Mente vazia, oficina do sistema da mídia golpista

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sábado, 10 de janeiro de 2015

O que se passou em 17 de outubro de 1961

O que se passou em 17 de outubro de 1961


conversações para o fim da guerra e a independência da Argélia, a França conheceu violenta repressão. Nesta data foram assassinados e lançados no rio Sena centenas de manifestantes argelinos. As autoridades nunca reconheceram os factos e tentaram destruir todos os vestígios.
 Por Charlotte Nordmann



1. Contexto
Em 1961 se impôs a necessidade de uma solução negociada para o conflito argelino, e em 20 de maio do mesmo ano as negociações entre o governo francês e o Governo Provisório da República Argelina foram abertas oficialmente. Não havia dúvida de que seria instituído um Estado argelino, as discussões giravam em torno das condições exatas da independência. No entanto, foi a partir do verão de 1961 que aconteceram as mais terríveis cenas de violência que o território metropolitano conheceu durante a Guerra da Argélia. Essa contradição é colocada em evidência pelo exame dos fatos que levaram ao massacre de 17 de outubro de 1961.
franca-11Em 1961 o chefe de polícia de Paris era Maurice Papon, [1] o qual fora nomeado em 1958, durante a IV República, e mantido no cargo pelo presidente Charles de Gaulle durante a V República. Ao ser nomeado, e após violentas manifestações de policiais parisienses, Papon recomendou “eficácia”, a qual ele demonstrara em seu mandato de chefe de polícia de Constantine. Como chefe de polícia e IGAME [2] dos departamentos do Leste da Argélia, de 1956 a 1958, ele instaurou um sistema de repressão no qual a tortura era sistemática e as execuções sumárias frequentes. Enquanto chefe da polícia de Paris, Papon respondeu a uma campanha de atentados na metrópole liderada pela Frente de Libertação Nacional argelina (FLN), organizando intensas blitzes [operações stop e fiscalização de rua] policiais aos “franceses muçulmanos da Argélia”. A violência contra a população norte-africana de Paris se institucionalizava: o chefe de polícia criou a força de polícia auxiliar, constituída de harkis, [3] os quais praticavam a tortura. Papon criou também o Centro de Identificação de Vincennes, onde os norte-africanos “suspeitos” podiam ser presos por uma simples decisão administrativa, sem julgamento. Papon chegou a instaurar, no dia 1º de setembro de 1958, um toque de recolher para os norte-africanos, que foi boicotado pela FLN e pouco a pouco caiu em desuso. Durante as operações policiais, as prisões, as blitzes e o “controle” efetuado pelos harkis, algumas pessoas desapareceram. Numerosas denúncias de tortura e morte foram feitas, mas, apesar do acúmulo de testemunhos, das constatações de maus-tratos pelos médicos e das numerosas desaparições, nenhuma queixa foi investigada. Toda a população norte-africana da região parisiense sofria com blitzes sistemáticas e com a violência dos harkis, que patrulhavam seus bairros, como por exemplo o 18º e o 13º “arrondissements” [4].
A essa violência somava-se, por outro lado, a condição extremamente dura imposta aos trabalhadores norte-africanos na metrópole. Em sua maioria eram solteiros, trazidos em grupos por grandes empresas industriais: a França sofria de falta de mão-de-obra e a população rural da Argélia e do Marrocos constituía uma força de trabalho dócil. Eles viviam em pensões em Paris ou em favelas, como em Nanterre. A superpopulação e o isolamento forçado que enfrentavam se devia à pobreza e à recusa dos proprietários franceses em lhes alugar moradias [casa, apartamento]. Os argelinos “imigrantes” na metrópole eram rigidamente enquadrados pela FLN, o que significava em particular que todos eram obrigados a contribuir — aqueles que se recusavam corriam risco de morte.
2. De agosto de 1961 ao toque de recolher de outubro
Em agosto de 1961, as blitzes policiais e as perseguições se intensificaram, a violência e as detenções arbitrárias pelo fácies [5] se multiplicaram. Essa ampliação da ofensiva policial se produzia ao mesmo tempo em que a FLN havia cessado seus atentados em Paris e no subúrbio algumas semanas antes. Nesse momento, os atentados da OAS [6] se tornavam cada vez mais numerosos, visando às vezes as pensões onde viviam os argelinos. No fim de julho de 1961, as negociações entre o governo francês e o GPRA [7] esbarraram na questão do Saara, pois a França contestava a soberania do futuro Estado argelino sobre esta região. Em agosto de 1961, o presidente Charles de Gaulle estava prestes a ceder sobre essa importante questão para reabrir as negociações. Ele esperava ao mesmo tempo estar em posição de força para negociar. Esse foi o sentido de seu gesto ao demitir, em fins de agosto de 1961, o ministro da Justiça, Edmond Michelet, favorável há muito tempo à negociação com a FLN. Ele cedia assim à pressão de seu primeiro-ministro Michel Debré, que era profundamente partidário da Argélia francesa. Demitir Edmond Michelet significava aceitar o endurecimento da repressão aos “franceses muçulmanos da Argélia”.
No fim de agosto a FLN decidiu retomar sua campanha de atentados na metrópole. Os policiais eram os mais visados, sendo que onze deles foram mortos e outros dezessete ficaram feridos até o início de outubro. A partir de então, três organizações sindicais de policiais formaram um “Comitê permanente de coordenação e de defesa”, e exigiam do governo execuções de condenados à morte e um toque de recolher para os norte-africanos. A partir de setembro, intensas blitzes foram organizadas, no decorrer das quais algumas pessoas acabaram desaparecendo. Foi também a partir de setembro que se começou a ouvir falar de cadáveres de norte-africanos encontrados no rio Sena. Diante da pressão dos policiais, que falavam em fazer justiça com as próprias mãos, Papon respondeu com um discurso sem ambiguidade: no dia 2 de outubro, diante das exclamações de um policial, ele declarou: “Por cada golpe, nós responderemos com dez”; depois assegurou aos policiais que, se atirassem primeiro, eles estariam “cobertos”. Em 5 de outubro ele instaurou um toque de recolher para os “franceses muçulmanos da Argélia” e, apesar do ministro do Interior negar, esse toque de recolher racista institucionalizava a confusão entre “argelino” e criminoso.
3. A manifestação
A FLN decidiu organizar um boicote ao toque de recolher. Uma circular de 7 de outubro colocava fim à campanha de atentados na metrópole e a intenção desse boicote era mudar inteiramente a estratégia e inverter a opinião pública francesa. Enquanto os atentados se inscreviam em uma lógica de clandestinidade e de guerra, o boicote devia tomar a forma de uma manifestação pacífica de massa, às claras. A manifestação deveria acontecer em toda Paris, ao longo das principais vias da cidade. Todos deveriam participar, inclusive as famílias. Os manifestantes receberam instrução de não responder a nenhuma provocação ou violência e foram revistados antes da manifestação pelos membros da FLN, para garantir que não estivessem com nada que pudesse servir de arma. Todos os argelinos da região parisiense deveriam participar da manifestação, sob coerção se necessário: para a Federação da França da FLN, tratava-se não somente de demonstrar sua influência sobre os argelinos na metrópole, mas também de fazer existir aos olhos dos franceses o povo argelino. À institucionalização da arbitrariedade e do racismo, era necessário responder com a reivindicação de uma existência política. Os dirigentes da Federação da França acreditavam que a repressão, que certamente se abateria sobre os manifestantes, evidenciaria a violência do poder e a legitimidade da luta do povo argelino por sua independência.
franca-12Na manhã de terça-feira, dia 17 de outubro, a polícia já sabia que uma manifestação em massa estava sendo organizada, carros de polícia rondavam a cidade, os policiais fecharam as saídas do metrô em Paris, preparados para barrar os manifestantes. Em Paris, na saída dos metrôs Étoile e Opéra, nos corredores da estação Concorde e sobre os Grands Boulevards [as principais avenidas], os manifestantes foram sistematicamente atacados com tacos, cassetetes e bastões, algumas vezes até caírem. Os policiais batiam no rosto e no abdômen dos manifestantes, que não demonstravam resistência ou gestos violentos em nenhum momento. Na avenida Bonne-Nouvelle, na ponte de Neuilly, no Pont-Neuf de Argentueil e em outros pontos, os policiais atiravam contra os manifestantes. Nas pontes às portas de Paris e na ponte Saint-Michel, homens eram atirados no rio Sena. Em plena Paris, e durante várias horas, deu-se uma verdadeira caça ao fácies, à qual a população parisiense assistiu, chegando até mesmo a colaborar. O chefe de polícia Papon acompanhou tudo e foi pessoalmente à Étoile para constatar o “bom desenrolar” das operações. Ele tinha conhecimento também de todas as transmissões de rádio da polícia. Sabia, portanto, que circulavam falsas mensagens de que policiais teriam sido mortos. Ele não as desmentiria.
Mais de dez mil argelinos foram presos. Eles foram detidos no Palais des Sports, no Parque de Exposições, no Estádio de Coubertin e no Centro de Identificação de Vincennes, durante quase quatro dias. Quatro dias durante os quais a violência continuaria. Logo ao chegarem, os manifestantes eram sistematicamente espancados. Nos locais de aprisionamento, assistia-se a execuções e muitos foram os manifestantes que morreram com ferimentos agravados por falta de tratamento. No dia seguinte à manifestação, o balanço oficial era de dois mortos argelinos, no que teria sido uma “troca de tiros” entre a polícia e os manifestantes. Apesar dos esforços de alguns parlamentares, o governo impediu a criação de uma comissão de inquérito. Nenhuma queixa apresentada foi investigada.
Se não é possível determinar exatamente quantos argelinos foram mortos em 17 de outubro de 1961 e nos dias seguintes, nos resta constatar que o número de centenas de mortos, afirmado por J-L. Einaudi em seu livro A batalha de Paris, a partir do estudo de registros de cemitérios, de testemunhas e de documentos internos da FLN, é o mais verossímil. Numerosos arquivos administrativos, que seriam cruciais para o reconhecimento das vítimas, desapareceram. Isso explica por que o relatório Mandelkerm — encomendado pelo governo e tornado público em 1998 — e o livro de J-P. Brunet, ambos baseados nos arquivos existentes da polícia, apresentam um número de mortos bem inferior, por volta de quarenta. De resto, o relatório Mandelkerm retoma em seu cômputo a versão segundo a qual teria havido troca de tiros entre os manifestantes e a polícia.
Notas:
«Aqui afogaram os argelinos»
«Aqui afogaram os argelinos»
[1] Durante o regime fascista instituído no sul da França pelos ocupantes nacional-socialistas, Maurice Papon foi nomeado secretário-geral da Prefeitura da Gironda, superintendendo a administração e a repressão na região que tinha Bordéus como capital, e entre as suas funções contava-se a prisão de resistentes e de judeus. Sob as ordens de Papon, 900 presos políticos e mais de 1500 judeus foram entregues às autoridades do Terceiro Reich. Chegada a Libertação, aquele funcionário do marechal Pétain converteu-se em partidário do general De Gaulle, e não se pense que este percurso foi uma excepção. A libertação da França e a expulsão do ocupante nazi levou à perseguição de várias figuras políticas e de jornalistas de extrema-direita, alguns condenados à morte, mas deixou praticamente incólumes os altos funcionários e administradores. Segundo Robert O. Paxton (La France de Vichy, 1940-1944, Paris: Seuil, 1973, págs. 313-317), dos membros do Tribunal de Contas em serviço em 1942, 98% continuavam activos em 1946. Na Inspecção das Finanças, 97% dos inspectores gerais em funções em 1948 exerciam já o cargo em 1942, e o mesmo sucedia com 75% dos inspectores de segunda classe. A ausência de ruptura revela-se de maneira ainda mais flagrante ao observarmos que nenhum dos inspectores de finanças recrutados pelo regime de Vichy foi exonerado por altura da libertação. O próprio Conselho de Estado, apesar do seu carácter mais directamente político, também não foi atingido por qualquer depuração significativa, e 80% dos presidentes de secção em exercício em 1942 continuavam activos em 1946, sucedendo o mesmo com 76% dos conselheiros de Estado e 70% dos maîtres de requêtes. Um membro do Conselho de Estado, que fora chefe-adjunto do gabinete civil do marechal Pétain, declarou em 1945 que «no Conselho de Estado, dos cento e poucos membros, houve 25 destituídos» (Le Procès du Maréchal Pétain. Compte Rendu Sténographique, 2 vols., Paris: Albin Michel, 1945, pág. 847). Maurice Papon foi um desses altos funcionários que serviram a democracia com o mesmo afinco e a mesma competência com que haviam servido o fascismo. Ele foi secretário-geral da Prefeitura da Polícia de 1951 até 1954, secretário-geral do Protectorado francês de Marrocos em 1954-1955 e prefeito em Constantina, na Argélia, de 1956 até 1958, sendo nomeado prefeito da Polícia de Paris em Março de 1958, o que lhe permitiu colaborar nas manobras políticas organizadas por De Gaulle e na fundação da Quinta República. Papon foi também eleito deputado nas listas gaullistas em 1968, 1973 e 1978, e de 1978 até 1981 desempenhou as funções de ministro do Orçamento nos segundo e terceiro governos de Raymond Barre. Em 1983 foi-lhe movido um processo judiciário, por iniciativa das famílias de alguns dos deportados judeus, mas, devido à intervenção de pessoas altamente colocadas, o processo esteve praticamente paralisado durante quatorze anos, até que em 1998, com 87 anos de idade, Papon foi condenado a dez anos de prisão pela deportação de judeus de Bordéus. Evocando motivos de saúde, o presidente da República determinou a libertação de Papon em 2002, mas o presumido doente faleceu apenas cinco anos depois. (Nota de Passa Palavra)
[2] Inspecteur géneral de l’administration en mission extraordinaire (Inspetor Geral da Administração em Missão Extraordinária). Alto funcionário francês responsável pela coordenação da ação do governo nos departamentos. O título e a função foram substituídos pelo de Préfet de région (Prefeito Regional).
[3] A palavra “harkis” (literalmente “movimento” em árabe) designa na França os soldados supletivos alistados no exército francês entre 1957 e 1962, durante a Guerra da Argélia. Todos os argelinos muçulmanos que defendiam a união da Argélia com a República Francesa também eram identificados dessa forma.
[4] Paris é dividida em 20 arrondissements municipais, que englobam quatro bairros (quartiers) cada.
[5] Fácies é o aspecto ou expressão do rosto. O termo é utilizado na expressão “délit de faciès” para qualificar uma forma de discriminação racista.
[6] Organisation armée secrète (Organização Exército Secreto). Organização paramilitar clandestina francesa, que se opunha à independência da Argélia.
[7] Gouvernement provisoire de la République algérienne (Governo Provisório da República Argelina). Braço político da FLN durante a Guerra da Argélia.
Original em francês: http://17octobre1961.free.fr/pages/Histoire.htm
Tradução: Juliana Mantovani. As notas, com exceção da número 1, são de autoria da tradutora.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Ilan Pappé: As perspectivas de solução para o conflito Israel-Palestina

por Jair de Souza

Em 2010, o brilhante professor e humanista israelense Ilan Pappé deu uma palestra magnífica sobre o significado do sionismo: suas características inerentemente colonialistas e racistas.

Ilan Pappé observou como é enganosa a ideia propalada por certos círculos da “esquerda” europeia de que entre os sionistas israelenses há forças democráticas de esquerda que estariam interessadas em chegar a uma solução justa com os palestinos.

Ilan Pappé deixou patente que não há diferenças significativas no comportamento colonialista e racista tanto da direita como da “esquerda” sionistas. Ambas correntes compartilham igualmente o objetivo e o desejo de livrar-se da presença do povo palestino nativo. A única grande diferença está em que a “esquerda” sabe manipular as palavras muito mais habilmente que seus pares direitistas. Daí que, para os que lutam realmente para o fim do colonialismo naquela região, esta “esquerda” seja até mais perigosa do que a direita aberta e declarada, uma vez que, com seu palavreado ardiloso, ela consegue neutralizar boa parte da intelectualidade europeia, que parece contentar-se tão somente com palavras de efeito, independentemente da realidade sobre o terreno.

Para Pappé, a luta contra o colonialismo e o racismo na Palestina exige que o combate seja feito primeira e abertamente contra a ideologia que o impulsa, sustenta e ampara, ou seja, contra o sionismo. Sem a derrota ideológica do sionismo não há perspectivas de paz e justiça na Palestina.

Como Pappé tratou de várias questões de fundamental importância (em minha opinião) para o desenvolvimento do trabalho de solidariedade com a luta anticolonialista do povo palestino, resolvi traduzir e legendar a memorável palestra de 2010. Dividi-a em quatro partes, que compartilho com vocês, leitores do Viomundo.






segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Pepe Escobar: Fúria, fúria, contra a contrarrevolução


Fúria, fúria, contra a contrarrevolução

1/2/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online
Fúria, fúria, contra a morte da luz (Dylan Thomas)
Islamófobos de todo o mundo calem o bico e ouçam o som do poder do povo. A dicotomia artificial que inventaram para o Oriente Médio – ou a ditadura de vocês ou o jihadismo – jamais passou de truque barato. Repressão política, desemprego em massa e comida cara são mais letais que um exército de homens-bomba. Assim se escreve a história real; um país de 80 milhões – dois milhões dos quais nascidos depois de o ditador de hoje ter chegado ao poder em 1981, e nada menos que o coração do mundo árabe – põe afinal abaixo o Muro do Medo e passa para o lado do autorrespeito.
O neofaraó egípcio Hosni Mubarak ordenou toque de recolher; ninguém arredou pé das ruas. A polícia atacou; os cidadãos organizaram a própria segurança. Chegaram os tanques; a multidão continuou a cantar “de mãos dadas, o exército e o povo são aliados”. Nada de revolução colorida parida em think-tanks, nada de islâmicos em ordem unida; são egípcios médios, carregando a bandeira nacional, “juntos, como indivíduos num grande esforço cooperativo para exigir de volta o país que nos pertence” – nas palavras do romancista egípcio e Prêmio Nobel Ahdaf Soueif.
E então, inevitável como a morte, a contrarrevolução levantou a cabeçorra armada. Jatos bombardeiros made in USA e helicópteros militares atacaram “bravamente” em voos rasantes as multidões na Praça Tahrir [Praça Liberdade] (retrato do governo de Mubarak como exército de ocupação no Egito; e imaginem o ultraje do ocidente, se o ataque acontecesse em Teerã). Comandantes militares falando sem parar pela televisão estatal. Ameaça de que tanques de fabricação norte-americana tomariam as ruas – conduzidos por soldados de batalhões de elite – para o ataque final (embora os próprios soldados dissessem a jornalistas da rede al-Jazeera que em nenhum caso disparariam contra a multidão). Para coroar, a “subversiva” rede al-Jazeera foi repentinamente cortada do ar.
Diga alô ao meu suave torturador…
A Intifada egípcia – dentre outros múltiplos significados – já reduziu a cacos a propaganda inventada no ocidente, de que “árabes são terroristas”. Agora, as mentes afinal descolonizadas, os árabes inspiram o mundo inteiro, ensinam ao ocidente como se faz mudança democrática. E adivinhem só! Ninguém precisou de “choque e horror”, rendições, tortura e trilhões de dólares do Pentágono para que a coisa funcionasse! Não surpreende que Washington, Telavive, Riad, Londres e Paris, todas, nem suspeitaram do que estava a caminho.
Hoje somos todos egípcios. O vírus latino-americano – bye-bye ditaduras e neoliberalismo arrogante, caolho, míope – contaminou o Oriente Médio. Primeiro a Tunísia. Agora o Egito. Depois o Iêmen e possivelmente a Jordânia. Logo a Casa de Saud (não surpreende que culpem os egípcios pelos “tumultos”). Mas o terremoto político do norte da África, na Tunísia, em 2011 também colheu a faísca dos movimentos de massa na Europa em 2010 – Grécia, Itália, França, Reino Unido. Fúria, fúria contra a repressão política, contras as ditaduras, contra a brutalidade da Polícia, contra os preços da comida, contra a inflação, contra empregos miseráveis, contra o desemprego em massa.
Faraó 2011 parece remix de Xá do Irã 1979. Claro, não há aiatolá Ruhollah Khomeini para liderar as massas egípcias, e o ex-chefe da Agência Internacional de Energia Atômica, o egípcio Mohamed ElBaradei, está sendo acusado por alguns, nas ruas, de “assaltar nossa revolução”. Mas é difícil não lembrar que o Xá do Irã está enterrado no Cairo, porque os iranianos não permitiram que fosse enterrado na terra-mãe.
O Faraó reagiu à Intifada nomeando para a vice-presidência seu czar “suave” da inteligência, Omar Suleiman (o primeiro vice-presidente, desde que o Faraó assumiu o poder em 1981), e virtual sucessor. Suleiman é sinistro suave especialista em rendição, no qual a CIA confia e que supervisionou número incontável de sessões de tortura de ditos “terroristas” em território egípcio; senhor, que fala inglês, de sua Guantánamo árabe. Em Washington, o establishment gostou muito.
Mas os imperialistas que anotem bem: a última vez que as ruas egípcias levantaram-se como levantaram-se hoje, foi em 1919, durante a revolução contra os britânicos. Agora, para muçulmanos e cristãos, operários, classe média, massas desempregadas, advogados, juízes, professores e doutores da Universidade al-Azhar, alunos, camponeses, teólogos, jornalistas e blogueiros independentes, ativistas da Irmandade Muçulmana, Associação Nacional para a Mudança, Movimento 16 de abril, para todos esses, os dias de Mubarak de Revolução dos Bichos estão contados.
Cinco movimentos de oposição – inclusive a Fraternidade Muçulmana – autorizaram ElBaradei a negociar a formação de um “governo de salvação nacional” de transição. Aposta-se que o Faraó nada ou quase nada negociará. Para aumentar a complexidade o núcleo da geração de jovens ativistas crê muito mais em “comitês populares” que em ElBaradei.
É verdade que, no que tenha a ver com as próximas eleições em setembro, Mubarak, 82, está morto. O filho, Gamal, 47, idem. Relatos não confirmados dizem que, à moda típica dos filhos de ditadores, o filho já fugiu para Londres, usando seu passaporte britânico, com montanhas de bagagem, e estaria agora escondido na casa londrina da família, em Knightsbridge.
O futuro crucial imediato depende do lado para o qual penderá o exército egípcio. No pé em que estão as coisas, ainda não está totalmente afastado uma alternativa Tiananmen – repressão linha duríssima. Seja como for, o poder de ação do governo é claro; pode acontecer até de o Faraó meter-se naquele avião – como cantam as ruas –, mas o regime, a ditadura militar, tem de ser mantida.
O general Hussein Tantawi, comandante em chefe do exército e ministro da Defesa, amigo que bebe o vinho e come a comida do Pentágono, do qual recebe 1,3 bilhão de dólares anuais a título de “ajuda” – voou de volta ao Cairo. Numa trilha paralela, o Faraó, jogando desesperadamente com os medos do ocidente sobre “estabilidade”, tentou desqualificar a Intifada como grupo de desordeiros e arruaceiros donos de terrenos nas favelas, que querem ver cada vez mais caos e destruição. Um grupo de blogueiros egípcios não tem dúvidas – a estratégia do Faraó é assustar as pessoas e empurrá-las de volta para dentro das casas, implorando por “segurança”.
Issander El Amrani, do blog The Arabist (http://www.arabist.net/), destaca que “é difícil acreditar que Mubarak ainda esteja no poder, mas o núcleo duro do regime está usando meios extremos para salvar sua posição”. Nas ruas, todos suspeitam de um golpe orquestrado por Washington na cúpula do regime – EUA/Israel apostando tudo na fórmula “Mubarak talvez caia/mas sem mudança de regime”, com sauditas, israelenses e a mídia egípcia oficial mexendo todos os pauzinhos para desacreditar a revolução. Para analisar com algum distanciamento: nos EUA houve dois governos de Ronald Reagan, um de George H W Bush, dois de Bill Clinton, dois de George W Bush e um de Barack Obama. No Egito, sempre só houve Mubarak.
A classe média egípcia, empobrecida mas letrada e orgulhosa, e a os trabalhadores, nada querem além de um país regido por leis e com eleições transparentes. Como, então, acreditariam em Suleiman, torturador ligado à CIA, para conduzir a transição? Para nem falar de um Parlamento completamente controlado pelo inacreditavelmente corrupto Partido Nacional Democrático de Mubarak, cuja sede foi incendiada pelos manifestantes.
O passo do dissidente egípcio
No início de 2003, passei dois meses no Cairo e em Alexandria, à espera da invasão de Bush ao Iraque – convivendo quase exclusivamente com o oceano de rejeitados pelo sistema de Mubarak, de universitários formados a imigrantes sudaneses, inclusive representantes rejeitados dos 40% da população que vive com menos de 2 dólares por dia. Desnecessário dizer que todos viam Mubarak como poodle repulsivo de Washington – e todos estavam em choque ante a tragédia do Iraque, que o Egito reverencia historicamente como flanco leste da nação árabe. O regime, para eles, era do tipo que “afoga mendigos no Nilo”.
Foi elucidativo – e terrivelmente doloroso – conhecer em campo as consequências do regime de Mubarak, aplicado  regime pupilo do neoliberalismo aplicado pelos EUA. Consequências inevitáveis, a inflação alta e o enorme desemprego. A classe média urbana praticamente já desaparecera. A classe trabalhadora, sufocada na mão de ferro dos sindicatos. E a classe média rural – que foi base do regime – também em crise, com os jovem obrigados a imigrar para as cidades à procura de empregos (que não encontram). Sobrevivente, só uma pequena classe de comerciantes, corruptos, associados ao Estado (a maioria dos quais hoje já fugiu para Dubai em jatos privados).
Não surpreende pois que não se trate de uma revolução islâmica, como no Irã em 1979. É a economia, estúpido. O Islã hoje no Egito está dividido em duas correntes: salafitas não politizados e a Fraternidade Muçulmana – dizimada por décadas de repressão e tortura e, hoje, sem qualquer programa político explícito, além de oferecer serviços de assistência à população negligenciada pelo Estado.
O fato de a Fraternidade Muçulmana ter-se mantido nas coxias do movimento das ruas explica-se por dois fatores. Se se expusesse demais, Mubarak teria o pretexto perfeito para associar a revolução aos “terroristas”. Além disso, a Fraternidade avalia que, hoje, é apenas um ator entre vários.
Trata-se de movimento popular espontâneo que segue as pegadas do Kefaya (“Basta!”) – movimento popular “amarelo” (escolheu essa cor), de intelectuais e ativistas políticos, cujo slogan, já em 2004 era La lil-tamdid, La lil-tawrith (“Não a outro mandato, não queremos uma república hereditária”) [mais, sobre o movimento, em http://en.wikipedia.org/wiki/Kefaya].
O movimento Kefaya, apesar de ser movimento de elite, sem liderança, não-ideológico, foi a faísca que despertou mais de mil movimentos, dentre os quais “Jornalistas pela Mudança”, “Operários pela Mudança”, “Médicos para a Mudança” ou “Jovens para a Mudança” levaram à atual onda de incontáveis fóruns online em que se reúnem cidadãos urbanos, de classe média e baixa, todos usuários experientes da internet.
Outro desenvolvimento crucial foi a greve, em 2008, dos trabalhadores das indústrias têxteis da cidade de Mahalla al-Kubra no delta do Nilo, onde três operários foram mortos pelos guardas de segurança de Mubarak dia 16 de abril –, e que inspirou a criação do movimento online de mesmo nome (Facebook. Sobre o movimento, ver http://www.wired.com/techbiz/startups/magazine/16-11/ff_facebookegypt ).
O Santo Graal demorou para mobilizar as massas. Semana passada, afinal, conseguiram. Os jovens influenciados pelo movimento Kefaya  preferem comitês populares para guiar os passos futuros de sua revolução, em vez de políticos. O pulso das ruas parece indicar que a maioria dos egípcios não querem que nenhuma ideologia política ou religiosa monopolize o que é movimento líquido, pluralista, múltiplo para reformar radicalmente o país e criar ali um novo modelo para o mundo árabe. Talvez um pouco sedutoramente romântico demais. Mas que tenha vivido 30 anos numa espécie de Revolução dos Bichos precisa dolorosamente de alguma catarse.
Rebelo-me, logo, existo
Para Fawaz Gerges, professor de economia da London School of Economics, tudo isso “ultrapassa em muito o problema Mubarak. A barreira do medo foi removida. É realmente o começo do fim do status quo na Região.” Que é maior que Mubarak, é; é exemplo vigoroso do que seja ativismo político orgânico, de base.
Ora, no discurso de elite do Dr. Zbigniew Brzezinski, guru de política exterior dos EUA, trata-se de seu temido “despertar político global” em ação – a Geração Y em todo o mundo em desenvolvimento, furiosa, irada, ultrajada, emocionalmente em frangalhos, quase toda desempregada, com a dignidade em farrapos, deixando aflorar seu potencial revolucionário e virando o status quo de cabeça para baixo (mesmo depois de o Faraó ter conseguido implantar o maior blecaute da história da Internet).
Assim como o movimento Kefaya foi a fagulha, essa foi também uma revolução do Facebook – que hoje, nas ruas do Cairo, Alexandria e Suez já foi rebatizado e chama-se agora Sawrabook (“o livro da revolução”). Uma rede RASD (“de monitoramento”, em árabe) foi lançada no primeiro dia dos protestos, 4ª-feira passada, configurada como uma espécie de “observatório da revolução”.
É crucialmente importante observar que naquele momento – há menos de uma semana – a rede al-Jazeera ainda não chegara ao Egito e a televisão estatal egípcia exibia, como sempre, velhos filmes em branco e preto. Em apenas três dias, a RASD reuniu em rede cerca de 400 mil usuários, no Egito e no mundo. Quando o regime do Faraó acordou, já era tarde demais – e de nada lhe serviu derrubar a internet.
É esse espírito de solidariedade em ação que invadiu as ruas sob a forma de jovens ativistas operando telefones sem fio, fotografando e filmando ataques e feridos ou montando tendas para atendimento de campanha. Ou moradores da cidade do Cairo, oferecendo as próprias casa para abrigar manifestantes e organizando piquetes de vizinhos para proteger-se da ação de saqueadores e ladrões – muitos dos quais mostrados por blogueiros, quando carregavam equipamentos de identificação dos postos armas retiradas dos postos de polícia de Mubarak.
Por mais alarmadas que estejam as rarefeitas elites globais – basta seguir o labirinto de ambiguidades que liga Washington e as capitais europeias –, Brzezinski, pelo menos, parece suficientemente ligado para entender a deriva geral, quando “as principais potências mundiais, novas e velhas (…) enfrentam uma nova realidade: embora a letalidade do poder bélico seja hoje maior do que nunca, a capacidade de impor controle a massas que já despertaram para a vida política alcança hoje o ponto mais baixo de toda a história.”
A velha ordem está morrendo, mas a nova ainda não nasceu. A Idade da Fúria no arco que vai da África do Norte ao Oriente Médio parece ter começado – mais ainda não se sabe qual será a nova configuração geopolítica. O povo se fará ouvir – ou acabará encurralado e controlado pelas potências que aí estão?
O Egito não se converterá em democracia que funciona porque falta a infraestrutura política. Mas pode recomeçar do começo, com todas as oposições tão desprestigiadas quando o regime. A geração mais jovem – potencializada pela emoção de estar lutando do lado certo da história – terá papel crucial.
Não aceitarão a ilusão de ótica de alguma falsa mudança de regime, só para preservar alguma “estabilidade”. Não aceitarão ser sequestrados por EUA e Europa, apresentados como neofantoches. Querem o choque do novo; governo verdadeiramente soberano, nada de neoliberalismo e uma nova ordem política para o Oriente Médio.
A contrarrevolução será feroz. E atacará muito mais do que alguns bunkers no Cairo.