Paulo Moreira Leite
Um exame frio da mobilização permanente para processar e
condenar Luiz Inácio Lula da Silva mostra um fato essencial. Mesmo que
se venha a provar, acima de qualquer dúvida, que Lula é o verdadeiro
proprietário do apartamento no Guarujá e do sítio em Atibaia, denúncias
que se tornaram a matéria prima para uma perseguição que assume uma
proporção escandalosa, resta uma questão básica e intransponível.
Nas datas em que, segundo a denúncia, as negociações com a
empreiteira OAS teriam se realizado, Lula já não era mais presidente de
Republica. Três anos antes, em 1 de janeiro de 2011, ele havia passado a
faixa a Dilma e desde então não ocupava nenhum cargo público, o que
elimina qualquer possibilidade de que possa vir a ser condenado por
corrupção passiva, como pretende a Polícia Federal. Era um cidadão
privado, com direito a ganhar a vida e reforçar o patrimônio da melhor
maneira possível -- respeitando obrigações que valem para o cidadão
comum, e não para chefes de Estado.
Não sou em quem diz isso. Nem os advogados de Lula. Mas uma
jurisprudência nascida no final do governo Fernando Henrique Cardoso,
com a colaboração do procurador Rodrigo Janot.
Em novembro de 2002, soube-se que no apagar das luzes de seu
governo Fernando Henrique Cardoso havia promovido um alegre jantar no
Palácio da Alvorada, onde recolheu R$ 7 milhões entre empresários
presentes para montar o Instituto que leva seu nome. (Em valores de
hoje, seriam aproximadamente R$ 14 milhões). Ali estavam executivos e
acionistas da Odebrecht, da Camargo Correa, do Bradesco, entre outros
grupos econômicos. "Boa parte deles termina a era FHC melhor do que
terminou," assinala com malícia o texto da revista Época sobre o evento,
que levou o título "FHC passa o chapéu." A notícia não causou maiores
alvoroços, porém.
Isso porque Geraldo Brindeiro, leal Procurador Geral da Republica
que FHC manteve por oito anos no posto, não tomou conhecimento do caso.
A Polícia Federal, entregue a homens de confiança do PSDB, também não
achou necessário abrir inquérito. Procurado por Gerson Camarotti, então
repórter da revista, o procurador Rodrigo Janot, que na década seguinte
se tornaria PGR, abençoou esse comportamento. Esclareceu que não via
nenhuma ilegalidade na coleta daquela fortuna entre empreiteiros que
tinham participado de grandes investimentos no governo do PSDB.
-- Fernando Henrique Cardoso está tratando de seu futuro e não de
seu presente, explicou Janot. O problema seria se o presidente tivesse
chamado empresários ao Palácio da Alvorada para pedir doações de favores
e benefícios concedidos pelo atual governo.
O aspecto didático deste caso é insubstituível.
Desde a AP 470, o chamado Mensalão, o caráter seletivo das
investigações que envolvem políticos brasileiros tornou-se uma evidência
tão cristalina que, 2013, quando tomou posse como PGR, Janot incluiu
uma referência obrigatória no discurso: "Pau que bate em Chico bate em
Francisco."
No Brasil de 2016, cabe perguntar quantos apartamentos no Guarujá e
quantos sítios de Atibaia cabem na bolada que, conforme a delação
premiada do executivo Leo Pinheiro, da OAS, foi entregue ao comando do
PSDB paulista, divulgada pela VEJA. Geraldo Alckmin era governador de
Estado e foi candidato a presidente da República, entre 2004 e 2007,
quando as obras do lote 5 do Rodoanel rendiam 5% de "vantagens
indevidas." José Serra assumiu o lugar e fez campanha para o goveno de
Estado em 2006. Empossado, as "vantagens indevidas" seguiram seu curso,
ainda que tenham sido reduzidas para 0,75%, segundo Leo Pinheiro. O
detalhe é que tanto Alckmin como Serra, naquela ocasião, eram
autoridades públicas, com responsabilidade pela defesa da lei, da ordem
-- e do orçamento.
Em 2009, uma auditoria realizada no conjunto de todos os lotes do
Rodoanel apontou para um superfaturamento de de RS 184,4 milhões. Olha a
curiosa coincidência. Considerando que o valor dos cinco lotes do
Rodoanel atingia R$ 3,4 bilhões, essa soma equivale aos célebres 5% da
denúncia de Leo Pinheiro.
Já em Minas Gerais, disse o executivo da OAS, um intermediário de
Aécio Neves recebeu 3% de propina pela construção do Centro
Administrativo do governo de Minas. Faça as contas: o valor da obra foi
de R$ 1,5 bilhão, a maior do governo do Estado em muitos anos. Sobraram
perto de R$ 50 milhões para o amigo de Aécio.
A grandeza e a natureza desses recursos deveria ser suficiente
para definir prioridades no trabalho de qualquer autoridade
profissionalmente obrigada a investigar e esclarecer denúncias, ainda
mais desse valor.
O tratamento diferenciado na AP 470 e ao mensalão PSDB-MG aponta
na direção oposta, porém. Enquanto os condenados pelo PT já cumpriram
pena e até começam a deixar a prisão, os acusados do PSDB encontram-se
em fase de recursos jurídicos -- aqueles instrumentos legais que, em
processo contra petistas, costumam ser chamados de chicanas, manobras e
até tentativa de obstruir a Justiça.
A denuncia de um tratamento diferenciado não se destina a justificar um erro pelo outro. A discussão aqui é política.
Reconhecer sua existência é o ponto de partida para compreender
que estamos num caso de perseguição política, numa ação orientada para
atingir alvos definidos e poupar outros.
Essa situação foi escancarada em reportagem de Julia Duailibi,
publicada no Estado de S. Paulo, em novembro de 2014. Revelou-se, ali,
que as investigações da Lava Jato são conduzidas por um núcleo de
delegados com motivação política clara, chegando a participar de grupos
do Facebook onde a palavra de origem mais republicana pedia "fora
Dilma", ali retratada com dentes vampirescos. Neste ambiente, Marcio
Ancelmo, o delegado que indiciou Lula na Lava Jato, refere-se ao
ex-presidente como "essa Anta."
Neste ponto a perseguição a Lula revela-se como o evento decisivo
da nova situação política criada pelo afastamento de Dilma, a ser
confirmada ou rejeitada nos próximos dias.
Está claro que, ao lado do golpe contra Dilma, o esforço para
excluir Lula da cena política, seja pelo caminho que for, envolve uma
operação destinada a encerrar o mais amplo e prolongado regime de
liberdades de nossa história republicada e reconstruir o Brasil que
todos conhecem desde a chegada de Cabral às terras de Santa Cruz.
A luta pelos direitos dos trabalhadores e pelas liberdades que
Lula liderou no final da década 1970, ainda sob o regime militar, foi a
pedra fundamental de uma democracia que garantiu um regime de direitos e
benefícios aos trabalhadores e aos mais pobres, referendado pela
Constituição de 1988 e ampliado pelos governos conduzidos pelo PT a
partir de 2003. Nunca, em nenhum momento, os brasileiros e brasileiros
das camadas antes chamadas de subalternas conseguiram ser ouvidas de
verdade em assuntos do Estado, ainda que em várias ocasiões não tenham
sido atendidas e até ignoradas.
Além do progresso material, receberam um tratamento político
respeitoso, base para uma postura de dignidade e consciência de direitos
até então desconhecida.
Neste caminho, "o golpe ou no mínimo farsa" de 2016, como
escreveu Le Monde, se aproxima do golpe de 1964 através para uma linha
comum.
Calculando que a saída de Dilma é fato consumado, a articulação
encaminha a batalha histórica e decisiva, Anti-Lula, sem a qual não
conseguirá fechar um ciclo histórico.
No esforço contra 1978-1988-2003, a necessidade de cercar e
ameaçar a principal liderança popular da história do país cumpre uma
função ao mesmo tempo óbvia e essencial.
Enquanto mantiver direitos políticos na plenitude, Lula será a uma
peça única no atual ambiente político. Isso porque seu reconhecimento
popular é o principal fator de desmoralização de projetos que pretendem
acabar com eleições diretas através de um regime parlamentarista,
rejeitado por dois plebiscito em pouco mais de 50 anos.
Também é a principal força de resistência contra medidas de
arrocho e destruição de direitos sociais e projetos econômicos que podem
assegurar alguma autonomia aos brasileiros para decidir seu próprio
destino.
Não custa lembrar que os diálogo decisivos para a vitória dos
conspiradores civis e militares que em 1964 construiram uma ditadura de
21 anos envolveu o lugar dos trabalhadores na ordem política do novo
regime. Este era o ponto essencial, como fica claro por conversas
travados nas horas decisivas. A questão, antes como hoje, é a renda, a
partilha da riqueza.
Num diálogo na hora mais dramática, transcrito pelo historiador
Jorge Ferreira em "João Goulart -- uma biografia" o ministro da Guerra,
general Jair Dantas Ribeiro, deu um ultimato ao presidente pelo
telefone: "Eu me disponho a garantí-lo na presidência da República se
houver de sua parte uma declaração rompendo com o Comando Geral dos
Trabalhadores."
Com pequenas alterações no texto, conversas de teor semelhante
foram travadas na época, inclusive pelo comandante do II Exército --
abrigo das tropas importantes estacionadas em São Paulo -- Amaury
Kruel. A este a posteridade reservou uma ironia única a respeito de
investigações seletivas sobre uma conspiração que pretendia combater a
"subversão e a corrupção."
Conforme o Major Erimá Pinheiro Moreira, que serviu sob o comando
de Kruel, na passagem da lealdade a Jango à traição o general recebeu
duas malas carregadas de dólares. Verdade? Mentira? Impossível saber.
Situando-se no lado conveniente do mundo dos vivos, Kruel, falecido em
1996, também teve direito a investigações seletivas, inclusive pela
posteridade.
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