Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista
quarta-feira, 22 de setembro de 2010
Le Figaro: Como Lula transformou o Brasil
Terminei a tradução do artigo sobre Lula publicado ontem com destaque no jornal Le Figaro, o mais importante jornal conservador da França. O original está aqui.
Como Lula transformou o Brasil
Lamia Oualalou, nossa correspondente no Rio de Janeiro
Tradução: Miguel do Rosário, do blog Óleo do Diabo.
No outono próximo, se tudo der certo, Ricardo Mendonça irá rever seus parentes, em Itatuba, pequena cidade do estado da Paraíba, no Nordeste brasileiro. Já tem vários meses que o jovem economiza para pagar a viagem desde o Rio de Janeiro. "Eu não os vejo desde 2003; e mesmo com o telefone, é duro", suspira.
Ricardo tinha 18 anos quando deixou sua cidade, empurrado pelo instinto de sobrevivência e a promessa de abrigo feita por um tio instalado no Rio de Janeiro. "Eu venho de uma família muito pobre. Com meu irmão, trabalhava toda manhã na lavoura, para ajudar meus parentes. Depois do meio-dia, íamos à escola, de bicicleta, a 8 quilômetros de nossa casa", conta. No total, sua família obtinha uma renda mensal de 100 reais (45 euros). "A gente bebia água do rio, e ficava doente com frequência. Ficar, seria condenar-me", lembra-se.
No Rio de Janeiro, o adolescente encontrou um emprego de porteiro. Estimulado por seus professores, ele sonhava entrar na universidade. Para isso, seria necessario desembolsar 600 reais (270 euros) por mês, quantia inacessível. "Eu deixei pra lá, até que me falaram do Prouni. Eu tentei a sorte e recebi uma bolsa. Em três anos, terei diploma de direito!", exclama Ricardo. O programa, lançado em 2005 pelo governo federal, oferece bolsas parciais ou integrais aos estudantes pobres, desde que eles tenham formação escolar.
Para convencer as instituições privadas, que sempre esnobaram este segmento, o Estado lhes ofereceu exonerações fiscais. Em cinco anos, mais de 700 mil estudantes foram beneficiados pelo programa, mudando o aspecto da universidade. A medida criou uma bola de neve: percebendo que estes estudantes se integravam perfeitamente, mais universidades baixaram as mensalidades. Em novembro de 2009, quase 31% dos 5,9 milhões de inscritos na universidade vinham de famílias de baixa renda. A proporção dobrou em relação a 2002.
"Como meus parentes são analfabetos, no começo eles não compreenderam porque eu desejava estudar. Hoje eles choram de orgulho. Tudo isso, graças a Lula. É o primeiro a pensar que, mesmo se nascemos pobres, temos direito a uma chance. Antes dele, tudo estava predeterminado para nós", assevera Ricardo. "Para meus parentes também a vida se transformou. Eles tem direito a crédito de agricultura familiar, instalou-se água potável a cidade, e minha mãe conseguiu a sua aposentadoria", prossegue com ânimo exaltado.
Histórias como as de Ricardo contam-se aos milhões no Brasil. A três meses do fim de seu mandato, é um país transformado o que o presidente Luiz Inacio Lula da Silva entregará a seu sucessor. Quando ele chegou ao Planalto, o palácio presidencial de Brasília, era um país sem grandes esperanças que aceitou dar uma chance ao turbulento barbudo, onipresente na cena eleitoral desde o restabelecimento da democracia em 1985.
Em sua primeira eleição presidencial, em 1989, Lula foi bem colocado. O ex-sindicalista, que dirigiu as grandes greves dos anos 70 contra a ditadura e criou, em 1980, o Partido dos Trabalhadores (PT), prometia uma revolução. A elite e a televisão aterrorizaram a classe média assegurando que, em caso de uma vitória da esquerda, eles deveriam abrigar em suas casas os moradores de rua. Lula foi derrotado.
Em 1994, depois em 1998, foi a ânsia por estabilidade que deu dois mandatos consecutivos ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Seu líder, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, era o rosto por trás do "Plano Real", que criou uma nova moeda e deu fim ao pesadelo da inflação. "Eles conseguiram a estabilização da economia. Mas o PSDB não propôs mais nada aos mais pobres. Ao cabo de alguns anos, não era mais suficiente", analisa Marcus Figueiredo, politólogo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi com alto grau de impopularidade que Cardoso deixou o poder, em 2002. "Lula assumiu sua herança, com uma política monetária e econômica contrária ao que pregava. Mas, paralelamente, ele deu início a uma política social para ajudar os mais pobres, tanto no meio urbano quanto no rural", acrescenta o cientista
O chefe de Estado reagrupou algumas medidas sociais de seu predecessor e lhes deu uma dimensão até então inimaginável. O nome do programa resumia o objetivo final: "Fome Zero". A sua principal iniciativa, o "Bolsa Família", teve início em 2004, com alocação de recursos para as famílias mais pobres, exigindo apenas a presença na escola e acompanhamento médico das crianças. Variando de 22 a 220 reais (10 a 100 euros), segundo a renda e o número de crianças, o programa atinge hoje 12,6 milhões de famílias, o que corresponde a cerca de 50 milhões de brasileiros. O pequeno cartão amarelo permite às famílias melhorar suas refeições e ativou o comércio nas cidades mais pobres, em particular no Nordeste, onde a concentração de beneficiários do programa é mais elevada. As cidades também se beneficiaram do programa "segurança alimentar", que abastece creches e escolas, e disponibiliza alimentos para famílias pobres, assim como os "restaurantes populares", que oferecem refeições completas por um real (0,44 euro).
A origem dos alimentos é outra forma de aumentar a renda nas zonas rurais: para ter direito às subvenções públicas, é necessário comprar junto à agricultura familiar. Os pequenos agricultores recebem crédito para se equipar, beneficiam-se dos programas de irrigação e instalação de cisternas, assim como a chegada de luz elétrica para dez milhões de lares, com o plano "Luz para Todos". Ao decidir aumentar o salário mínimo acima da inflação, todos os anos (aumento de 54% de 2003 a 2010), o governo elevou a renda de 27 milhões de empregados e de 18,5 milhões de aposentados, cujas pensões são indexadas ao salário mínimo, que atinge hoje 520 reais (231 euros).
Pela primeira vez na história, o Brasil assiste hoje a uma redução contínua, e inédita, de suas desigualdades. Em dois mandatos, 24 milhões de brasileiros saíram da miséria, e outros 31 milhões ingressaram na classe média. Geograficamente, a redistribuição é explícita. "Todo o Brasil está em efervescência, mas no Nordeste se encontra um crescimento a taxas chinesas, de 10 a 12%", explica Marcus Figueiredo.
Os ataques ao assistencialismo falharam. "As políticas sociais são responsáveis por um terço da redução das desigualdades, o resto foi gerado pela alta gerada pela renda do trabalho", calcula Marcelo Neri, economista da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro. Para ele, os que atribuem a popularidade do chefe de Estado à sua imagem de "pai dos pobres", não captaram a amplitude das mudanças. "Lula não é o pai de ninguém: ele é a encarnação da ascensão social, a personificação do novo herói brasileiro, que é o trabalhador, com um contrato de trabalho, e direitos", insiste. Em sete anos, mais de 14 milhões de empregos formais foram criados, apesar de uma informalidade ainda alta. "O Brasil mudou de escala, nos anos 90, criavam-se 600 mil empregos por ano, hoje passamos a 1,4 milhão por ano, sob Lula", diz Marcelo Neri.
Ainda aí, o papel do Estado é central. Após ver suas prerrogativas questionadas nos anos 90, através de uma política fiscal rigorosa e privatizações, ele (o Estado) recuperou seu prestígio. As universidades públicas, fragilizadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que trabalhava com a privatização da educação, receberam recursos que lhes permitiram aumentar o número de professores e se expadirem. O segundo mandato de Lula foi dominado pelo "Programa de Aceleração do Crescimento", que investiu 262 bilhões de euros no desenvolvimento de infra-estrutura (portos, estradas, pontes, etc), casas populares, urbanização de favelas e, sobretudo, políticas energéticas.
"Se eu fosse escolher a cena que simboliza a mudança de paradigmas com Lula, seria a decisão de acabar com a aquisição no estrangeiro das plataformas de petróleo de uma empresa pública, a Petrobrás, e fazê-las no Brasil", declara Marcus Figueiredo. "Isso reativou a construção naval, moribunda e, além disso, é uma orientação ideológica de consequências enormes", diz.
Quando a Petrobrás revelou a existência, ao largo das costas brasileiras, de gigantescas reservas de petróleo - a mais importante descoberta em trinta anos nas Américas - Lula pediu a sua maioria parlamentar no Legislativo para acabar com o regime de concessão, mais generoso, segundo ele, com as multinacionais estrangeiras. A Petrobrás tornou-se uma empresa privilegiada, e os lucros obtidos serão revertidos para um Fundo soberano destinado a financiar a educação, a saúde e melhorar as condições de vida dos mais pobres.
Porque se o Brasil mudou muito, e rápido, ainda é um dos países mais desiguais do mundo. Com o boom dos últimos anos, as autoridades e os analistas não se renderam à complacência e a autocelebração. Mesmo se o número de lares com acesso à agua corrente cresceu 30% no curso do último decênio, 12 milhões de famílias ainda estão excluídas, enquanto 56% dos domicílios não tem acesso à rede de esgoto. A mortalidade infantil caiu, mas as condições atuais da saúde publica permanecem deploráveis. A universidade pública levantou a cabeça, mas o Brasil contava ainda com 14 milhões de analfabetos em 2008, e o ensino nas escolas, onde os professores recebem salários miseráveis, é um dos piores da América Latina. Malgrado algumas experiências interessantes na política de segurança, a violência continua a matar no Brasil mais de 40 mil pessoas por ano, uma cifra digna de um país em guerra.
Marcelo Neri é, todavia, otimista: os estudos mostram que, em vez de se refugiarem no consumo, os brasileiros, mesmo os mais pobres, investem antes em educação de seus filhos. "Antes, o sentimento de urgência era tal que cada um não pensava que no seu cotidiano. Hoje, a população está mais preocupada com os problemas coletivos como saúde, educação, infra-estrutura", diz Neri. Lembrando a famosa atribuída o general De Gaulle, segundo a qual o Brasil não seria um país sério, o economista conclui: "De Gaulle teve razão por um longo tempo. Mas as coisas mudaram. Estamos em vias de nos tornar um país sério".
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