Em cinco de outubro de 1988, a
nação que vivia desacolhida dentro do próprio país conquistou um bote
para remar seu anseio por pátria e cidadania.
Com as virtudes e defeitos sabidos, a Constituição Cidadã, promulgada há 28 anos, esticou o pontão dos direitos sociais --no que tange à lei-- ao ponto mais avançado permitido pela correlação de forças que sucedeu à ditadura.
Conduziu-a um impulso gigantesco de ondas políticas sobrepostas.
A resistência heroica à ditadura, em primeiro lugar.
Mas também os levantes operários surpreendentes registrados no ABC paulista, nos anos 70/80.
Metalúrgicos liderados então por uma nova geração de jovens sindicalistas, afrontaram a repressão e o arrocho, paralisaram fábricas, encheram estádios e igrejas, tomaram praças e ruas.
Irromperiam assim nacionalmente como a fonte nova da esperança, dotada de força e merecedora do consentimento amplo para falar pela sociedade, mas sobretudo pelas famílias assalariadas em defesa do pão e da liberdade.
Como uma onda oceânica de dimensões até então desconhecidas, o levante metalúrgico seria sucedido de um explosivo anseio por direitos, que levaria milhões às ruas na campanha política mais avassaladora da história nacional: as ‘Diretas Já!’, pelo fim da ditadura.
Trincou ali o mar glacial da desigualdade brasileira.
O degelo esticaria a fronteira da democracia na reordenação do país a cargo da Assembleia Constituinte de fevereiro de 1987.
‘Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora’, diria Ulysses Guimarães, vinte meses depois, na promulgação da carta .
‘Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados’, profetizou então o ‘senhor Diretas’.
A lamparina dos desgraçados bruxuleia agora na ameaçadora noite de ventania que acossa o Brasil dos golpistas de 2016, que pretendem viola-la por vinte anos naquilo que é a essência da sua identidade: ser o abrigo de direitos básicos essenciais e universais, como o direito à alimentação, a saúde, à escola, a oportunidades iguais na infância e à dignidade na velhice.
Quase três décadas depois de abertas as portas constitucionais dessa acolhida, o Brasil que vivia na soleira, do lado de fora do mercado e da cidadania – encontra-se de novo ameaçado de banimento.
São os ‘nossos árabes’, diria Chico Buarque de Holanda, em síntese premonitória, em 2004.
Vale a pena reler a sua entrevista pela assustadora atualidade de suas palavras.
O que fica claro na percepção aguçada do artista, então, é a natureza estrutural do ódio de classe hoje aguçado e disseminado, como se viu nas eleições municipais, por um combate seletivo à corrupção, determinado na verdade a cometer um politicídio contra o Partido dos Trabalhadores que emergiu nesse processo.
A verdade é que a opção pelo apartheid em detrimento da nação foi apenas superficialmente dissimulada no interregno recente de expansão do PIB.
Aquilo que latejou em banho maria dentro das caçarolas francesas, voltaria a borbulhar com violência, porém, ao primeiro sinal de aguçamento do conflito distributivo, agora caramelizado de indignação ética.
A percepção de Chico há 12 anos, no início do processo, evidencia que sempre fomos os mesmos.
O que se diz dos ‘nossos árabes’ agora é que já não cabem no orçamento.
Ou como prefere a dissimulação técnica da guerra social: ‘A Constituição de 1988 não cabe no equilíbrio fiscal’.
Coisas parecidas são ditas nesse momento por governantes e extremistas de uma Europa que não sabe o que fazer com seus próprios ‘árabes’ – mais de 20 milhões de desempregados criados pela austeridade neoliberal — vendo na chegada dos de fora, os refugiados, os migrantes, o risco de um desnudamento social explosivo.
O fato é que a Carta de 1988 sempre foi vista pela aduana das classes abastadas como um bote apinhado de gente perigosa.
Lei escrita na contramão do espírito da época, ela afrontaria a ascensão das reformas neoliberais em marcha, irradiadas de um triângulo sugestivo.
Dele faziam parte um golpe sangrento (Pinochet;1973); uma contrarreação ao poder sindical e trabalhista na sua principal trincheira (Thatcher; 1979) e um cowboy determinado a regenerar o poder do dólar no velho oeste do capitalismo (Reagan; 1981).
Quando Ulysses Guimarães proferia seu discurso histórico em 5 de outubro de 1988 enaltecendo a coragem constituinte de fazer do Brasil ‘o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade (social), com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios (da aposentadoria) para os que contribuam ou não...’, Tatcher reinava no antepenúltimo dos seus 11 anos dedicados a erigir uma referência de devastação dessa mesma matriz de direitos sociais civilizatórios.
O Chile havia perdido uma geração assassinada, presa ou exilada, pavimentando-se assim o estirão precursor daquilo que hoje se conhece pela senha de ‘reformas’.
Quando Ulysses encerrava sua saudação com o brado ‘Muda Brasil!’, Reagan percorria o penúltimo ano do seu segundo mandato.
Seria sucedido por Bill Clinton, o democrata amigo do PSB.
O marido de Hillary, a democrata que agora pleiteia a mesma cadeira na Casa Branca, cuidaria de arrematar a desregulação neoliberal do mercado financeiro –com as consequências integralmente contabilizadas 10 anos depois, na quebra do Lehman Brothers em 2008, que desencadeou o atual colapso da ordem neoliberal.
A Carta brasileira sempre foi vista pela elite e pelo dinheiro como a ovelha negra dessa supremacia mercadista ora esgotada
A pedra no meio do caminho enfrenta agora um acerto de contas com os que se mostram determinados a recuperar o tempo perdido para capacitar o Brasil a ingerir, de um só golpe, todo o repertório de reformas destinadas a suprimir direitos e acrescentar espoliação dos que vivem do próprio trabalho.
O que impulsiona o sopro conservador contra a ‘lamparina dos desgraçados’ nesse momento?
Um desses paradoxos da história: o enfraquecimento –que o juiz de Curitiba pretende transformar em aniquilamento-- do partido que assentiu com reservas a ela em 1988, mas que pelas linhas tortas da luta política tornar-se-ia seu principal guardião.
Entre outros motivos, o PT rejeitou o resultado Constituinte –embora assinando a Carta-- por considera-lo, como de fato era, paralisante do ponto de vista da reforma agrária, avesso à pluralidade sindical, elitista no que tange à redistribuição fiscal da riqueza e ao controle do sistema financeiro, ademais de preservar esporões da ditadura no sistema político e no aparato de segurança.
A anistia recíproca para vítimas e algozes do regime militar, o mais evidente destes acintes.
Mas não só.
A correlação de forças expressa na Assembleia de 1987, ademais, não permitiria ao país erigir uma Carta autoaplicativa em temas de relevância crucial para o futuro do desenvolvimento e da democracia social almejada.
Caso exclamativo dessa lista é o do artigo 220, parágrafo 5º, que veta o monopólio ou o oligopólio sobre os meios de comunicação, nunca regulamentado --nem no ciclo interrompido pelo golpe de 31 de agosto último.
Pouco mais de uma década de governos petistas abriria, porém, uma fresta de avanços no cumprimento de políticas sociais, na aplicação de direitos trabalhistas, no acesso ao crédito, à escola, à moradia, no direito à segurança alimentar, na recomposição do poder aquisitivo do salário mínimo, na soberania nacional, na defesa das riquezas nacionais –tudo como previsto no espírito da Constituição Cidadã.
Os ‘nossos árabes’ atravessaram a fronteira do mercado e bateram na porta da cidadania nesse estirão.
Até a eclosão do golpe, formavam 53% do mercado de massa e 46% da renda nacional.
O conjunto de certa forma soldou em um só destino a sorte deles, a da Carta e a do partido que dela divergiu, mas se tornou o escudeiro e por isso o alvo dos seu algozes.
Um dos elos mais importantes desse entrelaçamento foi o ganho real de quase 70% promovido nos últimos anos no poder de compra do salário mínimo.
Sua extensão plena aos aposentados do campo e aos beneficiados por idade, viuvez e invalidez é parte da chama cidadã que o golpe deseja erradicar agora.
Estamos falando de um contingente de 18 milhões de brasileiros. Multiplique-se isso por quatro dependentes: temos aí um universo de 70 milhões de pessoas.
Não é preciso validar integralmente o ciclo de governos iniciado em 2003 para admitir que essa obediência ao espírito de 1988 sacudiu placas tectônicas do apartheid social brasileiro.
Acrescente-se ao degelo, o alcance de outras políticas pertinentes à promoção da segurança social, caso do Bolsa Família, por exemplo.
O bote inflável passa a abarcar um contingente de pelo menos 60 milhões ‘dos nossos árabes’, diria Chico, a atravessar o limite do mercado interno.
No meio do caminho eclodiu uma crise mundial.
Com nitidez vertiginosa, avultaria o fato de que esse país em ponto de mutação não cabe mais no formato anterior de um mercado com infraestrutura, sistema tributário, fiscal e político planejados para 1/3 da população.
As tensões decorrentes desse processo ocupam agora o centro da crise política aguçada pelo golpe e do debate macroeconômico decorrente da crise que essa encruzilhada desencadeou
Mais que isso: orientam a luta de vida ou morte do conservadorismo contra a sigla que, involuntariamente, tornou-se a guardiã do espírito de 1988 no Brasil do século XXI.
A longa convalescença da crise mundial sistêmica não gerou forças de ruptura – ‘menos ainda no Brasil, preservado dela até 2013, às custas de ações contracíclicas cujo esgotamento esgotou também a coalizão e a governabilidade --favorecendo a virulência conservadora em curso.
A macroeconomia desse braço de ferro está assentada em contradições sabidas (integração mundial desintegradora ou inserção soberana via BRICs, ancorada em resgate industrializante com o pré-sal, associado a um controle de capitais que permita ao país ter câmbio competitivo, sem cair na servidão rentista dos juros siderais para evitar fugas recorrentes de dólares?)
Mas é sobretudo a ‘rigidez das despesas obrigatórias’ – receitas vinculadas a direitos sociais pela ‘lamparina dos desgraçados’-- que constitui o alvo central do cerco conservador nesse momento.
Expresso na PEC 241, o que se pretende é restringir o alcance dessas obrigações, corrigindo-as exclusivamente pela variação de preços do ano anterior durante duas décadas, o que significa um monstruoso horizonte de arrocho em termos reais.
Com as virtudes e defeitos sabidos, a Constituição Cidadã, promulgada há 28 anos, esticou o pontão dos direitos sociais --no que tange à lei-- ao ponto mais avançado permitido pela correlação de forças que sucedeu à ditadura.
Conduziu-a um impulso gigantesco de ondas políticas sobrepostas.
A resistência heroica à ditadura, em primeiro lugar.
Mas também os levantes operários surpreendentes registrados no ABC paulista, nos anos 70/80.
Metalúrgicos liderados então por uma nova geração de jovens sindicalistas, afrontaram a repressão e o arrocho, paralisaram fábricas, encheram estádios e igrejas, tomaram praças e ruas.
Irromperiam assim nacionalmente como a fonte nova da esperança, dotada de força e merecedora do consentimento amplo para falar pela sociedade, mas sobretudo pelas famílias assalariadas em defesa do pão e da liberdade.
Como uma onda oceânica de dimensões até então desconhecidas, o levante metalúrgico seria sucedido de um explosivo anseio por direitos, que levaria milhões às ruas na campanha política mais avassaladora da história nacional: as ‘Diretas Já!’, pelo fim da ditadura.
Trincou ali o mar glacial da desigualdade brasileira.
O degelo esticaria a fronteira da democracia na reordenação do país a cargo da Assembleia Constituinte de fevereiro de 1987.
‘Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora’, diria Ulysses Guimarães, vinte meses depois, na promulgação da carta .
‘Será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados’, profetizou então o ‘senhor Diretas’.
A lamparina dos desgraçados bruxuleia agora na ameaçadora noite de ventania que acossa o Brasil dos golpistas de 2016, que pretendem viola-la por vinte anos naquilo que é a essência da sua identidade: ser o abrigo de direitos básicos essenciais e universais, como o direito à alimentação, a saúde, à escola, a oportunidades iguais na infância e à dignidade na velhice.
Quase três décadas depois de abertas as portas constitucionais dessa acolhida, o Brasil que vivia na soleira, do lado de fora do mercado e da cidadania – encontra-se de novo ameaçado de banimento.
São os ‘nossos árabes’, diria Chico Buarque de Holanda, em síntese premonitória, em 2004.
Vale a pena reler a sua entrevista pela assustadora atualidade de suas palavras.
O que fica claro na percepção aguçada do artista, então, é a natureza estrutural do ódio de classe hoje aguçado e disseminado, como se viu nas eleições municipais, por um combate seletivo à corrupção, determinado na verdade a cometer um politicídio contra o Partido dos Trabalhadores que emergiu nesse processo.
A verdade é que a opção pelo apartheid em detrimento da nação foi apenas superficialmente dissimulada no interregno recente de expansão do PIB.
Aquilo que latejou em banho maria dentro das caçarolas francesas, voltaria a borbulhar com violência, porém, ao primeiro sinal de aguçamento do conflito distributivo, agora caramelizado de indignação ética.
A percepção de Chico há 12 anos, no início do processo, evidencia que sempre fomos os mesmos.
O que se diz dos ‘nossos árabes’ agora é que já não cabem no orçamento.
Ou como prefere a dissimulação técnica da guerra social: ‘A Constituição de 1988 não cabe no equilíbrio fiscal’.
Coisas parecidas são ditas nesse momento por governantes e extremistas de uma Europa que não sabe o que fazer com seus próprios ‘árabes’ – mais de 20 milhões de desempregados criados pela austeridade neoliberal — vendo na chegada dos de fora, os refugiados, os migrantes, o risco de um desnudamento social explosivo.
O fato é que a Carta de 1988 sempre foi vista pela aduana das classes abastadas como um bote apinhado de gente perigosa.
Lei escrita na contramão do espírito da época, ela afrontaria a ascensão das reformas neoliberais em marcha, irradiadas de um triângulo sugestivo.
Dele faziam parte um golpe sangrento (Pinochet;1973); uma contrarreação ao poder sindical e trabalhista na sua principal trincheira (Thatcher; 1979) e um cowboy determinado a regenerar o poder do dólar no velho oeste do capitalismo (Reagan; 1981).
Quando Ulysses Guimarães proferia seu discurso histórico em 5 de outubro de 1988 enaltecendo a coragem constituinte de fazer do Brasil ‘o quinto país a implantar o instituto moderno da seguridade (social), com a integração de ações relativas à saúde, à previdência e à assistência social, assim como a universalidade dos benefícios (da aposentadoria) para os que contribuam ou não...’, Tatcher reinava no antepenúltimo dos seus 11 anos dedicados a erigir uma referência de devastação dessa mesma matriz de direitos sociais civilizatórios.
O Chile havia perdido uma geração assassinada, presa ou exilada, pavimentando-se assim o estirão precursor daquilo que hoje se conhece pela senha de ‘reformas’.
Quando Ulysses encerrava sua saudação com o brado ‘Muda Brasil!’, Reagan percorria o penúltimo ano do seu segundo mandato.
Seria sucedido por Bill Clinton, o democrata amigo do PSB.
O marido de Hillary, a democrata que agora pleiteia a mesma cadeira na Casa Branca, cuidaria de arrematar a desregulação neoliberal do mercado financeiro –com as consequências integralmente contabilizadas 10 anos depois, na quebra do Lehman Brothers em 2008, que desencadeou o atual colapso da ordem neoliberal.
A Carta brasileira sempre foi vista pela elite e pelo dinheiro como a ovelha negra dessa supremacia mercadista ora esgotada
A pedra no meio do caminho enfrenta agora um acerto de contas com os que se mostram determinados a recuperar o tempo perdido para capacitar o Brasil a ingerir, de um só golpe, todo o repertório de reformas destinadas a suprimir direitos e acrescentar espoliação dos que vivem do próprio trabalho.
O que impulsiona o sopro conservador contra a ‘lamparina dos desgraçados’ nesse momento?
Um desses paradoxos da história: o enfraquecimento –que o juiz de Curitiba pretende transformar em aniquilamento-- do partido que assentiu com reservas a ela em 1988, mas que pelas linhas tortas da luta política tornar-se-ia seu principal guardião.
Entre outros motivos, o PT rejeitou o resultado Constituinte –embora assinando a Carta-- por considera-lo, como de fato era, paralisante do ponto de vista da reforma agrária, avesso à pluralidade sindical, elitista no que tange à redistribuição fiscal da riqueza e ao controle do sistema financeiro, ademais de preservar esporões da ditadura no sistema político e no aparato de segurança.
A anistia recíproca para vítimas e algozes do regime militar, o mais evidente destes acintes.
Mas não só.
A correlação de forças expressa na Assembleia de 1987, ademais, não permitiria ao país erigir uma Carta autoaplicativa em temas de relevância crucial para o futuro do desenvolvimento e da democracia social almejada.
Caso exclamativo dessa lista é o do artigo 220, parágrafo 5º, que veta o monopólio ou o oligopólio sobre os meios de comunicação, nunca regulamentado --nem no ciclo interrompido pelo golpe de 31 de agosto último.
Pouco mais de uma década de governos petistas abriria, porém, uma fresta de avanços no cumprimento de políticas sociais, na aplicação de direitos trabalhistas, no acesso ao crédito, à escola, à moradia, no direito à segurança alimentar, na recomposição do poder aquisitivo do salário mínimo, na soberania nacional, na defesa das riquezas nacionais –tudo como previsto no espírito da Constituição Cidadã.
Os ‘nossos árabes’ atravessaram a fronteira do mercado e bateram na porta da cidadania nesse estirão.
Até a eclosão do golpe, formavam 53% do mercado de massa e 46% da renda nacional.
O conjunto de certa forma soldou em um só destino a sorte deles, a da Carta e a do partido que dela divergiu, mas se tornou o escudeiro e por isso o alvo dos seu algozes.
Um dos elos mais importantes desse entrelaçamento foi o ganho real de quase 70% promovido nos últimos anos no poder de compra do salário mínimo.
Sua extensão plena aos aposentados do campo e aos beneficiados por idade, viuvez e invalidez é parte da chama cidadã que o golpe deseja erradicar agora.
Estamos falando de um contingente de 18 milhões de brasileiros. Multiplique-se isso por quatro dependentes: temos aí um universo de 70 milhões de pessoas.
Não é preciso validar integralmente o ciclo de governos iniciado em 2003 para admitir que essa obediência ao espírito de 1988 sacudiu placas tectônicas do apartheid social brasileiro.
Acrescente-se ao degelo, o alcance de outras políticas pertinentes à promoção da segurança social, caso do Bolsa Família, por exemplo.
O bote inflável passa a abarcar um contingente de pelo menos 60 milhões ‘dos nossos árabes’, diria Chico, a atravessar o limite do mercado interno.
No meio do caminho eclodiu uma crise mundial.
Com nitidez vertiginosa, avultaria o fato de que esse país em ponto de mutação não cabe mais no formato anterior de um mercado com infraestrutura, sistema tributário, fiscal e político planejados para 1/3 da população.
As tensões decorrentes desse processo ocupam agora o centro da crise política aguçada pelo golpe e do debate macroeconômico decorrente da crise que essa encruzilhada desencadeou
Mais que isso: orientam a luta de vida ou morte do conservadorismo contra a sigla que, involuntariamente, tornou-se a guardiã do espírito de 1988 no Brasil do século XXI.
A longa convalescença da crise mundial sistêmica não gerou forças de ruptura – ‘menos ainda no Brasil, preservado dela até 2013, às custas de ações contracíclicas cujo esgotamento esgotou também a coalizão e a governabilidade --favorecendo a virulência conservadora em curso.
A macroeconomia desse braço de ferro está assentada em contradições sabidas (integração mundial desintegradora ou inserção soberana via BRICs, ancorada em resgate industrializante com o pré-sal, associado a um controle de capitais que permita ao país ter câmbio competitivo, sem cair na servidão rentista dos juros siderais para evitar fugas recorrentes de dólares?)
Mas é sobretudo a ‘rigidez das despesas obrigatórias’ – receitas vinculadas a direitos sociais pela ‘lamparina dos desgraçados’-- que constitui o alvo central do cerco conservador nesse momento.
Expresso na PEC 241, o que se pretende é restringir o alcance dessas obrigações, corrigindo-as exclusivamente pela variação de preços do ano anterior durante duas décadas, o que significa um monstruoso horizonte de arrocho em termos reais.
Porém é mais do que uma rasteira datada o que está em jogo.
Trata-se, na realidade, de violar o coração da Carta de 88 que encerrava uma concepção solidária de sociedade para o futuro do país.
Trata-se, na realidade, de violar o coração da Carta de 88 que encerrava uma concepção solidária de sociedade para o futuro do país.
A
expressão ‘des-emancipação social’, cunhada pelo filósofo italiano
Domenico Losurdo, expressa a brutalidade e a abrangência do galope posto
na rua pelo golpismo, com a cumplicidade vergonhosa das esporas
liberais (leia http://cartamaior.com.br/?/Editorial/O-silencio-dos-liberais-raizes-da-vergonha-brasileira/36887)
A
Constituinte de 1987 não reconheceu nos mercados a autossuficiência
capaz de destinar os frutos do desenvolvimento à construção da cidadania
plena, ainda indisponível à ampla maioria da sociedade.
Destinou assim ao Estado e às políticas públicas um papel indutor constitucional do desenvolvimento econômico e social.
O mantra do equilíbrio intrínseco aos livres mercados pretende agora promover o desmanche dessa diretriz, lancetando da Carta o compromisso do Estado de assegurar a universalização de direitos sociais básicos ao conjunto da população.
A PEC 241 é a ponte para a mutação futura desses direitos em serviços, vendidos pelo mercado.
É o que de forma abusada dizem os próprios golpistas e seus vulgarizadores na mídia.
O padrão de Estado Social ‘com direitos europeus’, segundo eles, é incompatível com a expansão capitalista no Brasil.
‘Encarece o custo do investimento privado’, afirmam.
‘Gastos obrigatórios rebaixam a poupança do setor público’, fuzilam.
‘O conjunto move a engrenagem do desequilíbrio fiscal e pressiona a taxa de juro, impedindo o desejado ciclo de investimento sustentável’, arrematam.
Parece sensato, desde que se exclua da equação a variável da justiça fiscal.
A verdade é que a equação martelada hoje pelo conservadorismo está deliberadamente mal posta.
A escolha entre arrocho ou desordem fiscal não é a única possível.
A repactuação do desenvolvimento brasileiro, de fato, só é viável se for contemplada a alternativa inclusiva.
Aquela em que a insuficiência fiscal é atenuada por um avanço de justiça tributária, com taxação da riqueza financeira, alíquotas progressivas (no governo Jango, por exemplo, a alíquota máxima era de 60%) , revogação das isenções para rentistas e de privilégios para os acionistas.
Ou tudo isso condensado em uma sigla única: CPMF
A tensão política travestida em impasse fiscal atingiu seu nível máximo, no impulso de impasses econômicos e contradições políticas que já não cabiam nos limites da institucionalidade disponível.
O golpe foi a resposta das elites e da plutocracia, com o apoio nada desprezível da mídia, das togas, da escória parlamentar e da República de Curitiba.
Inclui o desmonte da Carta de 1988 e o aniquilamento do PT. Ou vice -versa , já que os dois destinos se entrelaçaram.
Do ponto de vista progressista, o passo seguinte do processo iniciado em 1988 requer uma árdua repactuação de forças que viabilize um retomada de crescimento associado a um salto qualitativo na inclusão dos ‘nossos árabes’.
Destinou assim ao Estado e às políticas públicas um papel indutor constitucional do desenvolvimento econômico e social.
O mantra do equilíbrio intrínseco aos livres mercados pretende agora promover o desmanche dessa diretriz, lancetando da Carta o compromisso do Estado de assegurar a universalização de direitos sociais básicos ao conjunto da população.
A PEC 241 é a ponte para a mutação futura desses direitos em serviços, vendidos pelo mercado.
É o que de forma abusada dizem os próprios golpistas e seus vulgarizadores na mídia.
O padrão de Estado Social ‘com direitos europeus’, segundo eles, é incompatível com a expansão capitalista no Brasil.
‘Encarece o custo do investimento privado’, afirmam.
‘Gastos obrigatórios rebaixam a poupança do setor público’, fuzilam.
‘O conjunto move a engrenagem do desequilíbrio fiscal e pressiona a taxa de juro, impedindo o desejado ciclo de investimento sustentável’, arrematam.
Parece sensato, desde que se exclua da equação a variável da justiça fiscal.
A verdade é que a equação martelada hoje pelo conservadorismo está deliberadamente mal posta.
A escolha entre arrocho ou desordem fiscal não é a única possível.
A repactuação do desenvolvimento brasileiro, de fato, só é viável se for contemplada a alternativa inclusiva.
Aquela em que a insuficiência fiscal é atenuada por um avanço de justiça tributária, com taxação da riqueza financeira, alíquotas progressivas (no governo Jango, por exemplo, a alíquota máxima era de 60%) , revogação das isenções para rentistas e de privilégios para os acionistas.
Ou tudo isso condensado em uma sigla única: CPMF
A tensão política travestida em impasse fiscal atingiu seu nível máximo, no impulso de impasses econômicos e contradições políticas que já não cabiam nos limites da institucionalidade disponível.
O golpe foi a resposta das elites e da plutocracia, com o apoio nada desprezível da mídia, das togas, da escória parlamentar e da República de Curitiba.
Inclui o desmonte da Carta de 1988 e o aniquilamento do PT. Ou vice -versa , já que os dois destinos se entrelaçaram.
Do ponto de vista progressista, o passo seguinte do processo iniciado em 1988 requer uma árdua repactuação de forças que viabilize um retomada de crescimento associado a um salto qualitativo na inclusão dos ‘nossos árabes’.
Não
é tarefa para um partido, mas para uma gigantesca frente ampla dos
interesses contrariados pela centralidade argentária fortemente
excludente do golpe.
Implementa-la
não é uma tarefa retórico. O verdadeiro desafio hoje é fazer de cada
luta econômica, de cada bandeira política, de cada palanque eleitoral,
de cada trincheira cultural uma oficina de construção da frente ampla.
Depois
de navegarem da pobreza para o mercado, as forças sociais banidas pelo
golpe terão que assumir o leme do próprio destino na vida nacional.
Caso contrário, o risco de morrerem na praia será imenso.
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