A pedido da Pública, repórter avaliou como a diplomacia americana usa nossa mídia – e os nossos jornalistas – como fontes para levantar informações que são enviadas a Washington
Boa parte dos 3 mil telegramas da estrutura diplomática dos Estados Unidos no mundo que dizem respeito ao Brasil vazados pelo Wikileaks consiste em resenhas do que foi publicado em jornais e revistas nacionais, chamados no jargão dos diplomatas como “reação da mídia” (“media reaction”).
Há ainda relatos de reuniões com jornalistas, entrevistas concedidas “off the record” (nas quais o repórter compromete-se a não revelar a fonte das informações), conversas casuais que mostram um e bom relacionamento com a mídia. Termos associados à imprensa e menções a grandes veículos noticiosos ocorrem em 1.305 telegramas, 40,8% do total¹.
Entre os jornais, o mais citado como fonte nos telegramas é a Folha de S.Paulo, com 541 menções em 384 mensagens. Comumente qualificado como o “diário de maior tiragem do país”, em algumas ocorrências, o impresso dirigido por Octávio Frias Filho é descrito como o “maior diário esquerdista” ou como “progressista” (“liberal”) no jargão dos telegramas diplomáticos.
O segundo campeão de leitura e atenção por parte dos funcionários da diplomacia é O Estado de S.Paulo, qualificado por diversas vezes como “conservador” e mais frequentemente “de centro-direita”.
Nas buscas pelo nome do jornal, são 480 citações em 317 telegramas.
O Globo (em 89 mensagens), Valor Econômico (em 84), Jornal do Brasil (em 23) e Correio Braziliense (em 11) são citados a respeito de reportagens e artigos pontuais. Outros diários aparecem com bem menos frequência. O Jornal da Tarde, também do Grupo Estado, surge em 2003 como “jornal regional de esquerda”.
Entre as revistas, Veja é a preferida nas leituras dos diplomatas. São 85 referências em 51 telegramas, sem qualquer qualificação além de “semanal”. Em um único episódio, ela é comparada à norte-americana Time. Em outros, como “líder de circulação”. Época é mencionada em nove mensagens (em uma, é classificada como “revista financeira”, em outras como “semanal noticiosa”) e CartaCapital aparece em duas ocasiões, sendo em uma delas, em dezembro de 2004, descrita como “nacionalista de esquerda”.
IstoÉ e IstoÉ Dinheiro são citadas em 16 oportunidades. Em um único episódio, referente à Liga dos Camponeses Pobres de Rondônia, a cobertura da publicação da Editora Três é vista como “geralmente precisa e justa”, embora suas reportagens sejam “mais desequilibradas do que a líder em circulação Veja”.
Colunistas
Poucos colunistas têm prestígio entre os diplomatas como fontes de informação citadas nos telegramas.
O editorialista da Folha Clovis Rossi lidera com 40 menções, restritas a excertos de sua coluna diária. Demétrio Magnoli, “geógrafo” e “sociólogo”, aparece em resenhas de mídia por oito vezes. Miriam Leitão, analista de economia do grupo Globo, é mencionada cinco vezes, como “respeitada”, “altamente influente” e “aclamada”. Dora Kramer aparece por duas vezes, adjetivada como “influente”.
Há também duas menções ao recém-eleito imortal da Academia Brasileira de Letras, Merval Pereira, e uma singela citação a Diogo Mainardi. O primeiro é taxado ora como “proeminente”, ora como “realista” e “menos otimista” do que o restante dos analistas de plantão. O segundo, como “popular colunista”, à época em que escrevia para a Veja.
O âncora Boris Casoy, em 2004 na Rede Record, também recebe o adjetivo de “popular” quando é citado condenando o projeto de Conselho Nacional de Jornalistas, proposto pela Federação Nacional da categoria. Um documento assinado pelo embaixador Danilovich reproduz sua fala na TV quando ele taxou a iniciativa de “abominável” e uma “óbvia tentativa de controlar jornalistas e a imprensa”.
Documentos mostram encontros de membros do corpo diplomático com diversos jornalistas de peso e representantes de grandes grupos midiáticos
A estrutura diplomática dos Estados Unidos mantém-se permanentemente alerta para o comportamento da imprensa. Um dos centros das atenções, segundo mostram documentos vazados pelo WikiLeaks, é a repercussão de questões relacionadas à política interna norte-americana, além de questões de relações bilaterais e temas relacionados a Israel.
Em meio a diversas análises do que sai na imprensa brasileira, há divagações curiosas. Em 23 de outubro de 2009, em meio à discussão de como a mídia se comporta, um telegrama (UNCLAS SECTION 01 OF 08 BRASILIA 001254) assinado pela conselheira diplomática Lisa Kubiske, tudo começa por elogios: “Os jornalistas brasileiros, falando genericamente, são profissionais, equilibrados e buscam objetividade”.
A seguir, ela sustenta que muitos são “imparciais” no tratamento concedido aos Estados Unidos, ainda que não concordem pessoalmente com as políticas norte-americanas. “Alguns articulistas da mídia dominante demonstram viés contra as políticas dos EUA, embora a tendência tenha começado a mudar com a eleição do presidente (Barack) Obama”, avalia.
A análise se aprofunda: “Um pequeno segmento do público brasileiro aceita a noção de que os Estados Unidos tem uma campanha para subjugar o Brasil economicamente, miná-lo culturalmente e ocupar com tropas pelo menos uma parte de seus territórios. Esse tipo de atitude e de crenças influenciam repórteres e comentaristas em questões como o retabelecimento da Quarta Frota da Marinha dos EUA (caracterizada como uma ameaça para o Brasil), supostamente por nefastas intenções em direção à Amazônia e à ‘Amazônia Azul’ (mares onde novas reservas de petróleo foram encontradas) e mais recentemente o anúncio do acesso dos EUA a bases militares colombianas”.
Há alguns telegramas que relatam encontros de membros da imprensa com embaixadores, cônsules e funcionários da diplomacia.
RBS amiga
Em um telegrama de 2005, o então cônsul de São Paulo, Patrick Dennis Duddy, narra uma visita do então embaixador John Danilovich a Porto Alegre. A capital gaúcha contava com um consulado próprio, até 1997, quando passou a ter apenas uma agência consular.
O embaixador teve três dias agitados, recheados de encontros com empresários e políticos.
Um dos pontos mais curiosos do relato diz respeito a uma entrevista concedida por Danilovich aos veículos da RBS. “O embaixador teve um almoço ‘off the record’ com a direção editorial do grupo RBS, o maior grupo regional de comunicação da América Latina”.
Os números da empresa são apresentados no relato, com detalhamentos sobre operações no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, incluindo a afiliação à Rede Globo, as 120 estações de rádio em dez estados e o jornal Zero Hora.
“O embaixador subsequentemente concedeu uma entrevista ‘on the record’ para o Zero Hora e para a rede de rádios.”
O documento ainda frisa, em sequência, as relações política entremeadas ao grupo de comunicação. “Pedro Parente, que era chefe da Casa Civil do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), é vice-presidente executivo da RBS”, aponta Duddy. Imediatamente a seguir, uma “nota” complementa a informação: “Nós temos tradicionamente tido acesso e relações excelentes com o grupo”.
Estadão amigo
Um telegrama de março de 2005, vazado em fevereiro de 2011, relata um encontro entre o embaixador John Danilovich e líderes da comunidade judaica da capital paulista. A audiência — dois meses antes da Cúpula América do Sul-Países Árabes daquele ano, em Brasília — teve a presença de Abraham Goldstein, presidente da B’nai Brith do Brasil, e Henry Sobel, rabino chefe da maior sinagoga paulistana.
O relato da conversa transcorre no sentido de aprofundar laços com comunidade judaica, mas guarda notas sobre a mídia que passaram despercebidas na ocasião do vazamento, em dezembro do ano passado (o documento já foi publicado pelo WikiLeaks).
Goldstein teria dito a Danilovich que possivelmente haveria uma campanha de imprensa para garantir os pontos de vista favoráveis a Israel e à comunidade de judeus no país.
“Goldstein disse que enquanto o editor de O Estado de S.Paulo prometeu cobertura “positiva”, outros jornais de grande circulação são vistos como tento inclinação pró-Palestina e não parecem ser de grande ajuda”, redige o embaixador. Na “campanha” estudada, havia menção a buscar não judeus que pudessem criticar o governo brasileiro no que eles consideravam uma tendência anti sionista, centrada na figura do secretário-geral do Itamaraty Samuel Pinheiro Guimarães.
Encontros com jornalistas
Nos telegramas, além de muita leitura e fichamento de jornais, há relatos de reuniões esporádicas com profissionais de mídia.
Carlos Eduardo Lins da Silva, ex-ombudsman da Folha de S.Paulo, participou de quatro encontros com diplomatas descritos nos telegramas. O primeiro, em abril de 2006, foi um encontro com Anthony Wayne, assistente do Departamento de Estado para assuntos econômicos que participava do Fórum Econômico Mundial América Latina. Durante o evento, sediado na capital paulista, Lins da Silva é apresentado como “ex-jornalista” e “consultor político”. No encontro, ele teria afirmado acreditar na viabilidade de Geraldo Alckmin (PSDB) como candidato da oposição.
O segundo encontro ocorreu em 2008, quando Lins da Silva havia sido reconduzido ao posto de ombudsman da Folha.
O então senador do Nebraska, o republicano Chuck Hagel, teve um almoço em São Paulo com a participação de Celso Lafer, ministro de Relações Exteriores (1995-2002) da gestão Fernando Henrique Cardoso, Rubens Barbosa, embaixador brasileiro em Washington (1999 a 2004), Rubens Ricupero, ex-ministro da Fazenda e ex-embaixador nos EUA e na OMC, e Sérgio Amaral, ex-ministro da Indústria (2001-2002). Mas o único participante sem elos com ministérios nem com o Itamaraty não tem nenhuma declaração citada.
Em novembro de 2008, ainda em seu segundo mandato como ouvidor da Folha, Lins da Silva é qualificado como “ex-editor sênior” do Valor Econômico. A reunião, no caso, foi com o cônsul-geral Thomas White a respeito dos planos de exploração dos campos de petróleo do Pré-Sal. O jornalista avaliava que a crise financeira atrasaria os prazos de extração dos poços do campo de Tupi.
Quando Arturo Valenzuela, secretário assistente para assuntos do hemisfério ocidental, passou pelo Cone Sul em 2010, Lins da Silva aparece novamente em um telegrama diplomático. No mesmo encontro estavam o sociólogo Bolivar Lamounier, Lafer, Barbosa e José Goldemberg, ex-ministro de Ciência e Tecnologia e da Educação na década de 1990.
O ombudsman “destacou o vigor financeiro sem precedentes do PT para executar uma campanha, após oito anos no governo” que, em caso de derrota, produziria uma oposição “muito problemática”.
Lamounier aparece em episódio anterior, ainda em 2007. Ele teria almoçado em 28 de setembro ao lado de Jose Augusto Guilhon de Albuquerque com funcionários da embaixada em São Paulo. Ambos são apresentados como acadêmicos “associados” ao PSDB. O blogueiro do site da revista Exame, da editora Abril, apostava que Lula não tentaria terceiro mandato e que a candidatura apoiada por ele levaria a melhor. Acertou.
E disse ainda que o presidente seguinte teria de buscar apoio do PMDB, em função de seu tamanho e peso. “O PMDB, avisou Lamounier, é sempre o problema, nunca a solução, porque não tem nenhuma identidade política nem ideológica e existe com o único propósito de avançar em interesses pessoais para seus membros.
Waack
Quem também participou de almoços e encontros com funcionários do governo dos Estados Unidos foi o apresentador do Jornal da Globo, William Waack. O primeiro entre os citados foi em 28 de abril de 2008. Uma visita de jornalistas ao almirante Philip Cullom, que passava pelo Brasil para uma série de exercícios conjuntos entre as marinhas dos Estados Undidos, Brasil e Argentina.
De acordo com o relato do então embaixador Clifford Sobel, a visita de “membros da imprensa brasileira” resultou numa “cobertura positiva”. Entre todos os jornalistas, apenas o apresentador do Jornal da Globo é nomeado, por ter “apresentado em duas reportagens para O Globo sobre a visita que reflete a importância da parceria dos EUA com o Brasil”.
Outro encontro deu-se em setembro de 2009, com a presença Sérgio Fausto, à época diretor do Instituto Fernando Henrique Cardoso (iFHC). Nele, Waack trouxe a informação, que posteriormente se revelaria falsa, de que os então governadores de São Paulo, José Serra, e Minas Gerais, Aécio Neves, teriam acertado uma chapa-puro-sangue do PSDB para rivalizar com Dilma Rousseff.
O terceiro encontro foi com o atual embaixador, Thomas Shannon, em fevereiro de 2010. Waak teria dito que em um fórum com empresários, Aécio Neves teria se mostado “o mais carismático”, Ciro Gomes “o mais forte”, Serra “claramente competente” e Dilma “a menos coerente”.
Em agosto de 2005, há menção a um encontro com oito jornalistas e comentaristas de jornais, revistas, TV e internet. Nenhum é mencionado, mas muitas teorias são listadas sobre o que se sucederia às denúncias de corrupção consagradas como o escândalo do “Mensalão”.
Fernando Rodrigues, repórter especial de política da Folha e autor do blog UolPolítica, teve pelo menos duas conversas com o assessor político da embaixada dos Estados Unidos, segundo os documentos. Em ambos, foi procurado para dar a contextualização de questões relativas ao país: o funcionamento do Tribunal de Contas da União e o futuro de Aldo Rebelo (PCdoB-SP) caso perdesse a eleição para presidente da Câmara dos Deputados em 2007.
Anselmo Massad, especial para a Pública
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