Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 29/01/2013 na edição 731
Em Campinas (SP), a Polícia Militar divulga uma ordem de serviço orientando patrulhamento em determinado bairro com atenção especial a suspeitos “de cor parda e negra” (ver aqui). No Rio, um menino negro é enxotado de uma concessionária de carros de luxo pelo funcionário que viu nele apenas mais um moleque importuno e não supôs que pudesse ser filho adotivo do casal branco a quem atendia.
Diante da repercussão negativa, a polícia paulista tentou minimizar o episódio: explicou que a nota dizia respeito a um grupo específico de jovens com aquelas características, que vinham cometendo crimes na região – daí a especificação não apenas do bairro, mas do dia da semana e do horário –, mas reconheceu que “o texto foi redigido de forma equivocada”. No Rio, a concessionária demorou uma semana até se desculpar com os fregueses dizendo que tudo não passara de um mal-entendido, e aí sim a história ganhou destaque, primeiro nas redes sociais, e em seguida na imprensa.
O “mal-entendido” da PM disfarça precariamente o preconceito arraigado na corporação treinada para perseguir os marginalizados, e sintetizado na referência à “cor padrão” com a qual costumam ser identificados na comunicação entre policiais – muitos deles, por sinal, dessa mesma cor. Já o “mal-entendido” da concessionária provocou uma onda de protestos e até uma indignada manifestação da Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro contra a discriminação racial. A ênfase nesse tema encobriu o principal: o preconceito social, presente nos mais variados aspectos da vida cotidiana e reiterado sistematicamente pela própria mídia hegemônica.
Os limites do protesto
O caso ocorreu num sábado (12/1): o casal disse que foi com seu filho mais novo, um menino negro adotado de 7 anos, a uma concessionária da BMW na Barra da Tijuca. O menino teria ficado numa sala vendo TV e quando se aproximou dos pais foi tratado rispidamente pelo funcionário, que lhe deu ordem para sair dali, numa improvável suposição de que seria mais um desses garotos que perambulam vendendo balas ou pedindo esmolas: a qualidade de seus trajes não deveria deixar dúvidas quanto a isto, embora esse ponto não tenha sido mencionado nas entrevistas.
O casal formalizou seu protesto e, como o pedido de desculpas saiu pela tangente, decidiu abrir uma página no Facebook com a denúncia: “Preconceito racial não é mal-entendido, é crime“. A iniciativa rapidamente ganhou a adesão de milhares de pessoas, embora não fossem raros os comentários depreciativos, que apontavam intenções escusas de alardear e exagerar o episódio para lucrar com ele. Também – e aqui reside o mais importante – apareceram ressalvas quanto à relevância do caso, comparado ao que ocorre sistematicamente com a população pobre de modo geral.
Daí as acusações de hipocrisia: se fosse um menino maltrapilho a circular entre os reluzentes modelos importados, mesmo que apenas para admirá-los, qual seria a reação dos clientes? Quantas vezes já vimos esses meninos serem escorraçados de lojas, bares, restaurantes, supermercados? O que costumamos fazer quando os avistamos nas ruas, perambulando ou encolhidos debaixo de marquises? Como essa gente é rotineiramente tratada pelos jornais?
Imprensa e preconceito social
Não é preciso muito esforço para verificar que os marginalizados são sistematicamente apresentados ora como um estorvo, ora como um perigo, a conspurcar ou ameaçar a tranquilidade dos “cidadãos de bem” que moram nos bairros mais valorizados da cidade. Tomemos, só para ilustrar, dois exemplos do Globo ao longo dos últimos anos: em 9/4/2008, o jornal expôs na capa um “menor” caído, rodeado por policiais, e a legenda sobre o sucesso da operação “Ipa-total”, em Ipanema, que havia recolhido “22 moradores de rua e quatro caminhões de lixo”. Alguma dúvida sobre o sentido da frase? De modo semelhante, em 11/3/2012, o jornal exibia três adultos maltrapilhos dormindo de manhã no Campo de Santana, uma das muitas “desprotegidas áreas verdes da Rio+20”. Pois, é claro, desprotegido está o parque, não aqueles indigentes que o transformam em casa.
Convenientemente, as reportagens sobre o episódio ocorrido com o menino acolhido pela família rica se mantiveram nos limites do preconceito racial. Na grande imprensa, uma rara menção quanto ao sentido mais amplo do preconceito social, que os frequentadores das redes sociais já notavam, foi a de Zuenir Ventura, ao final de seu artigo em O Globo (26/1), que também citava a discriminação contra babás em clubes de elite, objeto do noticiário recente.
O lugar de cada um
Em meados do ano 2000, um grupo de ativistas mobilizou mais de uma centena de pessoas, moradores da periferia do Rio, para uma “visita” ao shopping Rio Sul. O choque provocado com aquela “invasão” surtiu efeito: de repente, um monte de gente pobre e mal vestida entrava em lojas chiques, experimentava sapatos e roupas caras, deslumbrava-se com eletrodomésticos, comia marmitas nas praças de alimentação, andava pela primeira vez numa escada “volante”. Algumas lojas fecharam, outras os atenderam como se fossem clientes comuns, os vendedores fingindo naturalidade, a informar que aquela gigantesca televisão de plasma – então a última palavra em tecnologia, de preço proibitivo mesmo para a classe média – podia ser adquirida em suaves prestações.
Como meninos negros – e pobres – em concessionárias de carros de luxo, o lugar deles, evidentemente, não era ali.
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[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)
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