazo para execução era de 180 dias, mas somente foi concluído em outubro de 2013.
2012: Sabesp detectou o início do processo de estiagem através da diminuição das reservas nos seus reservatórios.
2014: A RMSP tem 22 milhões de habitantes. A capacidade disponível de água para abastecimento é de 72 m³/s enquanto a demanda era de 82 m³/s. Ou seja, sistema deficitário em 10 m³/s. Isso significa 2,7 milhões de habitantes sem água.
2014, janeiro: A Sabesp estava preparada para dar início ao Plano de Racionamento Geral na Região Metropolitana. O governador, porém, vetou-o e assumiu pessoalmente o gerenciamento da crise.
“Quando o governador assumiu pessoalmente o comando e gerenciamento da crise, na prática, ele declarou oficialmente sua instalação”, atenta o engenheiro Júlio Cerqueira César. “Alckmim vetou o plano da Sabesp e definiu um Plano Político para enfrentá-la.”
Ele proibiu o racionamento e decidiu explorar todas as reservas de água disponíveis, inclusive as reservas técnicas (volumes mortos) até o seu esgotamento se necessário. A expectativa era de que as chuvas voltariam em outubro de 2014, os reservatórios encheriam e a crise seria superada.
2015: As chuvas não aconteceram no volume esperado. A capacidade disponível de água está em 39 m³/s e a demanda em 82 m³/s. Déficit: 43 m³/s. É mais da metade da demanda numa hipótese otimista, porque estamos considerando a integridade do sistema do Alto Tietê. Caso o sistema do Alto Tietê não se recupere, o que não está fora de cogitação, o déficit atingirá 58 m³/s — 70% da demanda.
Não há solução estrutural de curto prazo para a crise. Para complicar, Alckmin esvaziou os espaços institucionais de gestão dos recursos hídricos, como os comitês de Bacia, o Conselho Estadual de Recursos Hídricos e o Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana de São Paulo, que reúne os 39 prefeitos e representantes do governo do Estado.
“Alckmin precisa convocar urgentemente os prefeitos das regiões metropolitanas de São Paulo e Campinas e falar a verdade sobre a crise”, defende Edson Aparecido da Silva, da Frente Nacional Ambiental. “O governador não pode continuar agindo como se a situação estivesse sob controle. O ideal seria que ele decretasse estado de calamidade pública e apresentasse um plano de contingência sério, discutido com os prefeitos e representantes da sociedade, para enfrentar a situação.”
“Não consigo encontrar um adjetivo para qualificar o quadro que teremos de enfrentar”, arremata Cerqueira César. “Só posso dizer que o que enfrentamos hoje — principalmente a população mais pobre que é a mais afetada — será refresco perto do que teremos pela frente.”
Em tempo 1: Por que Alckmin e Serra não fizeram as obras necessárias para que não estivéssemos na atual situação? Falta de planejamento, contando com São Pedro? Incompetência? Irresponsabilidade? Opção pelos investidores da Sabesp?
Em tempo 2: Onde foram parar os lucros da Sabesp? Em 2012, foi de R$ 1,9 bilhão. Em 2013, também R$ 1,9 bilhão. Em 2014, apesar da crise, o lucro até o terceiro trimestre foi de R$ 800 milhões. De 2003 a 2013, a Sabesp teve R$13,11 bilhões de lucros. Nesse período, pagou R$ 4,37 bilhões de dividendos. O percentual de pagamento na forma de dividendos em relação ao lucro variou de 27,9% a 60,5%,este em 2003.
Detalhe: o estatuto da empresa determina que se pague, no mínimo, 25% de dividendos. A Sabesp, para alegria dos seus investidores e azar dos consumidores, pagou sempre mais.
Audiência Pública Arsesp para deliberar sobretaxa da água: Manifestações de entidades da sociedade civil by Conceição Lemes
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