por Conceição Lemes
Na última quinta-feira, durante o debate entre presidenciáveis na Band, José Serra (PSDB), ao questionar Dilma Rousseff (PT), fez acusações ao governo Lula, ao ministro Fernando Haddad, da Educação, e, por tabela, à candidata petista:
O Ministério da Educação [MEC] quis proibir a Apae [Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais] de ensinar, dar o ensino primário, fazer isso, aquilo. Mais que isso. Cortaram todo tipo de convênio, cortaram equipamentos…Os convênios vem sendo encolhidos… Uma crueldade. As Apaes estão sendo perseguidas…Por que o governo neste momento está discriminando as Apaes?
“Serra distorceu as informações”, denuncia o professor Roberto Franklin Leão, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). “Tirou proveito de dúvidas e angústias de pais de crianças com necessidades especiais e da desinformação da população em geral, para reforçar preconceitos e se promover eleitoralmente.”
Até o final de 2006, as Apaes e outras entidades especializadas no atendimento de pessoas com necessidades especiais, como as deficientes auditivas e visuais, ficavam na dependência de convênios. O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), instituído em 1996, originalmente não lhes destinava verbas.
Em 2007, o Fundef deu lugar ao Fundeb — o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação. O Fundeb, desde a sua criação, fez constar no orçamento do MEC, de municípios e estados a previsão de repasses específicos para a educação de crianças especiais.
É lei. Independentemente do inquilino do Palácio do Planalto, tem de ser cumprida. Segundo o MEC, em 2009, as Apaes e outras instituições especializadas receberam via Fundeb R$ 282.271.920,02. Em 2010, R$ 293.241.435,86.
Além disso, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) envia recursos às instituições filantrópicas para merenda, livro e aqueles originários do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). Nos últimos três anos, foram repassados para essas ações R$ 53.641.014,94.
No dia do debate, premonitoriamente, a Apae de Patos de Minas (MG) desmentia Serra. Com a presença de diretores, professores, pais e alunos em festa, apresentou três veículos, incluindo um ônibus com 42 lugares, equipado com elevador, para facilitar o acesso de estudantes cadeirantes. Custaram R$357.232,48 e foram comprados com a verba de convênios com o FNDE.
Então, por que das acusações ?
Desde sexta-feira, o Viomundo ouviu vários educadores. Os fatos são estes:
1) Parte das Apaes diverge da forma como o MEC repassa atualmente as verbas. Esse é um dos motivos das críticas de certos representantes dessas entidades.
2) Também parte das Apaes defende que as crianças especiais só estudem com crianças especiais. Já o MEC propõe que crianças com necessidades especiais estudem junto com as demais em escolas públicas regulares.
3) O MEC nunca proibiu as Apaes — atendem principalmente portadores de síndrome de Down – de ensinar, dar cursos.
4) Nenhum pai é obrigado a colocar a sua criança especial numa escola pública regular. Tampouco está sendo criminalizado se não o fizer, como disse Serra na semana passada.
5) A matrícula e o atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência devem ser preferencialmente na rede regular de ensino. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação, de 1996, atende a esse preceito.
6) A Convenção de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2006, assegura às pessoas com deficiência o acesso a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis.
7) Para o MEC, “o direito à educação inclusiva é uma conquista dos movimentos sociais e dos governos comprometidos com as transformações. O acesso, a participação e a aprendizagem dos alunos público alvo da educação especial no ensino regular estão entre os seus princípios”.
8) É possível, sim, a criança com necessidades especiais estudar com as demais. Nos Estados Unidos e em vários países da Europa, isso já acontece há muitos anos.
Os dois lados se beneficiam. Em 2005, quando essa nova política começou a ser implantada pelo MEC, 87% das crianças especiais estavam inscritas em instituições especializadas e 13%, em escolas regulares. Em 2009, pela primeira vez, inverteu-se a proporção: 57% se matricularam em escolas regulares e 43% nas especializadas.
Para aprofundar esse debate, conversamos mais com Roberto Franklin Leão, presidente da CNTE e professor da rede estadual de ensino de São Paulo.
Viomundo – As Apaes estão sendo mesmo perseguidas, discriminadas, como disse o Serra?
Roberto Franklin Leão – De jeito nenhum. As Apaes e outras entidades que atuam com portadores de necessidades especiais prestaram – e prestam — serviços relevantes à população brasileira, inclusive porque o Estado sempre foi ausente nessa área.
Porém, a partir de 2007, o Estado chamou para si a responsabilidade de atender a essa demanda, não contemplada plenamente pelas entidades da sociedade civil, apesar da boa vontade. A prova são as crianças, adolescentes, jovens e adultos especiais por esse Brasil afora que vivem em situação precária. Quantos ficam “jogados”, “amarrados”, “presas” em casa, por que na cidade onde moram não tem entidade que cuide delas?
O Estado, portanto, começou a atuar onde não agia. E isso é muito bem-vindo, pois vai permitir a universalização do atendimento aos portadores de necessidades especiais. E, aí, é lógico que as entidades vão começar a receber menos, porque o dinheiro que seria destinado a elas vai ser usado no atendimento prestado pelo Estado.
No meu entendimento, esse dinheiro tem de ir para a educação pública. Em hipótese alguma caracteriza perseguição à entidade a, b ou c. Este é o papel do Estado. Garantir educação de qualidade a todas e todos, independentemente da sua condição.
O que o MEC fez foi alterar o processo de repasse de dinheiro às entidades da sociedade civil que prestam serviços nas áreas de crianças com necessidades especiais.
Viomundo – Como era antes?
Roberto Franklin Leão — Além de verbas do Fundef limitadas a crianças de 7 a 14 anos, as Apaes e outras instituições recebiam recursos por meio de convênios com prefeituras, estados, governo federal ou doações. E convênio é convênio. Hoje tem, amanhã não. Tem de ser renovado constantemente, pois tem prazo de validade.
Com o Fundeb, isso mudou. Pela primeira vez na história, o repasse de verbas está previsto em lei para toda e qualquer pessoa com deficiência matriculada em escola pública, filantrópica, confessional ou conveniada. Essas três últimas desde que cadastradas no MEC.
Viomundo – Então as entidades não precisam mais passar o chapéu?
Roberto Franklin Leão – Exatamente, apesar de o investimento ainda ser insuficiente para atender integralmente a demanda, como de resto acontece com toda a Educação. Mas é preciso reconhecer que algo inovador e melhor já começou. Temos de aplaudir. Só que, desde que o início desse debate, parte das Apaes é contra o novo formato de repasse de verbas.
Viomundo – Pelo que apurei, o repasse de verbas pelo MEC obedece ao seguinte critério. Se pela manhã a criança especial estuda numa escola pública, essa escola recebe X. Se à tarde ela oferece também atendimento especializado, recebe dois X. O mesmo acontece se a criança estuda na escola pública e em instituição especializada, como a Apae. O MEC paga à escola pública e à Apae. Ou seja, paga o dobro por essa criança. Agora, se a pessoa freqüentar apenas a instituição especializada, o MEC paga uma só vez. Isso é correto?
Roberto Franklin Leão — Sim. Veja bem. A escola pública está praticando política de inclusão. E a escola especializada atua naquilo que a gente chama de atendimento especializado. Portanto, é justo que ambas recebam por essa criança.
Agora se escola pública cria um espaço para trabalhar também com essa criança numa sala especial, é correto que receba em dobro. Ao dar atendimento adicional, está ajudando essa criança a progredir mais. E, é claro, vai ter mais despesa Afinal, além de atendê-la na sala comum junto com os outros alunos, vai dar o suporte especial que ela precisa, já que não é absolutamente igual aos demais.
Viomundo – E qual a reivindicação de parte das Apae?
Roberto Franklin Leão – Pelo que consta, elas querem receber o mesmo valor repassado às escolas públicas regulares que praticam educação integrada.
Não tem sentido. Se a criança freqüenta apenas a Apae, a entidade só deve receber uma vez. A verba pública tem de ir, prioritariamente, para a escola pública. E o público tem de servir para sustentar o sistema público de ensino. É o que reza a Constituição.
Eu insisto. Essas entidades existem, porque o Estado não atuava. A partir do momento em que o Estado começa a construir a sua rede, é natural que o repasse do dinheiro às entidades beneficentes diminua.
Viomundo – Segundo o MEC, há um aumento progressivo de alunos especiais matriculados nas escolas públicas regulares. O senhor acha que elas estão preparadas para lidar com esse novo desafio?
Roberto Franklin Leão — É um processo lento em que as escolas públicas regulares terão de se adequar aos poucos a essa nova realidade. O que não pode ser feito é o que aconteceu em São Paulo na gestão do ex-governador Mário Covas (PSBB). Em 1999, o Conselho Estadual de Educação deliberou mudanças no atendimento da educação especial. Elas entraram em vigor em 2000.
Na rede estadual de ensino, havia classes especiais para atender a crianças portadoras de déficit visual, auditivo e mental. As salas foram desmontadas e as crianças incluídas nas salas comuns, sem que tivessem qualquer tipo de acompanhamento. Os próprios professores não tiveram o preparo necessário para orientar as crianças.
Viomundo – Todas as salas especiais foram extintas?!
Roberto Franklin Leão — Talvez ainda exista alguma sala que eu desconheça, mas praticamente todas foram extintas sem que houvesse a necessária integração, inclusive entre os professores, para atender as necessidades dessas crianças. Essa integração tem de ser acompanhada, planejada e os técnicos especializados no assunto não podem ser deixados de lado, como aconteceu em São Paulo.
Viomundo – Ou seja, não basta colocar numa sala comum as crianças com necessidades especiais.
Roberto Franklin Leão – Exatamente. As crianças com necessidades especiais têm de ir para a classe comum, mas elas necessitam também do atendimento diferenciado. Aqui, em São Paulo, o governo tucano fez uma integração que, na verdade, acabou não atendendo às necessidades das crianças e causou muita insatisfação nos professores. Não poderiam de jeito algum ter destruído o que já existia na rede, pois tudo aquilo era necessário para que as crianças conseguissem evoluir.
Viomundo – A integração foi na marra?
Roberto Franklin Leão — Foi como se as crianças tivessem ido dormir numa sala especial e acordado numa sala comum. Não foi bom para elas nem para os professores, que ficavam preocupados, pois não conseguiam fazer com que elas acompanhassem, ainda que no ritmo delas, o desenvolvimento desse programa de ensino.
Tanto que em São Paulo, em muitos lugares, os pais resistem. Reclamam muito. E com razão. O governo deixou de dar às crianças o atendimento especializado que elas tinham na própria rede pública estadual.
Viomundo – Essa situação persiste?
Roberto Franklin Leão – Aqui, as crianças continuam, sim, a ser integradas na sala de aula de maneira comum.
Viomundo – Como deveria ser a integração?
Roberto Franklin Leão – Ainda que num período do dia estejam na mesma sala que as demais, as crianças especiais precisam de atendimento especializado, pois isso faz parte do processo de desenvolvimento dela.
É importante ressaltar que o projeto do MEC não exclui o atendimento especializado. Num período do dia, as crianças freqüentam as escolas regulares. No outro, a escola especial. Aquelas com deficiência auditiva aprendem Libras – a Língua Brasileira de Sinais. As com deficiência visual, o código braile. Já as com déficit mental, se necessário, podem receber atendimento especializado nas Apaes ou na própria rede pública de ensino. Portanto, educação mista. Nos casos mais graves, obrigatoriamente só poderão estudar em escolas especializadas.
Viomundo – Quais os benefícios da integração?
Roberto Franklin Leão – Houve um momento da história em que as instituições especializadas eram o que existia de melhor para as crianças com necessidades especiais. Com o tempo se comprovou que se elas tiverem contato com pessoas sem as mesmas necessidades, elas podem se desenvolver melhor. Ao conviverem só com iguais, elas não têm condições de sair daquele mundo.
As crianças especiais se sentem mais integradas, fazendo parte da sociedade em geral. Ao mesmo tempo, as outras crianças, sem qualquer deficiência física ou mental, aprendem desde cedo a aceitar e respeitar o diferente. Desenvolvem ainda a tolerância e a solidariedade. Respeitando a deficiência do outro, aceitamos mais as nossas próprias. Portanto, todos se beneficiam.
Viomundo – E o preconceito e as resistências, como ficam?
Roberto Franklin Leão — Existem, claro. Há pais de alunos sem deficiência que acham que o convívio com os especiais vai ter repercussão negativa na vida de seus filhos. Isso não é verdade. Mas é um preconceito que ainda tem de ser superado na nossa sociedade.
Há pais também que têm vergonha de ter um filho especial e esconde a criança, pois sabe do preconceito que existe na sociedade em relação às pessoas especiais. A melhor maneira de fazer com que as crianças especiais sejam mais felizes é fazer com que elas consigam conviver com as outras pessoas. Mas é fundamental que tenham atendimento extra. Elas não podem ser colocadas simplesmente numa sala de aula comum e largadas lá.
Viomundo – Nessa altura, alguns vão dizer: “Ah, mas as crianças especiais não vão acompanhar o restante da turma…”
Roberto Franklin Leão – E daí? Deixe-as tocar no ritmo delas. Os ganhos sociais e emocionais ganham longe. Por isso, o Estado tem de chamar para si, cada vez mais, a responsabilidade pela educação desses meninos e meninas. É dever do Estado oferecer educação gratuita de boa qualidade a todos e todas, do berçário ao ensino. Isso tem de ser aplaudido.
Viomundo – E como ficam as instituições especializadas da sociedade civil?
Roberto Franklin Leão – Ainda que exista um período de transição, a verba pública tem de ser usada na escola pública, na educação pública, com todo o respeito ao grande trabalho desenvolvido por essas entidades. Mas à medida que o Estado for desenvolvendo a sua rede própria, elas terão de buscar outras formas de se sustentar que não as verbas públicas.
Ainda que tenhamos uma ligação afetiva e de respeito com essas entidades, é fundamental que o Estado assuma, cada vez mais, o papel de grande investidor da educação pública. Apesar do empenho dessas entidades beneméritas, elas não dão conta da demanda, que não é pequena. Tanto que muitas e muitas crianças ficaram sem atendimento nesses anos todos.
É uma educação cara. E só o Estado tem condições efetivas de universalizar o acesso da criança que precisa desse atendimento.
Viomundo – Mas, professor, muitas famílias têm preconceito em relação ao atendimento na rede pública. Algumas se apavoram apenas de pensar nessa possibilidade. Como vencer isso?
Roberto Franklin Leão – É uma cultura de décadas e décadas. Um preconceito que terá de ser vencido aos poucos. Quem tem um filho com necessidades especiais procura cercá-lo de todos os cuidados. Mas a grande preocupação desses pais é o que vai acontecer com o seu filho quando eles não estiverem mais aqui.
Pois bem, o Estado intervindo e dando a essas crianças a possibilidade de terem um projeto de integração mais humanizado, em que elas se sintam mais felizes e se acostumem a conviver mais com as demais, vai lhes ajudar no futuro. Com certeza, viu, pai, viu, mãe?
Nota do Viomundo: Palmas para os pais e mães de crianças especiais que estão dando uma lição de cidadania a José Serra. Aplausos também para as escolas regulares que aceitam crianças especiais. Quanto a você, pai e mãe, não é porque seu filho é diferente e tem dificuldades, que não será querido e feliz. Arregacem as mangas. Aproveite cada momento do dia para ensinar e ele aprender. A boa mãe e o bom pai, além de não se envergonharem de mostrar o filho ao mundo, mostram o mundo ao filho. Pratique inclusão social, cidadania, tolerância e solidariedade.
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