Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

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quinta-feira, 14 de agosto de 2014

A escalada do ódio político no Brasil




“Cinquenta (…) anos atrás [1957], um jovem fotógrafo do Arkansas Democrat (…) foi cobrir o primeiro dia de aula de um grupo de estudantes negros na maior e melhor escola média de Little Rock [Arkansas, EUA]. Esse pedaço de história ficou gravado no negativo de número 15.

Eram apenas nove os jovens negros selecionados pela direção do principal colégio da cidade, o Central High School, para cumprir a ordem judicial de integração racial no país. Segundo David Margolick, autor do recém-publicado Elizabeth and Hazel: Two Women of Little Rock (ainda inédito no Brasil), a peneira foi cautelosa. A busca se concentrou em colegiais que moravam perto da escola, tinham rendimento acadêmico ótimo, eram fortes o bastante para sobreviver à provação, dóceis o bastante para não chamar a atenção e estoicos o suficiente para não revidar a agressões. Como conjunto, também deveria ser esquálido, para minimizar a objeção dos 2 mil estudantes brancos que os afrontariam.

Assim nasceu o grupo que entraria na história dos direitos civis americanos como ‘Os Nove de Little Rock’. Eram todos adolescentes bem-comportados, com sólidos laços familiares, filhos de funcionários públicos e integrantes da ainda incipiente classe média negra sulista. Entre eles, a reservada Elizabeth Eckford, de 15 anos.

Os pais dos nove pioneiros foram instruídos a não acompanharem os filhos naquele 4 de setembro de 1957, pois as autoridades temiam que a presença de negros adultos inflamasse ainda mais os ânimos. Por isso, os escolhidos agruparam-se na casa de uma ativista dos direitos civis e de lá seguiram juntos para o grande teste de suas vidas. Menos Elizabeth, que não recebera o aviso para se encontrar com os demais e partiu sozinha rumo a seu destino.

De longe ela avistou a massa de alunos brancos passando desimpedidos pelo cordão de isolamento montado pela Guarda Nacional do Arkansas. Ao tentar fazer o mesmo, foi barrada por três soldados que ergueram seus rifles. Elizabeth recuou, procurou passar pela barreira de soldados em outro lugar da caminhada e a cena se repetiu. Alguém, de longe, gritou ‘Não a deixem entrar’ e uma pequena multidão começou a se formar às suas costas. Foi quando Elizabeth se lembra de ter começado a tremer. Com a majestosa fachada da escola à sua frente, ela ainda fez uma terceira tentativa de atravessar o bloqueio em outro ponto do cordão de isolamento.

Como pano de fundo, começou a ouvir invectivas de ‘Vamos linchá-la!’, ‘Dá o fora, macaca’, ‘Volta pro teu lugar’, frases proferidas por vozes adultas e jovens. Atordoada, dirigiu-se a uma senhorinha branca – a mãe lhe ensinara que em caso de apuro era melhor procurar ajuda entre idosos. A senhorinha, porém, lhe cuspiu no rosto.

Como não conseguisse chegar à escola, a adolescente então tomou duas decisões: não correr (temeu cair se o fizesse) e andar um quarteirão até o ponto de ônibus mais próximo. Um aglomerado de cidadãos brancos passou a seguir cada passo seu. Imediatamente às suas costas vinha um trio de adolescentes, alunas do colégio. Entre elas, Hazel Bryan: “Vai pra casa, negona! Volta para a África!’.

 Segundo o autor do livro centrado no episódio, foi este o instante em que a câmera de Will Counts captou a imagem que se tornaria histórica [vide foto no alto da página]. Hazel, de quinze anos e meio, não carregava qualquer livro escolar. Apenas uma bolsa e um inexplicável jornal. Ela não planejara nada para aquela manhã. Vestira-se com o esmero que era sua marca – roupas e maquiagem ousadas para uma adolescente daquela época – e arvorou-se de audácia ao ver tantos fotógrafos e soldados da Guarda Nacional. Nada além disso. O resto pode ser debitado à formação que recebera em casa – família de origem rural, ideário fundamentalista cristão, atitude racial aprendida com o pai (…)”

O relato acima foi escrito pela jornalista brasileira Dorrit Harazim, que já trabalhou na Veja, no Jornal do

Brasil e na revista Piauí, que, em sua edição 62, publicou o artigo “Ódio Revisitado”, do qual você acaba de ler um trecho.
Em princípio, pode-se dizer que um artigo sobre ódio “racial” contra negros em um país de maioria branca não nos diz respeito. Contudo, a causa do ódio nunca é o mais importante. O ódio precisa de uma causa, qualquer causa…

Porém, basta que o leitor substitua ódio “racial” por ódio religioso, de classe social, político ou ideológico para ver que o mecanismo é sempre o mesmo. Começa com a formação de turbas incomodadas com portadores de diferença de “raça”, religião, classe social, naturalidade ou nacionalidade, opinião política ou ideologia.

O segundo passo das escaladas de ódio consiste na generalização contra portadores de diferenças como as exemplificadas acima. Todo negro, judeu, cristão, muçulmano, espírita, pobre, rico, nordestino, petista ou comunista passa a ser previamente definido com base em estereótipos.

O terceiro passo começa com a segregação voluntária dessas tribos conflitantes, que se distanciam conforme vão apurando a “razão” para não coexistir com quem não divide crenças, características físicas, estrato social ou posição geográfica.

O quarto passo do crescimento do ódio entre grupos é sua chegada aos meios de comunicação – antes impressos e depois eletrônicos. Provocações surgem entre grupos que controlam os grandes meios e os que não têm mídia – ou que, hoje, têm pequenas mídias graças à internet.

O quarto passo é o transbordamento para o mundo real do ódio virtual que se espalhou pelos meios de comunicação com a ascensão de líderes e figuras-símbolo a encarnar centenas, milhares, muitas vezes milhões ou dezenas de milhões de contrários. Esse ódio passa a se traduzir em trocas públicas de insultos.

O quinto passo começa tímido e, se não for interrompido, pode chegar ao sexto. Insultos e provocações já produzem agressões físicas aqui e ali. Incialmente tidas como fatos isolados, muitas vezes adquirem proporções epidêmicas, como vem ocorrendo há mais de uma década na Venezuela, onde, mais recentemente, dezenas perderam a vida em confrontos entre grupos políticos pró e contra o governo.

Abaixo, um dos exemplos dessa exacerbação do ódio que o Blog colheu no Facebook horas antes de publicar este post.







No Brasil, a escalada do ódio cresce há 500 anos por conta da assimetria de renda em um país consumista ao extremo, no qual, sem dinheiro, o cidadão torna-se um pária, um símbolo de fracasso pessoal premeditado. Mas como tudo que é ruim pode – ou tende a –   piorar, eis que o ódio passa a decorrer da mais perigosa das divisões, a divisão político-religiosa-ideológica, origem majoritária das guerras.

O grande problema do brasileiro, neste momento, é assumirmos, cada um, nosso quinhão de responsabilidade por uma escalada do ódio que, para alguns, em lugar de ameaça representa prova de seu poder de contaminação da sociedade, a ser comemorado.

Outro jornalista brasileiro que deixou a revista Veja é Fred Di Giacomo, que hoje toca um site chamado Gluck Project. Di Giacomo, recentemente, escreveu “A história do Ódio no Brasil”. Trecho do texto ilustra a tese deste post.

‘Achamos que somos um bando de gente pacífica cercados por pessoas violentas’. A frase que bem define o brasileiro e o ódio no qual estamos imersos é do historiador Leandro Karnal. A ideia de que nós, nossas famílias ou nossa cidade são um poço de civilidade em meio a um país bárbaro é comum no Brasil (…)”

Poucos de nós são responsáveis pelo ódio político que tanto cresceu no país, mas boa parte de nossa sociedade é responsável por ter aderido a ele. Vale para o que espalha provocações na internet, vale para o que se deixa contaminar por elas e responde à altura.
Nos ambientes minimamente adequados ao debate político, vá lá que as coisas acabem esquentando. O problema é quando o ódio político ultrapassa qualquer limite aceitável e passa a ser espargido onde é, no mínimo, inaceitável que exista.
Mais de uma dezena de horas antes de compor o texto abaixo, seu autor teve uma experiência pessoal – e assustadora – com o crescimento do ódio político que fatores variados – e mais adiante elencados – produziram no país. O texto a seguir foi publicado por este que escreve em sua página no Facebook.

Nunca vou parar de me surpreender com o potencial desolador da ignorância. Minha mulher participava de uma “comunidade” virtual de mães de meninas com síndrome de Rett (doença de [minha filha] Victoria) e essas mulheres começaram a postar sem parar acusações ao PT de ser responsável pela morte de Eduardo Campos por o partido ter o número 13 e o falecimento ter ocorrido num dia 13.

Minha mulher protestou contra esse absurdo e recebeu de volta uma saraivada de insultos. Mas o que é mais impressionante é que mães de meninas com doença igual à de minha filha começaram a atacar a menina perguntando se ela também “é petista” e dizendo que até imaginam que “tipo de mãe” minha mulher deve ser, sendo “petista”.

A que ponto chegamos? Conseguiram envenenar este país ao impensável. Essas mesmas mulheres xingavam Dilma furiosamente e apelando para insultos que são sempre usados contra mulheres usando a própria condição femina – puta, vaca, vadia, vagabunda, prostituta, sapatão etc., etc., etc.

Ver mães de crianças especiais atacando crianças especiais por política, ver mulheres usando o mais vil recurso do machismo contra mulheres, tudo por causa de política, dá vontade de chutar tudo pro alto e fugir pro outro lado do mundo, bem longe dessa loucura que essa direita assassina, que jogou o país em 20 anos de ditadura, trouxe de volta para a nação

O desabafo (justificável pelo que relata), porém, não deixa de ser uma pitada de combustível na escalada do ódio ao debitar a um grupo ideológico (a direita) o comportamento espantoso de seus personagens. Mesmo sendo verdade, poderia ter feito o desabafo sem aumentar o potencial de conflagração que encerra naturalmente? Reflito que poderia, sim…

Para não acusar a terceiros, o blogueiro acusa a si mesmo na esperança de que cada um faça o mesmo, caso enxergue o crescimento do ódio no país.

Alguns dirão, com propriedade, que a grande imprensa, ao tomar partido político, levou a situação a esse ponto. Não há dúvida de que é culpada por exacerbar o ódio político no Brasil desde o advento da

República, mas não se constrói uma casa sem tijolos. Se a mídia é construtora, quem são os tijolos dessa

escadaria do ódio que estão edificando?

Em outras palavras, a mídia não poderia edificar essa escalada do ódio no Brasil se não tivesse farta matéria-prima. O mais dramático é que há tanta dessa matéria-prima espalhada por aí que não se sabe mais como recolhê-la em quantidade suficiente para que falte aos entusiasmados construtores do ódio. Nesse aspecto, sugestões serão mais do que bem-vindas.

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