“Cinquenta (…) anos atrás [1957],
um jovem fotógrafo do Arkansas Democrat (…) foi cobrir o primeiro dia
de aula de um grupo de estudantes negros na maior e melhor escola média
de Little Rock [Arkansas, EUA]. Esse pedaço de história ficou gravado no negativo de número 15.
Eram apenas nove os jovens negros
selecionados pela direção do principal colégio da cidade, o Central
High School, para cumprir a ordem judicial de integração racial no país.
Segundo David Margolick, autor do recém-publicado Elizabeth and Hazel:
Two Women of Little Rock (ainda inédito no Brasil), a peneira foi
cautelosa. A busca se concentrou em colegiais que moravam perto da
escola, tinham rendimento acadêmico ótimo, eram fortes o bastante para
sobreviver à provação, dóceis o bastante para não chamar a atenção e
estoicos o suficiente para não revidar a agressões. Como conjunto,
também deveria ser esquálido, para minimizar a objeção dos 2 mil
estudantes brancos que os afrontariam.
Assim nasceu o grupo que entraria
na história dos direitos civis americanos como ‘Os Nove de Little
Rock’. Eram todos adolescentes bem-comportados, com sólidos laços
familiares, filhos de funcionários públicos e integrantes da ainda
incipiente classe média negra sulista. Entre eles, a reservada Elizabeth
Eckford, de 15 anos.
Os pais dos nove pioneiros foram
instruídos a não acompanharem os filhos naquele 4 de setembro de 1957,
pois as autoridades temiam que a presença de negros adultos inflamasse
ainda mais os ânimos. Por isso, os escolhidos agruparam-se na casa de
uma ativista dos direitos civis e de lá seguiram juntos para o grande
teste de suas vidas. Menos Elizabeth, que não recebera o aviso para se
encontrar com os demais e partiu sozinha rumo a seu destino.
De longe ela avistou a massa de
alunos brancos passando desimpedidos pelo cordão de isolamento montado
pela Guarda Nacional do Arkansas. Ao tentar fazer o mesmo, foi barrada por três soldados que ergueram seus rifles. Elizabeth recuou, procurou
passar pela barreira de soldados em outro lugar da caminhada e a cena se
repetiu. Alguém, de longe, gritou ‘Não a deixem entrar’ e uma pequena
multidão começou a se formar às suas costas. Foi quando Elizabeth se
lembra de ter começado a tremer. Com a majestosa fachada da escola à sua
frente, ela ainda fez uma terceira tentativa de atravessar o bloqueio
em outro ponto do cordão de isolamento.
Como pano de fundo, começou a
ouvir invectivas de ‘Vamos linchá-la!’, ‘Dá o fora, macaca’, ‘Volta pro
teu lugar’, frases proferidas por vozes adultas e jovens. Atordoada,
dirigiu-se a uma senhorinha branca – a mãe lhe ensinara que em caso de
apuro era melhor procurar ajuda entre idosos. A senhorinha, porém, lhe
cuspiu no rosto.
Como não conseguisse chegar à
escola, a adolescente então tomou duas decisões: não correr (temeu cair
se o fizesse) e andar um quarteirão até o ponto de ônibus mais próximo.
Um aglomerado de cidadãos brancos passou a seguir cada passo seu.
Imediatamente às suas costas vinha um trio de adolescentes, alunas do
colégio. Entre elas, Hazel Bryan: “Vai pra casa, negona! Volta para a
África!’.
Segundo o autor do livro
centrado no episódio, foi este o instante em que a câmera de Will Counts
captou a imagem que se tornaria histórica [vide foto no alto da
página]. Hazel, de quinze anos e meio, não carregava qualquer livro
escolar. Apenas uma bolsa e um inexplicável jornal. Ela não planejara
nada para aquela manhã. Vestira-se com o esmero que era sua marca –
roupas e maquiagem ousadas para uma adolescente daquela época – e
arvorou-se de audácia ao ver tantos fotógrafos e soldados da Guarda
Nacional. Nada além disso. O resto pode ser debitado à formação que
recebera em casa – família de origem rural, ideário fundamentalista
cristão, atitude racial aprendida com o pai (…)”
O relato acima foi escrito pela jornalista brasileira Dorrit Harazim, que já trabalhou na Veja, no Jornal do
Brasil e na revista Piauí, que, em sua edição 62, publicou o artigo “Ódio Revisitado”, do qual você acaba de ler um trecho.
Em princípio, pode-se dizer que um artigo sobre ódio “racial” contra negros em um país de maioria branca não nos diz respeito. Contudo, a causa do ódio nunca é o mais importante. O ódio precisa de uma causa, qualquer causa…
Porém, basta que o leitor substitua ódio “racial” por ódio religioso, de classe social, político ou ideológico para ver que o mecanismo é sempre o mesmo. Começa com a formação de turbas incomodadas com portadores de diferença de “raça”, religião, classe social, naturalidade ou nacionalidade, opinião política ou ideologia.
O segundo passo das escaladas de ódio consiste na generalização contra portadores de diferenças como as exemplificadas acima. Todo negro, judeu, cristão, muçulmano, espírita, pobre, rico, nordestino, petista ou comunista passa a ser previamente definido com base em estereótipos.
O terceiro passo começa com a segregação voluntária dessas tribos conflitantes, que se distanciam conforme vão apurando a “razão” para não coexistir com quem não divide crenças, características físicas, estrato social ou posição geográfica.
O quarto passo do crescimento do ódio entre grupos é sua chegada aos meios de comunicação – antes impressos e depois eletrônicos. Provocações surgem entre grupos que controlam os grandes meios e os que não têm mídia – ou que, hoje, têm pequenas mídias graças à internet.
O quarto passo é o transbordamento para o mundo real do ódio virtual que se espalhou pelos meios de comunicação com a ascensão de líderes e figuras-símbolo a encarnar centenas, milhares, muitas vezes milhões ou dezenas de milhões de contrários. Esse ódio passa a se traduzir em trocas públicas de insultos.
O quinto passo começa tímido e, se não for interrompido, pode chegar ao sexto. Insultos e provocações já produzem agressões físicas aqui e ali. Incialmente tidas como fatos isolados, muitas vezes adquirem proporções epidêmicas, como vem ocorrendo há mais de uma década na Venezuela, onde, mais recentemente, dezenas perderam a vida em confrontos entre grupos políticos pró e contra o governo.
Abaixo, um dos exemplos dessa exacerbação do ódio que o Blog colheu no Facebook horas antes de publicar este post.
No Brasil, a escalada do ódio cresce há 500 anos por conta da assimetria de renda em um país consumista ao extremo, no qual, sem dinheiro, o cidadão torna-se um pária, um símbolo de fracasso pessoal premeditado. Mas como tudo que é ruim pode – ou tende a – piorar, eis que o ódio passa a decorrer da mais perigosa das divisões, a divisão político-religiosa-ideológica, origem majoritária das guerras.
O grande problema do brasileiro, neste momento, é assumirmos, cada um, nosso quinhão de responsabilidade por uma escalada do ódio que, para alguns, em lugar de ameaça representa prova de seu poder de contaminação da sociedade, a ser comemorado.
Outro jornalista brasileiro que deixou a revista Veja é Fred Di Giacomo, que hoje toca um site chamado Gluck Project. Di Giacomo, recentemente, escreveu “A história do Ódio no Brasil”. Trecho do texto ilustra a tese deste post.
“ ‘Achamos que somos um bando de
gente pacífica cercados por pessoas violentas’. A frase que bem define o
brasileiro e o ódio no qual estamos imersos é do historiador Leandro
Karnal. A ideia de que nós, nossas famílias ou nossa cidade são um poço
de civilidade em meio a um país bárbaro é comum no Brasil (…)”
Nos ambientes minimamente adequados ao debate político, vá lá que as coisas acabem esquentando. O problema é quando o ódio político ultrapassa qualquer limite aceitável e passa a ser espargido onde é, no mínimo, inaceitável que exista.
Mais de uma dezena de horas antes de compor o texto abaixo, seu autor teve uma experiência pessoal – e assustadora – com o crescimento do ódio político que fatores variados – e mais adiante elencados – produziram no país. O texto a seguir foi publicado por este que escreve em sua página no Facebook.
“Nunca vou parar de me
surpreender com o potencial desolador da ignorância. Minha mulher
participava de uma “comunidade” virtual de mães de meninas com síndrome
de Rett (doença de [minha filha] Victoria) e essas mulheres começaram a
postar sem parar acusações ao PT de ser responsável pela morte de
Eduardo Campos por o partido ter o número 13 e o falecimento ter
ocorrido num dia 13.
Minha mulher protestou contra
esse absurdo e recebeu de volta uma saraivada de insultos. Mas o que é
mais impressionante é que mães de meninas com doença igual à de minha
filha começaram a atacar a menina perguntando se ela também “é petista” e
dizendo que até imaginam que “tipo de mãe” minha mulher deve ser, sendo
“petista”.
A que ponto chegamos? Conseguiram
envenenar este país ao impensável. Essas mesmas mulheres xingavam Dilma
furiosamente e apelando para insultos que são sempre usados contra
mulheres usando a própria condição femina – puta, vaca, vadia,
vagabunda, prostituta, sapatão etc., etc., etc.
Ver mães de crianças especiais
atacando crianças especiais por política, ver mulheres usando o mais vil
recurso do machismo contra mulheres, tudo por causa de política, dá
vontade de chutar tudo pro alto e fugir pro outro lado do mundo, bem
longe dessa loucura que essa direita assassina, que jogou o país em 20
anos de ditadura, trouxe de volta para a nação”
Para não acusar a terceiros, o blogueiro acusa a si mesmo na esperança de que cada um faça o mesmo, caso enxergue o crescimento do ódio no país.
Alguns dirão, com propriedade, que a grande imprensa, ao tomar partido político, levou a situação a esse ponto. Não há dúvida de que é culpada por exacerbar o ódio político no Brasil desde o advento da
República, mas não se constrói uma casa sem tijolos. Se a mídia é construtora, quem são os tijolos dessa
escadaria do ódio que estão edificando?
Em outras palavras, a mídia não poderia edificar essa escalada do ódio no Brasil se não tivesse farta matéria-prima. O mais dramático é que há tanta dessa matéria-prima espalhada por aí que não se sabe mais como recolhê-la em quantidade suficiente para que falte aos entusiasmados construtores do ódio. Nesse aspecto, sugestões serão mais do que bem-vindas.
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