“O Policarpo nunca vai ser nosso”, texto da atual edição de Veja, aumenta rol de dúvidas sobre interação entre publicação e contraventor; com senador Demóstenes como seu braço político, a revista seria sua mão editorial?; na Inglaterra, suspeitas de relações desvirtuadas com a polícia levaram o patrão Rupert Murdoch a se explicar no parlamento; aqui, pode acontecer o mesmo com Roberto Civita, dono da Abril, pelo longo flerte com o bicheiro?
Estão faltando peças no tabuleiro das relações entre a revista Veja, a de maior circulação do Brasil em papel, e a do contraventor preso pela Operação Monte Carlo, da Polícia Federal. Precisamente, cerca de 200 peças, equivalentes ao número de ligações telefônicas grampeadas legalmente pela PF entre o editor-chefe e diretor da sucursal de Brasília da publicação, Policarpo Junior, e Carlinhos Cachoeira. Nelas se poderá verificar o verdadeiro padrão do relacionamento entre o jornalista e sua fonte. Haveria só perguntas e respostas entre eles ou algum jogo de ataques e defesas editoriais, aprimorado ao longo do tempo, no interesse comum de Veja e do contraventor? Ou, ainda, ora do interesse de Veja, ora do interesse do contraventor?
Interrogações deste mesmo tipo, mas sobre outros personagens, com outra nomenclatura, foram feitas na Inglaterra, no ano passado, durante os acontecimentos em torno do escândalo News Corp. O caso resultou no fechamento do centenário tablóide sensacionalista News of the World, cujos jornalistas atuavam em associação direta com a polícia investigativa do país – a Scotland Yard --, para a qual distribuíam dinheiro em troca de informações em primeira mão. O caso começou na redação, apanhou em cheio a editora executiva Rebekah Brooks, mas recaiu mesmo sobre o colo do patrão Rupert Murdoch. Ele se viu obrigado a ir ao parlamento do país pedir desculpas, tentar se explicar e, por fim, anunciar o sepultamento de sua publicação.
Aqui, no caso Veja-Cachoeira, a aliança da revista, por meio de seu editor-chefe, se deu, de maneira ainda obscura, com um contraventor preso sob acusação de liderar um pesado esquema de operação de jogos ilegais e infiltração em diferentes escalões do poder. Na Inglaterra, jornalistas e policiais. Aqui, com bandidos. Há fortes suspeitas de que Cachoeira, pelo método de gravações ilegais com interlocutores de seus próprios auxiliares, tenha até mesmo fabricado provas comprometedoras contra adversários. As ligações perigosas de Cachoeira com o líder da publicação em sua área mais estratégica, a sucursal de Brasília, e as dúvidas sobre uma longa aliança editorial entre eles já demandam, de per si, uma investigação independente. E esta terá, necessariamente, de incluir o dono da publicação, Roberto Civita, presidente do grupo Abril, e não apenas um ou alguns de seus funcionários. É o que lembra, em post deste sábado 31, o jornalista Luís Nassif, em Esqueçam Policarpo: o Chefe é Roberto Civita. “Policarpo realmente não era de Carlinhos Cachoeira. Ele respondia ao comando de Roberto Civita. E, nessa condição, estabeleceu o elo de uma associação criminosa entre Cachoeira e a Veja”, escreve Nassif, que continua: “Não haverá como fugir da imputação de associação criminosa. E nem se tente crucificar Policarpo ou o araponga Jairo ou esse tal de Dadá. O pacto se dá entre chefias – no caso, Roberto Civita, pela Abril, Cachoeira, por seu grupo”. (Leia aqui o artigo completo).
Na edição que chegou às bancas neste sábado, Veja evitou enfrentar o fato de frente. Não há uma linha sequer sobre a informação veiculada durante toda a semana, em diferentes canais, mas especialmente na internet, a respeito do gigantesco volume de grampos nas conversas entre Policarpo e Cachoeira no período de 2008 a 2010. Na semana retrasada, quando o assunto já era de domínio público, a revista não veiculou uma palavra sequer sobre as ligações perigosas entre Cachoeira e o senador Demóstenes Torres (DEM-GO), que resultaram na saída deste da liderança do partido no Senado, em abertura de investigação formal dentro da agremiação e numa solicitação de bastidores para que ele se afaste antes de, inevitavelmente, ser expulso.
O caso que Veja ignorou, na torcida para que não crescesse como cresceu, deriva agora, também, para a revelação de uma série de acertos para ilícitos entre Cachoeira e Demóstenes. Sobrou, na esteira das revelações, até para o até então insuspeito ator e deputado federal Stepan Nercessian (PPS-RJ), que emergiu como beneficiário de um empréstimo de R$ 175 mil feito pelo contraventor. Neste sábado 31, quase simultaneamente à revelação do empréstimo, Nercessian pediu afastamento do PPS e de seu posto na Comissão de Segurança Pública e Crime Organizado da Câmara dos Deputados – sem dúvida um cargo bastante estratégico para o amigo que comanda um poderoso esquema de jogos ilegais.
Mas não apenas. O governador de Goiás, Marconi Perillo, vai ficando cada vez mais chamuscado pelas revelações extraídas das investigações de dois anos da Operação Monte Carlo. A prisão de Cachoeira se deu na elegante residência em Alphaville Ipês, em Goiânia, que pertencera a Marconi e fora vendida por ele a um empresário do setor de ensino do Estado. Este, por sua vez, permitia que Cachoeira ali vivesse. Triangulação de interesses? É uma das questões que está no ar, uma vez que Valter Paulo Santiago, dono da Faculdade Padrão, está entre os beneficiados pelo programa de pagamento a instituições de ensino superior, pelo governo local, de bolsas de estudos. Ou seja, recebedor de recursos do Estado, Santiago comprou uma casa do governador, o titular da autoridade cedente, que, por sua vez, registrou a venda em sua declaração de renda por um valor de aproximadamente um terço do que afirmara – R$ 1,4 milhão em três cheques versus R$ 417 mil declarados.
Por todas estas e outras, o caso Cachoeira-Demóstenes é um dos mais explosivos dos últimos tempos, dada a ampla ramificação de interesses do contraventor e seu apetite por articulações dentro das estruturas de poder. E dentro desse caso há a questão Veja-Cachoeira ou Cachoeira-Veja. Dono de um relacionamento bastante próximo com Policarpo, com que dialogava frequentemente, o contraventor tinha em Demóstenes um braço político e, ao que deixa claro, via em Policarpo sua mão editorial. “Os grandes furos do Policarpo fomos nós que demos, rapaz”, disse, no trecho revelado pela própria Veja, o contraventor a seu auxiliar e ex-araponga da Abin Jairo Martins. “Quantos já foram rapaz. E tudo via Policarpo”, festejou.
Cachoeira e Policarpo são velhos conhecidos. Já em 2004, como resgatou 247, a parceria fonte-jornalista funcionava a pleno. Perseguido por uma CPI aberta na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro para apurar o jogo ilegal e encerrada com a recomendação, por 58 votos a zero, entre os deputados, para sua prisão, Cachoeira teve em Policarpo, então, um cioso interlocutor. Matéria assinada por ele, chamada Sujeira para Todo Lado, repercutiu no então presidente da Câmara Federal, João Paulo Cunha, que ordenou a abertura de uma sindicância, uma vez que, de acordo com Veja, alguns parlamentares eram suspeitos de terem ouvido de auxiliares de Cacheira uma proposta de compra de votos de R$ 4 milhões no total. Importante: a gravação da conversa sobre a discussão da proposta foi feita pelos próprios auxiliares de Cachoeira. Pode-se supor, entre outras hipóteses, que o contraventor resolveu fabricar uma prova, ao enviar emissários com proposta de compra de votos, para levar a CPI ao naufrágio, por desmoralização. Na prática, foi isso o que aconteceu. Cachoeira não foi preso na ocasião, sendo levado pela polícia apenas sete anos depois, em fevereiro deste ano.
Nesse meio tempo, em 2005, Cachoeira foi responsável pela entrega a Policarpo da fita que deu origem ao chamado escândalo do Mensalão, na qual o então diretor dos Correios, Maurício Marinho, recebe um pacote de R$ 3 mil. Essa fita, cujas imagens e diálogos foram veiculados por Veja em primeira mão, foi gravada por auxiliares do próprio Cachoeira. Àquela altura, o senador Demóstenes Torres, que já era o braço político do contraventor, sabia que fora preterido para o cargo de Secretário Nacional de Justiça. Há a suspeita que, em represália, ele teria atuado com Cachoeira para prejudicar o PT, o governo Lula e, mais especialmente, o então chefe do Gabinete Civil José Dirceu, que teria sido o responsável pelo veto ao seu nome. Neste contexto, a propina paga por homens do próprio Cachoeira a Marinho deu a partida para o surgimento do pior fato político possível para os adversários de Demóstenes e de seu grupo, que tem Cachoeira como prócer.
Veja, servindo-se de sua fonte na contravenção, não apenas deu vazão às fitas gravadas pelo pessoal de Cachoeira, como prosseguiu divulgando, nos anos seguintes, todo o material que ele produzia e passava às mãos de Policarpo Junior. É frase dele, repita-se: “Os grandes furos do Policarpo fomos nós que demos, rapaz”. Este material incluiu o ‘furo’ do pedido de dinheiro por parte de Valdomiro Diniz, em fita gravada em 2002, desta feita pelo próprio Cachoeira. A notícia saiu em Veja em 2004, mostrando que a parceria já funcionava bem.
Não é do interesse de Veja, agora, puxar por essa memória. A estratégia, manifestada no curto texto “O Policarpo Nunca Foi Nosso”, na edição desta semana, busca carimbar no editor-chefe a marca do profissional acima de qualquer suspeita. Para tanto, utiliza Carlinhos Cachoeira como avalista: “O Policarpo você conhece muito bem. (...) Ele não faz favor para ninguém e muito menos para você”, disse o contraventor, hoje preso, para seu auxiliar e ex-araponga Jairo Martins, também encarcerado pela Operação Monte Carlo. “Nós temos de ter jornalista na mão, ô Jairo. Nós temos que ter jornalista. O Policarpo nunca vai ser nosso...”. Pelos serviços prestados a Veja, a verdade é que Policarpo Junior poderia ter ganho, nesta semana, uma defesa melhor, de um advogado mais qualificado. No editorial do diretor de redação Eurípedes Alcântara, nenhuma linha a respeito. É como se o diretor da sucursal de Brasília estivesse sozinho em seu relacionamento com Cachoeira, mas há toda uma gigantesca máquina editorial por detrás desse circuito.
No Brasil 247
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