O arrocho fiscal tem agora, em um projeto de José Serra, a capacidade de promover um longo ciclo de recessão no país.
por: Saul Leblon
por: Saul Leblon
A ideia de que sem o Estado a sociedade funciona melhor está arraigada na efervescência golpista que ronda o país à procura de um pretexto para se consumar.
Não é um simples cacoete conservador.
O calibre superlativo de interesses abrigados sob esse guarda-chuva ideológico explica porque o ruidoso apodrecimento de Eduardo Cunha não basta para devolver o chão firme ao governo Dilma.
É preciso enfrentar a agenda por trás do abusado operador.
A intuição do ex-presidente Lula estava certa ao advertir os mais entusiasmados, na semana passada: o inimigo continua intacto, disse Lula.
O PSDB é a âncora local da ideia-força, que na verdade deixou o campo imaterial desde os anos setenta para se tornar a lógica ubíqua do poder na globalização.
Entre outras determinações, ela estabeleceu uma devastadora desconexão entre desenvolvimento e soberania democrática, jogando as nações em um pântano estratégico do qual estão longe de se livrar.
Assentada na supremacia do capital rentista, a globalização financeira instalou no interior dos Estados nacionais uma contradição nos seus próprios termos.
Governos eleitos para desobstruir canais de crescimento e prover direitos a populações historicamente excluídas, descobrem-se capturados por uma malha de interditos e chantagens.
Um poder inefável e sem rosto exerce a vigilância asfixiante nos principais circuitos de decisão local e supranacional.
Basta uma tecla para desencadear ordens de compra e venda que podem esfarelar o mandato de um Presidente.
Ou reduzir nações a uma montanha desordenada de impossibilidades.
A soberania dos povos, em certa medida, foi sequestrada pelo diuturno escrutínio dos pregões ao redor do planeta.
A abertura e o fechamento dos mercados de câmbio atualiza essa servidão, emitindo pronunciamentos diários em cadeia mundial.
Tudo se passa como se uma junta militar editasse sentenças de vida ou morte sobre o destino das nações e a sorte de seu desenvolvimento.
Nunca como hoje a luta pela sociedade digna remeteu tão diretamente à necessidade de se deter o controle do poder de Estado.
E nunca o Estado esteve tão engessado por um poder prevalecente, quase integralmente subordinado a normas e agendas que o reduzem a pouco mais que uma anexo dos desígnios dos mercados.
A política fiscal –ou seja, a ferramenta que dá ao Estado o poder de induzir e ordenar o investimento público e privado-- é o canal estruturante através do qual se exerce o sequestro da agenda do desenvolvimento soberano em nosso tempo.
Não por acaso ela é o alvo central da vigilância das agências de risco, das consultorias infatigáveis, dos departamentos econômicos dos bancos, do anexo acadêmico do rentismo e do jornalismo a serviço dessa maquinaria.
A caçada diuturna visa manter o azeite num eixo de ação que assegura todos os demais interditos.
Urdida na impossibilidade de taxar a riqueza, a camisa de força fiscal leva a sucessivas espirais de endividamento público até, finalmente, enjaular o governante num regime destrutivo de juros altos e investimentos medíocres.
É o ardil dentro do qual o Brasil se debate nesse momento, entre o golpe paraguaio e a paralisia governamental que o lubrifica.
A bonança recente do ciclo de commodities ofereceu ao Brasil uma década trufada por excedentes que ampliaram a margem de manobra do governo e amorteceram a percepção dessa polaridade extrema.
Três gestões petistas sucessivas souberam aproveitar esse atalho para reduzir a perversão social acumulada em 500 anos de capitalismo perverso.
Dobraram a aposta nessa via de resistência durante a crise deflagrada pela desordem neoliberal em 2008.
Os resultados são conhecidos e documentados como um dos estirões mais robustos na luta conta a pobreza e a fome em nosso tempo.
Um dado resume todos os demais: o mercado de massa criado nesse processo acoplou à economia brasileira um outro país, com peso e medida para credenciar-se ao G-20.
Embora o dever de ofício midiático se esmere em negá-lo, o fato é que todo o vapor da caldeira conservadora hoje se concentra em desmontar o avanço da justiça social que seus porta-vozes desmentem ter ocorrido.
Dê-se a isso o nome técnico que for.
O que se mira é a regressão das conquistas sociais, salariais e políticas dos últimos doze anos.
A melhor forma de proceder ao desmonte é no atacado da coleira fiscal.
Ou seja, subordinando o aparelho de Estado ao garrote de um labirinto de cortes e arrocho que reduz a função do governante à de um contador kafkiano.
Coagido a prestar contas de metas irreais, em prazos impossíveis, ele deve ao mesmo tempo saciar a intolerância tributária das elites e a voracidade usurária dos rentistas --sem recorrer a pedaladas, nem hesitar em proceder a cortes drásticos, gerar desemprego, redução do poder de compra das famílias assalariadas e escalpo de direitos para cumprir as metas de superávit fiscal.
Esse tornique de muitas voltas poderá ganhar agora o arremate de um ajuste draconiano, capaz de jogar a pá de cal, por década e meia, na esperança de retomada do desenvolvimento no país.
O senador José Serra é o responsável pela emenda a um projeto de resolução em curso no Senado, que redefine limites para a dívida pública da União.
A contribuição do tucano, se consumada, erguerá uma espécie de linha de Tordesilhas na geografia fiscal do Estado brasileiro.
O ex-governador de São Paulo, de sensibilidade social conhecida, quer tornar impositivos superávits em torno de 3% do PIB até meados de 2030.
O potencial recessivo inerente a esse arrocho -- ainda mais profundo do que o verificado atualmente-- motivou intelectuais, lideranças e economistas, de Maria da Conceição Tavares a Celso Amorin, de Guilherme Boulos a Alfredo Bosi, entre dezenas de outros, a lançarem um chamado de alerta e urgência à nação (leia a íntegra do documento).
Por mais que se dissimule essa truculência em afirmação de responsabilidade fiscal, o fato é que a eventual implantação da ‘mecânica Serra’ só fará aprofundar a anemia do investimento público; por conseguinte aprofundará a rosca da recessão em marcha na economia brasileira.
Pior que isso.
Um longo ciclo de aperto fiscal como o preconizado pelo tucano –que coerentemente se dispõe a entregar o pre-sal às petroleiras internacionais-- privará a sociedade dos investimentos necessários ao salto de infraestrutura e de produtividade que devem caracterizar o passo seguinte do crescimento nacional..
Sem salto de produtividade, o que sobra para se agregar competitividade a uma economia?
Sobra forçar a queda real do salário direto e indireto -- via supressão de ganhos de poder de compra no salários mínimos e com a liquidação de direitos trabalhistas.
Essa dimensão sistêmica embutida na ‘mecânica Serra’ atende à agenda antissocial advogada pelos paladinos da contração expansiva. Qual seja, a dilapidação das estacas civilizatórias de contenção da barbárie capitalista que propiciaria o impulso ao florescimento das inversões privadas.
A Europa em carne viva de estagnação, desemprego e pobreza que enreda 122 milhões de cidadãos é a vitrine mais vistosa dessa receita ali praticada desde o colapso de 2008.
São esses os desdobramentos embutidos na convicção conservadora de que ter menos Estado redundará em uma melhor sociedade.
Redundará, na verdade, em um horizonte, em que o empobrecimento passará a ser o requisito da competitividade, o arrocho fiscal uma vacina de classe à reforma tributária que faça o rentista pagar imposto, e a liquidação da soberania, a salvaguarda preventiva a qualquer ameaça de controle de capital, que devolva à sociedade o comando do seu destino.
Cabe advertir, porém: nem Cunha, nem Serra lavram no deserto.
A margem de manobra de que desfrutam deriva em grande parte do flanco – e dos impasses que irradia — aberto pela política econômica equivocada adotada no segundo governo Dilma.
Ao associar recessão, portanto, queda de receita, e juros siderais, ela reforça as grades de um cativeiro fiscal que literalmente empurra a sociedade para um regime de pura servidão à ganância rentista.
A disjuntiva política intrínseca a uma encruzilhada de empobrecimento e paralisia é o golpe ou a repactuação democrática do futuro.
O curso do enredo golpista tem em Cunha e Serra dois personagens ilustrativos e complementares –um na esfera institucional, o outro no arremate macroeconômico do arrocho.
Resta a alternativa de uma repactuação democrática do desenvolvimento.
Para que seja sólida –e inclusive capaz de reverter a trajetória da dívida pública a confortáveis 60% do PIB—requer um protagonista dotado de força e consentimento, capaz de livrar a sociedade da prostração e docorporativismo em que se encontra, para compartilhar metas, salvaguardas, concessões e avanços que ergam as linhas de passagem a um novo ciclo de construção da democracia social brasileira.
Seu nome é frente popular. Sua viabilidade objetiva está dada. Seu peso efetivo nos acontecimentos em curso depende do discernimento político das lideranças e movimentos sociais para escolher entre o sectarismo ou a grandeza histórica.
Não é um simples cacoete conservador.
O calibre superlativo de interesses abrigados sob esse guarda-chuva ideológico explica porque o ruidoso apodrecimento de Eduardo Cunha não basta para devolver o chão firme ao governo Dilma.
É preciso enfrentar a agenda por trás do abusado operador.
A intuição do ex-presidente Lula estava certa ao advertir os mais entusiasmados, na semana passada: o inimigo continua intacto, disse Lula.
O PSDB é a âncora local da ideia-força, que na verdade deixou o campo imaterial desde os anos setenta para se tornar a lógica ubíqua do poder na globalização.
Entre outras determinações, ela estabeleceu uma devastadora desconexão entre desenvolvimento e soberania democrática, jogando as nações em um pântano estratégico do qual estão longe de se livrar.
Assentada na supremacia do capital rentista, a globalização financeira instalou no interior dos Estados nacionais uma contradição nos seus próprios termos.
Governos eleitos para desobstruir canais de crescimento e prover direitos a populações historicamente excluídas, descobrem-se capturados por uma malha de interditos e chantagens.
Um poder inefável e sem rosto exerce a vigilância asfixiante nos principais circuitos de decisão local e supranacional.
Basta uma tecla para desencadear ordens de compra e venda que podem esfarelar o mandato de um Presidente.
Ou reduzir nações a uma montanha desordenada de impossibilidades.
A soberania dos povos, em certa medida, foi sequestrada pelo diuturno escrutínio dos pregões ao redor do planeta.
A abertura e o fechamento dos mercados de câmbio atualiza essa servidão, emitindo pronunciamentos diários em cadeia mundial.
Tudo se passa como se uma junta militar editasse sentenças de vida ou morte sobre o destino das nações e a sorte de seu desenvolvimento.
Nunca como hoje a luta pela sociedade digna remeteu tão diretamente à necessidade de se deter o controle do poder de Estado.
E nunca o Estado esteve tão engessado por um poder prevalecente, quase integralmente subordinado a normas e agendas que o reduzem a pouco mais que uma anexo dos desígnios dos mercados.
A política fiscal –ou seja, a ferramenta que dá ao Estado o poder de induzir e ordenar o investimento público e privado-- é o canal estruturante através do qual se exerce o sequestro da agenda do desenvolvimento soberano em nosso tempo.
Não por acaso ela é o alvo central da vigilância das agências de risco, das consultorias infatigáveis, dos departamentos econômicos dos bancos, do anexo acadêmico do rentismo e do jornalismo a serviço dessa maquinaria.
A caçada diuturna visa manter o azeite num eixo de ação que assegura todos os demais interditos.
Urdida na impossibilidade de taxar a riqueza, a camisa de força fiscal leva a sucessivas espirais de endividamento público até, finalmente, enjaular o governante num regime destrutivo de juros altos e investimentos medíocres.
É o ardil dentro do qual o Brasil se debate nesse momento, entre o golpe paraguaio e a paralisia governamental que o lubrifica.
A bonança recente do ciclo de commodities ofereceu ao Brasil uma década trufada por excedentes que ampliaram a margem de manobra do governo e amorteceram a percepção dessa polaridade extrema.
Três gestões petistas sucessivas souberam aproveitar esse atalho para reduzir a perversão social acumulada em 500 anos de capitalismo perverso.
Dobraram a aposta nessa via de resistência durante a crise deflagrada pela desordem neoliberal em 2008.
Os resultados são conhecidos e documentados como um dos estirões mais robustos na luta conta a pobreza e a fome em nosso tempo.
Um dado resume todos os demais: o mercado de massa criado nesse processo acoplou à economia brasileira um outro país, com peso e medida para credenciar-se ao G-20.
Embora o dever de ofício midiático se esmere em negá-lo, o fato é que todo o vapor da caldeira conservadora hoje se concentra em desmontar o avanço da justiça social que seus porta-vozes desmentem ter ocorrido.
Dê-se a isso o nome técnico que for.
O que se mira é a regressão das conquistas sociais, salariais e políticas dos últimos doze anos.
A melhor forma de proceder ao desmonte é no atacado da coleira fiscal.
Ou seja, subordinando o aparelho de Estado ao garrote de um labirinto de cortes e arrocho que reduz a função do governante à de um contador kafkiano.
Coagido a prestar contas de metas irreais, em prazos impossíveis, ele deve ao mesmo tempo saciar a intolerância tributária das elites e a voracidade usurária dos rentistas --sem recorrer a pedaladas, nem hesitar em proceder a cortes drásticos, gerar desemprego, redução do poder de compra das famílias assalariadas e escalpo de direitos para cumprir as metas de superávit fiscal.
Esse tornique de muitas voltas poderá ganhar agora o arremate de um ajuste draconiano, capaz de jogar a pá de cal, por década e meia, na esperança de retomada do desenvolvimento no país.
O senador José Serra é o responsável pela emenda a um projeto de resolução em curso no Senado, que redefine limites para a dívida pública da União.
A contribuição do tucano, se consumada, erguerá uma espécie de linha de Tordesilhas na geografia fiscal do Estado brasileiro.
O ex-governador de São Paulo, de sensibilidade social conhecida, quer tornar impositivos superávits em torno de 3% do PIB até meados de 2030.
O potencial recessivo inerente a esse arrocho -- ainda mais profundo do que o verificado atualmente-- motivou intelectuais, lideranças e economistas, de Maria da Conceição Tavares a Celso Amorin, de Guilherme Boulos a Alfredo Bosi, entre dezenas de outros, a lançarem um chamado de alerta e urgência à nação (leia a íntegra do documento).
Por mais que se dissimule essa truculência em afirmação de responsabilidade fiscal, o fato é que a eventual implantação da ‘mecânica Serra’ só fará aprofundar a anemia do investimento público; por conseguinte aprofundará a rosca da recessão em marcha na economia brasileira.
Pior que isso.
Um longo ciclo de aperto fiscal como o preconizado pelo tucano –que coerentemente se dispõe a entregar o pre-sal às petroleiras internacionais-- privará a sociedade dos investimentos necessários ao salto de infraestrutura e de produtividade que devem caracterizar o passo seguinte do crescimento nacional..
Sem salto de produtividade, o que sobra para se agregar competitividade a uma economia?
Sobra forçar a queda real do salário direto e indireto -- via supressão de ganhos de poder de compra no salários mínimos e com a liquidação de direitos trabalhistas.
Essa dimensão sistêmica embutida na ‘mecânica Serra’ atende à agenda antissocial advogada pelos paladinos da contração expansiva. Qual seja, a dilapidação das estacas civilizatórias de contenção da barbárie capitalista que propiciaria o impulso ao florescimento das inversões privadas.
A Europa em carne viva de estagnação, desemprego e pobreza que enreda 122 milhões de cidadãos é a vitrine mais vistosa dessa receita ali praticada desde o colapso de 2008.
São esses os desdobramentos embutidos na convicção conservadora de que ter menos Estado redundará em uma melhor sociedade.
Redundará, na verdade, em um horizonte, em que o empobrecimento passará a ser o requisito da competitividade, o arrocho fiscal uma vacina de classe à reforma tributária que faça o rentista pagar imposto, e a liquidação da soberania, a salvaguarda preventiva a qualquer ameaça de controle de capital, que devolva à sociedade o comando do seu destino.
Cabe advertir, porém: nem Cunha, nem Serra lavram no deserto.
A margem de manobra de que desfrutam deriva em grande parte do flanco – e dos impasses que irradia — aberto pela política econômica equivocada adotada no segundo governo Dilma.
Ao associar recessão, portanto, queda de receita, e juros siderais, ela reforça as grades de um cativeiro fiscal que literalmente empurra a sociedade para um regime de pura servidão à ganância rentista.
A disjuntiva política intrínseca a uma encruzilhada de empobrecimento e paralisia é o golpe ou a repactuação democrática do futuro.
O curso do enredo golpista tem em Cunha e Serra dois personagens ilustrativos e complementares –um na esfera institucional, o outro no arremate macroeconômico do arrocho.
Resta a alternativa de uma repactuação democrática do desenvolvimento.
Para que seja sólida –e inclusive capaz de reverter a trajetória da dívida pública a confortáveis 60% do PIB—requer um protagonista dotado de força e consentimento, capaz de livrar a sociedade da prostração e docorporativismo em que se encontra, para compartilhar metas, salvaguardas, concessões e avanços que ergam as linhas de passagem a um novo ciclo de construção da democracia social brasileira.
Seu nome é frente popular. Sua viabilidade objetiva está dada. Seu peso efetivo nos acontecimentos em curso depende do discernimento político das lideranças e movimentos sociais para escolher entre o sectarismo ou a grandeza histórica.
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