Um texto excelente que explica fenômenos como o atual STF, Malafaia, Aécio, classe média, Eduardo Campos, Alckmin e outras escumalhas
Se fosse isso apenas não seria uma novidade. O fascismo tinha de fato em comum com outras ditaduras burguesas vários aspectos: era uma forma de dominação com métodos terroristas, impedia o exercício de direitos, liberdades e garantias básicas dos indivíduos e esmagava movimentos populares e organizações de esquerda. Podemos identificar algo assim na Comuna de Paris, muito tempo antes. Um governo popular foi esmagado com extrema crueldade e 20 mil “comunards” foram executados. No entanto, soaria meio estranho dizer que Thiers era fascista.
Quem pôs o ovo em pé foi Palmiro Togliatti, histórico dirigente do Partido Comunista Italiano. Ele viu que era uma ditadura de direita, mas de novo tipo. Além do terror, buscava o consenso e queria capturar a consciência das massas. O objetivo era transformar a sociedade em um organismo e eliminar conflitos. Isto sim era novidade histórica.
Um novo tipo de dominação naquele momento era necessário porque surgira o poder bolchevique. Até então o socialismo era uma ameaça detida pela só violência. Mas comunistas tomaram o poder na Rússia e se consolidaram no poder. Um desafio novo exigia respostas novas: não bastavam a violência e o terror do Estado, era preciso tornar a sociedade imune a transformações uniformizando-a. Era preciso dominar a consciência de uma parte da sociedade para excluir a outra parte.
Domina-se uma consciência operando com a ideia de verdade. Uma visão de mundo, um interesse de classe, um ponto de vista, a ideia de conservação, todo o ideário reacionário torna-se “verdade”. Particularmente no caso do nazismo isto se deu por uma apropriação perversa do romantismo filosófico. A base do romantismo filosófico era uma ruptura com a ideia usual de verdade. No conceito clássico imaginava-se que a consciência se apropriava de uma verdade como se fosse, digamos, uma máquina fotográfica. No romantismo filosófico o eu cria a verdade. O espírito livre passa a ser senhor absoluto do dever ser. Quando está apenas submetido às leis necessárias da natureza o espírito está morto. Quando faz suas próprias regras o espírito está vivo.
Para Fichte, escrevendo em plena invasão napoleônica, esse eu criador seria o povo alemão. Fichte inspirou o “volkisch”, movimento que grassou na Alemanha no século XIX. “Volkisch” significava mais ou menos poder do povo, espírito do povo, mas com uma conotação étnica. Abarcava o sangue, a tradição, a pátria, o ambiente, a terra e permeando isso tudo a etnia. O filósofo romântico pensava que o povo alemão emanciparia a humanidade. Lançaria “massas rochosas de pensamentos” sobre os quais “eras vindouras construiriam suas moradas”. O espírito alemão era uma “águia cujo poderoso corpo se impele ao alto e paira sobre asas fortes e experientes no céu para poder ascender para perto do sol, de onde ele gosta de observar”. (Discursos à Nação Alemã)
Conhecemos os resultados dessa apropriação do romantismo pelo regime nazista. O sujeito - o povo alemão - cria seu mundo, cria a moral. Tudo que estivesse na perspectiva do povo alemão - entendido como “volkisch” , etnicamente - seria bom e verdadeiro. Tudo que não estivesse seria mau e falso. Ou uma doença para o “organismo”.
O Estado nazista criou uma polícia e um processo penal volkisch. Um historiador do nazismo os descreve assim: “esse tipo de polícia “volkisch”, ou biológica, da polícia foi apresentado ao povo alemão como a base racional para o que a polícia fazia. Himmler informou tranquilamente em março de 1937, que a tradição do Estado mínimo estava morta, assim como a velha ordem liberal na qual, pelo menos em teoria, a polícia era neutra. Enquanto a velha polícia vigiava mas não interferia para cumprir agendas de seu interesse, a nova polícia, disse ele, não estava mais sujeita a quaisquer restrições formais para realizar sua missão, que incluía fazer valer a vontade da liderança e criar e defender o tipo de ordem social que esta desejava. Segundo Hans Frank, era impensável que a polícia ficasse meramente restrita à manutenção da lei e da ordem. Ele disse que esses conceitos costumavam ser considerados neutros e livres de valores, mas na ditadura de Hitler ‘a neutralidade filosófica não existe mais’, isto é, apoiar ou abraçar qualquer outra visão política a não ser o nazismo era um crime. Para a nova polícia, a prioridade era ‘a proteção e o avanço da comunidade do povo’, e contramedidas policiais eram justificadas para deter toda “agitação” oposta ao povo, que precisava ser sufocada”. A polícia podia tomar quaisquer medidas necessárias, incluindo a invasão de lares, ‘porque não existe mais esfera privada, na qual o indivíduo tem permissão para trabalhar sem ser molestado na base da vida da comunidade nacional-socialista. A lei é aquilo que serve ao povo, e ilegal é aquilo que o fere’”.(Robert Gellately, Apoiando Hitler – Consentimento e Coerção na Alemanha Nazista, p. 79/80)
Nesse momento desaparece a herança iluminista do processo. A polícia pode tudo. Basta entender que certa conduta é contrária ao “povo”. Provas e procedimentos são desnecessários porque o processo é outro: um simples juízo a cargo de uma autoridade qualquer.
Sempre que de algum modo o diferente é tratado como inimigo, excluído do povo, desqualificado em sua humanidade, associado a desvalores, mau, falso, injusto, sujo, sempre que alguém procura uniformizar o meio social como um organismo por tal método, estamos diante de uma atitude fascista. A chave é essa: alguns são “o povo” e devem ser protegidos; outros não são o povo, não tem direitos e podem ser excluídos.
O ódio à diferença é o fenômeno social fascista por definição. Há hoje no Brasil problemas com a diferença. Devemos prestar atenção quando a luz amarela acende.
A inculta e selvagem classe média brasileira tem horror à diferença. Não gosta de negro, não suporta homossexual, não quer pobres por perto a não ser para limpar suas privadas. Quando é de direita – quase sempre – tem ódio da esquerda. Não é apenas contra. Não é que discorda. Odeia. A classe média brasileira é a favor da pena de morte, da redução da maioridade penal, da execução sumária de transgressores, repete frases como “bandido bom é bandido morto” e seu ideal de polícia é tal qual o “volkisch” da Alemanha nazista, mas isso, claro, quando o acusado é pobre, negro, puta, gay, etc.
O julgamento da AP 470 (o “mensalão”) teve a ver com a rejeição do diferente. Não se tratou de uma questão meramente partidária. Engana-se quem pensa isso. Pau que bate em Chico bate em Francisco. O PT não é hoje exatamente um partido rebelde, mas a questão era simbólica. O PT está associado no imaginário social à esquerda e muitos dos seus quadros são “outsiders” em relação à elite branca universitária que sempre foi dona do poder e sempre ganhou eleições presidenciais. Colocar seus quadros na prisão no vislumbre de uma edição do Jornal Nacional em que aparecerão algemados será o início do pretendido processo de “higienização” da política. Subliminarmente faz-se a associação de uma concepção não conservadora do mundo ao crime.
O STF distorceu doutrinas jurídicas, desrespeitou a própria jurisprudência, decidiu diversamente do que havia decidido pouquíssimo tempo antes para declarar-se competente (apenas três dos trinta e sete réus teriam foro privilegiado, e nesse caso o processo deveria ter sido remetido a outra instância). Um ministro declarou em sessão, ao vivo para todo o país, que estabelecia a pena sob medida para que não houvesse prescrição. Confessou um ato de vontade à margem da lei para que houvesse a condenação. Nesse momento desapareceu a figura do julgador e surgiu a do inquisidor. Não queria julgar, queria condenar. Uma ministra reconheceu que não havia provas suficientes, mas a “literatura” permitia condenar...
Tudo isso foi possível porque existe em parte da sociedade (com apoio aberto da grande midia) um ambiente favorável à exclusão de outra visão do mundo que não a conservadora. Não um mero combate, o que seria normal da política, mas exclusão. Esse é o ponto. O diferente deve ser excluído e para isso vale o ordenamento jurídico do lobo e do cordeiro, a norma que permite ao lobo jantar o cordeiro e que pode ser qualquer uma.
Colunistas ou comentaristas políticos de direita costumam agora utilizar o mais rasteiro e pobre dos recursos de argumentação, o argumento ad hominem. A estratégia é desqulificar a pessoa, a história familiar, um suposto problema do pai, da mulher, do tio, etc. As pessoas de esquerda são assim, gente sem valor desde a origem familiar. Subrepticiamente afirma-se que o desvalor está na constituição genética ou foi impresso pelo ambiente de onde vieram. A contrario sensu os que os combatem são limpinhos e saudáveis. Às vezes aparece uma descarada eugenia, como a chocante matéria de uma revista semanal que dizia que, segundo uma pesquisa científica, pessoas altas ganham mais dinheiro. O sucesso dependeria de uma condição biológica que em geral se desenvolve nas camadas privilegiadas da sociedade, constituída por descendentes de europeus, mais altos na média do que o brasileiro não branco.
O trágico episódio do Pinheirinho escancarou a violência de que essa gente é capaz de praticar ou de apoiar. Os diferentes nunca têm os mesmos direitos. Mais uma vez, contra eles pode-se tudo. A vida de 6 mil pessoas foi destruída por máquinas passando em cima de suas casas às 5,30 hs de uma manhã de domingo, com o aviso prévio suficiente para tirar o bebê do berço e correr. Não sei o que pode ser mais parecido com o Judiciário alemão sob o nazismo do que isso.
Uma parte desta sociedade pensa que o Brasil deve ser o espelho deles, do mesmo modo como a cultura “volkisch” queria que a Alemanha fosse o seu espelho.
Esta sociedade será dos brancos, dos negros, dos amarelos, dos gays, dos travestis, dos indígenas, dos drogados, dos loucos, dos bêbados, das putas e será a sociedade de toda incusão. Não será a sociedade dos brancos de classe média heterossexuais (supostamente).
É escolher entre democracia ou barbárie.
Texto baseado em apresentação feita no seminário “Resistência Democrática - Diálogos entre Política e Justiça”, promovido pela Escola da Magistratura do Rio de Janeiro de 15 a 17 de maio deste ano.
Márcio Sotelo Felippe, jurista, ex-Procurador Geral do estado de São Paulo (1995-2000), autor do livro Razão Jurídica e Dignidade Humana, publicado pela editora Max Limonad.
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