A intervenção dos ministros do STF no debate político brasileiro representa um desvio em relação às funções constitucionais desses juízes.
Em sua entrevista à Folha de São Paulo, o ministro Gilmar Mendes reitera a prática de se posicionar sobre os assuntos correntes da política e procurar pautar o debate sobre o Judiciário. A intervenção dos ministros do STF no debate político tornou-se comum em nosso país desde a transição democrática, mas esse comportamento representa um desvio em relação ao deve espelhar as funções constitucionais de que estão investidos os juízes.
A imparcialidade e a objetividade do julgamento são inseparáveis da reserva e cautela de juízes em relação às narrativas que os agentes adotam ao tomarem posições em seus embates políticos. Esse distanciamento permite que seu juízo sobre os casos venha a ser formulado com base na norma e no direito, preservando sua autonomia possível em relação as suas preferências, inclinações e alianças. Não se trata de restaurar o mito da neutralidade e passividade do Judiciário, mas de lembrar, para além das regras jurídicas e protocolos relativos ao cargo, o ethos que decorre de sua própria instituição como juiz, em que é partícipe autônomo e não legitimado eleitoralmente da produção da norma constitucional nas questões sobre as quais a sociedade se encontra fundamentalmente dividida.
Mas o ministro Mendes – e nesse ponto ele é acompanhado por vários de seus colegas – adota perspectiva distinta. Em nome da preservação de um debate eleitoral centrado em temas construtivos, interfere substantivamente na fala e desequilibra as oportunidades dos protagonistas. Coloca-se como avaliador das mensagens institucionais do governo, equiparando-as à prática de crimes. Sugere insidiosamente a parcialidade de seus colegas de TSE e do STF (no caso do julgamento de embargos na AP n° 470), atribuindo-lhes conluio com o governo.
Responde a discurso do ex-presidente Lula, realizado em plena campanha presidencial, e procura desqualificar seu interlocutor com o uso de termos apropriados à política da República Velha. Justifica suas frases de efeito colocando-as como recurso para entreter a plateia das sessões do TSE, e não como manifestações de suas preferências políticas. Uma coisa é certa: seu engajamento tende a aprofundar a perda da aura respeitabilidade inerente a seu cargo, afetando inevitavelmente a Corte em que atua.
O ministro nos brinda com nova blague ao sugerir o risco de que o STF se torne uma corte bolivariana, uma espécie de tribunal de mero apoio à política governamental. Decerto o caráter contramajoritário atribuído ao STF por analogia à Corte Suprema não se equipara ao de uma câmara de oposição às políticas governamentais, e menos ainda o de que seus integrantes exerçam pinga-fogo nas polêmicas do dia. Pelo contrário, as cortes constitucionais podem ser melhor caracterizadas como coprodutoras da norma constitucional, como uma das instâncias nas quais se dá o equilíbrio dos entes constitucionais, a produção das políticas, a proteção dos direitos individuais e coletivos, a programação e reflexão sobre os objetivos compartilhados da nossa polity.
O risco de o STF tornar-se uma corte domesticada ao governo é mínimo, pelo fato de que sua atuação e composição refletem as forças de nosso sistema político, que as nomeações futuras tenderão a preservar. Primeiro, a fragmentação do sistema partidário e das forças políticas, nos planos federal e estadual. A mídia exerce um áspero controle das ações governamentais, com pauta convergente em grande parte com a da oposição. O STF é a cúpula de um poder institucionalmente insulado e dividido em várias parcelas, que detêm salvaguardas e recursos para a tomada de decisão independente, e contrária ao seu órgão de cúpula. Os profissionais do direito estão organizados em fortes movimentos corporativos com vínculos orgânicos com partidos e lideranças políticas de todas as correntes. Eles compartilham princípios e valores liberais, expressos nas formas constitucionais da República, e que tomam como naturais e necessários, mas adotam orientações distintas em temas sensíveis, do ponto de vista político, social ou moral.
Enfim, ao contrário do que aponta o ministro, o risco não é o de domesticação dos tribunais pelo governo. O problema que se coloca é o uso faccioso das oportunidades de ação proporcionadas pelos instrumentos judiciais para desestabilizar e paralisar o governo. Na falta de partidos ou movimentos unificados que conduzissem historicamente as transformações políticas, a nossa República foi construída sobre múltiplos espaços e mecanismos de caráter consensual, cujo funcionamento depende da construção de convergências políticas. As atribuições ampliadas das instituições judiciais fazem parte desses mecanismos de ajuste, para evitar bloqueios, desvios e paralisia nos processos decisórios. Resta evitar que seus agentes tornem-se produtores de impasses para cuja solução eles foram instituídos.
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