Os ouvidos da formiga
Mauro Santayana
Há anos tento recuperar o texto de um dos mais assustadores contos de ciência ficção, que li ainda na adolescência. Ao que me indica a frágil lembrança da narração, o autor era russo. Em certo dia, os astrônomos localizam uma nuvem de gás letal que se aproxima da Terra e que a cobrirá, fatalmente. Certos do fim da vida no planeta, os líderes políticos se reúnem às pressas com os cientistas e, no tempo ainda disponível, tomam providências para registrar tudo o que seria possível guardar para uma civilização que viesse a surgir, em qualquer tempo depois, em nosso planeta. Um complexo sistema é estabelecido para chamar a atenção do futuro ser inteligente, quando, passado o efeito do envenenamento atmosférico, fosse presumível a comunicação com esse desconhecido, descendente de alguma forma de vida preservada durante o grande acidente cósmico.
Um dia, os grandes alto-falantes, espalhados pelo mundo, reproduzem o som estridente das sirenes e, em seguida, em todas as línguas imagináveis, as informações sobre os arquivos da vida humana, com as chaves de sua decodificação. Durante meses, enquanto duram as potentes baterias do sistema, os sons se repetem, sem que haja qualquer reação. Segundo o conto, os únicos seres sobreviventes haviam sido as formigas – e as formigas são surdas.
Nos arquivos subterrâneos, e para sempre, enquanto o sol brilhar e a Terra existir, jazerão, tão indiferentes como as rochas, as gravações da Quinta Sinfonia de Beethoven, com sua intrigante pausa inicial; das Quatro Estações de Vivaldi, de toda a obra de Bach e Telleman, das Sinfonias de Mahler e das surpreendentes composições de Gershwin; as mais belas esculturas; todos os livros do mundo, juntamente com as pinturas, da reprodução dos afrescos da Antiguidade a Miró e Picasso. Também guardados em recipientes de cristal selado, os grandes filmes até então produzidos.
Não estamos ouvindo os avisos da Natureza. Eles estão sendo mais insistentes em nosso século, que se inicia, do que nunca foram. Esses avisos podem ser confirmados pela ciência: o pólo magnético se desloca rapidamente, em conseqüência das tempestades magnéticas se sucedem. Há o risco, já anunciado, de que haja tal subversão no campo magnético terrestre que todos os registros eletrônicos se apagarão em um instante – e para sempre.
O homem ainda não se deu conta de sua grandeza. A inteligência que o assiste é a maior expressão da vida no Cosmos. Fruto do acaso, ou de deliberada intenção superior, o Universo, com seus mistérios e sua imensidão só serve ao homem, porque só o homem tem a consciência de que o Universo existe.
Nos últimos 150 anos causamos mais danos à Natureza do que em todo o curso da vida na Terra. E não adianta esquivar-se da verdade, tão clara como o sol das manhãs de verão: toda essa violência se fez em nome do lucro, em nome do acelerado crescimento do capitalismo, exacerbado a partir de sua aliança com a inteligência tecnológica. Ou paramos para refletir sobre tudo isso, ou, realmente, não merecemos o Universo que recebemos ao nascer e que, mesmo o perdendo, cada um de nós, ao morrer, o legaremos aos que virão de nossa semente e de nossos sonhos. Nós o legaremos com o melhor de nossa essência, na arte, essa sublime cumplicidade com a natureza, no pensamento filosófico, na fé na transcendência, no registro das histórias de amor.
Isso, se conseguirmos encontrar a razão da vida, que perdemos, inebriados pelo mito do progresso sem limites, do hedonismo sem limites, da insânia sem limites. Uma coisa é certa: nosso sistema de vida, conduzido pela razão do capitalismo, é incompatível com a preservação da espécie. Temos que encontrar um novo caminho, em que o homem possa ser feliz e se realizar, enquanto o nosso planeta se mantiver girando, na órbita de uma estrela ainda viva.
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