Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Gramado monta um santuário do gauchismo de espetáculo

Depois não entendem por que somos motivo de gozação no Brasil inteiro
 
Em setembro de 2004 eu escrevi um pequeno artigo que chamei de “A Disneylândia de bombacha”, publicado no portal da Agência Carta Maior (leia aqui).
Neste artigo, eu brincava que se o movimento tradicionalista gaúcho (MTG) “tivesse bala na agulha, ousadia, empreendedorismo, poderia associar-se à Walt Disney Corporation no sentido de negociar o direito de ser objeto da dramaturgia materializada em parques temáticos e embalsamar mitologias e histórias”. O MTG, assim, “poderia montar uma mega Disneylandia de bombachas, que é a aspiração mais legítima do tradicionalismo de espetáculo”.
Pois, ontem, lendo o jornal Zero Hora, noto que esse artigo despretensioso foi uma espécie de vaticínio. Em Gramado, segundo o jornal do bairro Azenha, alguém montou uma Disneylândia mirim com temática baseada no mito do gaúcho. O jornal não identifica os “vivarachos”, responsáveis por esse caça-níqueis para arrancar dinheiro de turista desavisado.
Gramado e Canela viraram a sede de oportunistas que montaram uma usina de tradições inventadas. Eles exploram vários imaginários visando transformá-los em mercadorias para a demanda turística: o Natal cristão, o mundo do chocolate, uma ideia de cultura europeia transplantada, uma estética arquitetônica germano-suíça, uma confusa gastronomia da quantidade e do entulho (vide o chamado café-colonial), e a estética do frio, que nos últimos anos exagerou na dose a ponto de inventar a virtualidade da neve (em combinação com a mídia regional).
Todos esses elementos são - evidentemente - fakes, conscientemente falsificados, um simulacro mal ajambrado de um fantasmático imaginário de classe média calcado em ícones da infância-adolescência dos indivíduos. Mas um elemento se destaca pela autenticidade e uma certa originalidade: o festival de cinema, com altos e baixos na organização das edições anuais. Mas isso é outra história, e merece uma análise própria.
Gramadocanela (a conurbação-grife) se transformou numa linha de montagem de produtos turísticos voltados para iludir um público ingênuo e predisposto ao autoengano.
O mito do gaúcho ainda estava de fora deste cenário de espetáculo. Agora não está mais. Foi inaugurado ontem (17/8) o Parque do Gaúcho, que segundo o jornal ZH, “é um santuário de estancieiros e indígenas”.
A matéria vai mais além na confusão e na mistura de conceitos tomados emprestados da biologia (“miscigenação”), da antropologia (etnias autóctones), da economia regional da Campanha (a unidade produtiva da estância latifundiária, voltada para a economia mercantil de exportação, subordinado ao circuito mercantil inglês do século 19), e da sociologia (o gaúcho, como constructo mítico do homem-síntese do Rio Grande do Sul, outrora um tipo socialmente marginal, hoje, um gentílico aceito quase universalmente).
O jornal garante que o gaúcho resulta da miscigenação do estancieiro com o indígena. Ora, isso é de uma impossibilidade total. Zero Hora quer cruzar biologicamente - vejam só - um sujeito econômico (estancieiro) com um sujeito étnico-autóctone (índio) e garantir que o resultado disso é o constructo ideológico chamado “gaúcho”. Nem o mais fértil dos mentirosos (ou ficcionista) poderia conceber tal sujeito, fruto híbrido de uma “bricolage” improvável - a combinação não entre seres biológicos - mas entre o tipo ideal (Weber) da economia e o tipo ideal da etnia, que lograram parir o tipo ideal ideológico - o gaúcho. Sem esquecer que esse tipo ideal ideológico ainda sofreu uma completa repaginação moral, que o transformou no seu contrário, uma vez que originalmente era tido como um pária social e passou a ser o gentílico ufanista de todo um povo.
Não satisfeita com esse insólita unidade de materiais tão distintos, numa bricolage que não para de pé, o jornal Zero Hora ousa agregar outra dimensão cultural para sustentar a narrativa do nosso improvável “gaúcho”: refiro-me à religião, uma vez que ao festejado Parque do Gaúcho de Gramado está sendo conferido o grau de “santuário”. É isso mesmo, o gaúcho está sendo entronizado em um santuário em Gramado, ou seja, o antigo andarilho guasca (“sem rei, sem lei e sem fé”), sempre vivendo no limite da lei, da ordem, e da moral vigente, hoje ascende à condição do sagrado, do augusto e do divino.
Eu suspeito mesmo que essa gente desconhece o alcance da tolice que acabaram de cometer e que pode colocar o estado do Rio Grande do Sul e sua gente como objeto de deboche e escárnio dos demais "gauchos" do Uruguai e da Argentina, bem como dos demais brasileiros.
Inventar tradições é uma prática cultural admitida no mundo todo, especialmente depois que o turismo virou uma grande indústria que gera emprego e renda para milhões de pessoas em todos os lugares onde é incentivado. Mas como na arte da literatura de ficção, no Direito e na ciência Estatística não se pode violar um atributo intocável, o da verossimilhança. A narrativa do tal “gaúcho” não pode estar divorciada da realidade, é necessário que haja uma probabilidade de verdade na relação entre ideia e imagem.
Ademais essa súbita divinização do “gaúcho”, além de constituir um exagero passível de troça e riso viral, é um fator de exclusão de tudo quanto a cultura sul-rio-grandense tem de rica e variada. O RS tem certamente o mais colorido mosaico étnico-cultural do Brasil, somos imbatíveis neste quesito. Temos uma coleção de contribuições de nacionalidades e etnias europeias, de etnias autóctones, de afrodescendentes (Porto Alegre é a cidade brasileira com o maior número de manifestações ativas das religiões africanas, mais do que Salvador da Bahia.), etc. Por que, então, representar o sul-rio-grandense somente através do unidimensional “gaúcho”? Está certo, a expressão “gaúcho” virou um gentílico (como carioca, por exemplo), mas daí a garantir que esta projeção idealizada se transforme no sagrado (com direito a santuário), vamos convir, é encaminhar requerimento urbi et orbi para que sejamos motivo de raro estranhamento. De zombaria, mesmo.


P.S.: Alô, editores de Zero Hora, a palavra cacimba se escreve assim: cacimba, e não cassimba, como vocês permitiram escrever e publicar, em claro desrespeito ao público leitor. Ou “consumidor”, como vocês dizem nas internas. Ver fac-símile ao lado.




 

 

 

Recebo mensagem do santuário gaucheiro


A resposta está aqui abaixo:


Aguardemos, pois. E puxem um banco.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

comentários sujeitos a moderação.