O ex-ministro da Economia argentino Roberto Lavagna deu, esta semana, uma entrevista extremamente lúcida ao jornal Valor Econômico, onde traça paralelos entre atual crise das dívidas dos países da União Europeia e aquela que, no início da década passada levou a Argentina ao caos financeiro e à moratória unilateral de seus títulos públicos.
Naquela época, foi seguido ali o receituário clássico do neoliberalismo – na ocasião, ainda um dogma inquestionável – e respondeu-se à crise com pacotes recessivos assemelhados aos que agora se impõem à Grécia, à Itália, a Portugal e Espanha. O FMI aportou recursos para socorrer as necessidades de rolagem da dívida argentina e, em troca, exigiu cortes e mais cortes nos gastos públicos.
E estes foram feitos com um rigor muito poucas vezes visto. Os salários do funcionalismo e as aposentadorias não apenas foram contidos: foram reduzidos nominalmente. O desemprego chegou aos níveis da Espanha de hoje: 21,5%. O déficit público não foi contido, foi proibido por lei.
Enfim, o remédio tinha a forma do que se propõe hoje, e a dose argentina, administrada pelo “intocável” ministro Domingos Caballo – um santo do altar neoliberal ao Sul do Equador – foi, sem trocadilho, cavalar.
Durante dois anos, de dezembro de 1999 a dezembro de 2001, foi aplicado sem contestação. O resultado foi que o país perdeu 60% de suas parcas reservas internacionais, aumentou em 50% sua dívida pública e multiplicou por dez o risco que lhe era atribuído no mercado de títulos públicos internacional.
Até que, com a corrida aos bancos e a limitação dos saques bancários, tudo explodiu. Os protestos viraram distúrbios de rua, com mortes e comoção nacional. O presidente Fernando De la Rúa chegou a ter de fugir de helicóptero da Casa Rosada, sede do governo.
O final desta história, todos sabem, só ocorreu quando o novo presidente, Nestor Kirchner, que já encontrou o país em moratória, praticou a suprema “heresia” de reduzir, unilateramente, o valor destas dívidas – e dos compromissos gerados por ela. Mesmo diante do caos evidente e da necessidade de salvar o país do aniquilamento, a medida de Kirchner enfrentou anos de contestação nos tribunais dos grandes centros financeiros mundiais.
A lição que o operador da recuperação da economia argentina – que depois se tornaria adversário de Nestor Kirchner – deixa, na entrevista, é muito clara: não há possibilidade de sair de uma crise econômica num quadro de alto endividamento e baixo crescimento com pacotes recessivos quando não se pode alterar o valor da moeda nacional, presa a uma conversibilidade automática.
É exatamente aí que reside o problema europeu.
A União Europeia, se tiver de ser resumida em uma palavra, chama-se Euro, a sua moeda.
Não é possível, quando se tem a moeda a circular livremente, como o sangue num imenso organismo, esperar que um de seus membros – e já não estamos falando de um “dedo-mindinho” como a Islândia – possa ser arrochado com um torniquete sem que isso coloque em risco todo o corpo. A moeda continental vai continuar circulando e trazendo com ela a contaminação da gangrena que se queria manter contida.
A recusa do mercado financeiro à compra de títulos do governo alemão, ontem – só um terço da emissão foi comprado, por considerarem baixos os juros de 2% oferecidos. É evidente que, com uma moeda única, os países de economias maiores – França, Itália e Espanha – que oferecem prêmios maiores por suas obrigações são mais atraentes. De um lado, a moeda única elimina o risco cambial; de outro, não podem quebrar sem levar junto toda a Europa. E, querendo ou não, a Alemanha terá de evitá-lo.
A resistência alemã em “socializar” a crise europeia através da emissão de títulos comuns aos países da zona do Euro é compreensível, dado o aparente “bom estado” das finanças germânicas, em grande parte construído com a expansão alemã sobre as demais economias.
Mas cobra um peso político grave, e muito grave, porque a memória histórica do expansionismo alemão é um trauma que, embora todos os julgassem superado, ainda está vivo e bem vivo no continente.
Por: Fernando Brito
Naquela época, foi seguido ali o receituário clássico do neoliberalismo – na ocasião, ainda um dogma inquestionável – e respondeu-se à crise com pacotes recessivos assemelhados aos que agora se impõem à Grécia, à Itália, a Portugal e Espanha. O FMI aportou recursos para socorrer as necessidades de rolagem da dívida argentina e, em troca, exigiu cortes e mais cortes nos gastos públicos.
E estes foram feitos com um rigor muito poucas vezes visto. Os salários do funcionalismo e as aposentadorias não apenas foram contidos: foram reduzidos nominalmente. O desemprego chegou aos níveis da Espanha de hoje: 21,5%. O déficit público não foi contido, foi proibido por lei.
Enfim, o remédio tinha a forma do que se propõe hoje, e a dose argentina, administrada pelo “intocável” ministro Domingos Caballo – um santo do altar neoliberal ao Sul do Equador – foi, sem trocadilho, cavalar.
Durante dois anos, de dezembro de 1999 a dezembro de 2001, foi aplicado sem contestação. O resultado foi que o país perdeu 60% de suas parcas reservas internacionais, aumentou em 50% sua dívida pública e multiplicou por dez o risco que lhe era atribuído no mercado de títulos públicos internacional.
Até que, com a corrida aos bancos e a limitação dos saques bancários, tudo explodiu. Os protestos viraram distúrbios de rua, com mortes e comoção nacional. O presidente Fernando De la Rúa chegou a ter de fugir de helicóptero da Casa Rosada, sede do governo.
O final desta história, todos sabem, só ocorreu quando o novo presidente, Nestor Kirchner, que já encontrou o país em moratória, praticou a suprema “heresia” de reduzir, unilateramente, o valor destas dívidas – e dos compromissos gerados por ela. Mesmo diante do caos evidente e da necessidade de salvar o país do aniquilamento, a medida de Kirchner enfrentou anos de contestação nos tribunais dos grandes centros financeiros mundiais.
A lição que o operador da recuperação da economia argentina – que depois se tornaria adversário de Nestor Kirchner – deixa, na entrevista, é muito clara: não há possibilidade de sair de uma crise econômica num quadro de alto endividamento e baixo crescimento com pacotes recessivos quando não se pode alterar o valor da moeda nacional, presa a uma conversibilidade automática.
É exatamente aí que reside o problema europeu.
A União Europeia, se tiver de ser resumida em uma palavra, chama-se Euro, a sua moeda.
Não é possível, quando se tem a moeda a circular livremente, como o sangue num imenso organismo, esperar que um de seus membros – e já não estamos falando de um “dedo-mindinho” como a Islândia – possa ser arrochado com um torniquete sem que isso coloque em risco todo o corpo. A moeda continental vai continuar circulando e trazendo com ela a contaminação da gangrena que se queria manter contida.
A recusa do mercado financeiro à compra de títulos do governo alemão, ontem – só um terço da emissão foi comprado, por considerarem baixos os juros de 2% oferecidos. É evidente que, com uma moeda única, os países de economias maiores – França, Itália e Espanha – que oferecem prêmios maiores por suas obrigações são mais atraentes. De um lado, a moeda única elimina o risco cambial; de outro, não podem quebrar sem levar junto toda a Europa. E, querendo ou não, a Alemanha terá de evitá-lo.
A resistência alemã em “socializar” a crise europeia através da emissão de títulos comuns aos países da zona do Euro é compreensível, dado o aparente “bom estado” das finanças germânicas, em grande parte construído com a expansão alemã sobre as demais economias.
Mas cobra um peso político grave, e muito grave, porque a memória histórica do expansionismo alemão é um trauma que, embora todos os julgassem superado, ainda está vivo e bem vivo no continente.
Por: Fernando Brito
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