A Europa se insurge contra as famosas e prepotentes “agências de classificação de riscos”, todas americanas, com a decisão da Moody’s (uma das três grandes) de rebaixar as dívidas de Portugal em quatro pontos, reduzindo-as a uma situação de “lixo”. Essas agências, se pensarmos bem, não têm razão de existir. Elas jamais foram capazes de prever, com prazo prudencial, os riscos dos créditos das grandes instituições financeiras e dos governos nacionais. Não previram as crises recentes do sistema financeiro internacional, nem foram capazes de descobrir as falcatruas das grandes instituições empresariais e financeiras, como as da Enron, dos bancos de investimentos, como o Lehman Brothers e de instituições de larápios, como a de Madoff. Elas só denunciam os erros, depois de consumadas as crises. De nada servem para alertar os investidores e as autoridades governamentais a tempo de que tomem providências acauteladoras. Mas os governos são também responsáveis, ao lhes dar crédito, e também por não fiscalizar o comportamento das instituições financeiras, nem examinar a lisura de sua contabilidade.
A questão retorna ao mais inquietante confronto da civilização ocidental - qual deve ser a diretriz da vida em comum: a economia ou a política? O dinheiro pode controlar e dirigir a ação política, ou a política tem que dirigir e controlar as finanças? O sistema financeiro, no interior dos Estados e no plano internacional, é a mais poderosa das instituições corporativistas. Ninguém é mais solidário com um banqueiro do que outro banqueiro, embora disputem entre eles, e sem escrúpulos, os grandes negócios. Nos últimos trinta anos, o sistema financeiro internacional vem cavalgando os estados nacionais e, assim, governando, sem legitimidade, os povos do mundo. Retornaram, sem qualquer pudor, ao saqueio neocolonialista dos recursos naturais dos povos mais débeis, também mediante as guerras de conquista. Trata-se de nova forma de acumulação selvagem de capital e de destruição do “estado de bem estar social”, cujo embrião podemos encontrar ainda na Inglaterra vitoriana, com as preocupações do conservador Disraeli.
A política, sob a corrupção do dinheiro, e a violência repressiva, desfigura-se e se desnatura, mas costuma reagir, ao recuperar-se em processos revolucionários conhecidos na História. De qualquer forma, para que ocorram as revoluções, é necessário que intervenha a razão. Os sinais dessa reação saneadora podem ser vistos nos atuais movimentos de massa em vários países do mundo, muçulmanos ou cristãos, xintoístas ou animistas. O que lhes estava faltando é a teoria revolucionária, uma tarefa dos intelectuais. Há indícios de que já começam a surgir núcleos de discussão que podem suprir essa dificuldade. Com a orientação da inteligência, os movimentos serão capazes de vencer a repressão.
A crise na Europa coloca também em discussão o problema da autonomia dos estados e da soberania compartilhada dentro da Europa continental, da qual a moeda única é a marca maior. Há poucos dias, o Prêmio Nobel de Economia (1998) o indiano e professor em Harvard, Amartya Sen, publicou instigante artigo sobre o tema. Ele fala da ameaça à democracia que representa a insidiosa prevalência dos interesses financeiros sobre a ação política no continente, e dá como exemplo a excessiva importância atribuída às agências de classificação, que determinam a ação dos bancos centrais e dos governos, a serviço das grandes instituições financeiras internacionais.
Sen afirma que a liberdade dessas agências terá que ser enquadrada pelo poder da legitimidade política, isto é, pelos governos eleitos, mas, por enquanto, esse enquadramento não existe. As agências, remuneradas pelo “imperativo financeiro”, só a ele obedecem.
Ao discutir o problema do euro, que ele considera danoso à necessária soberania dos estados e à sua autonomia de ação econômica, lembrou a proposta da federação européia, surgida no movimento socialista italiano, em 1941, chefiado pelos jovens Altiero Spinelli, Eugenio Colorni e Ernesto Rossi.
É importante voltar a esses pioneiros da idéia de uma Europa Unida, os signatários do Manifesto Ventontene, da Itália, que se encontrava, então sob o domínio do fascismo. O documento, que circulou clandestinamente, fazia reflexão profunda sobre a situação européia de então, sob o avanço do poder dos nazistas. “O homem civilizado – diz o Manifesto – é um produto complicado e frágil. Os mais grandiosos frutos da civilização se devem à férrea disciplina que ela impõe ao ânimo selvagem dos homens. Mas quando os homens se encontram diante de problemas cuja solução é de importância vital e não são capazes de encontrá-la - em razão da resistência oposta e da ausência de instrumentos aptos para resolvê-los de forma pacífica - aquela disciplina pode romper-se e deixar emergirem as forças primitivas, que tendem a resolver a dificuldade com a violenta imposição de sua vontade”. A isso chamamos explosão revolucionária das massas.
Sen – como outros eminentes economistas de hoje – parte da idéia que os déficits públicos, quando financiam o desenvolvimento, tendem a ser absorvidos pelo aumento rápido da receita tributária. Vale a pena transcrever um trecho de seu artigo: “O laço que une o crescimento e as receitas públicas é amplamente observado em numerosos países, da China ao Brasil, passando pelos Estados Unidos e a Índia. E aí ainda há lições a tirar da História. Numerosos países acumularam ao fim da segunda guerra mundial pesadas e preocupantes dívidas públicas, mas um crescimento econômico sustentado permitiu aliviar rapidamente o fardo. Da mesma forma, os déficits colossais que Clinton encontrou, ao assumir o poder, há quase vinte anos, reduziram-se sob sua presidência, em grande parte pelo efeito da rapidez do crescimento”.
Em suma: não é o arrocho salarial, ou a “flexibilidade” das leis do trabalho, nem o desemprego, que promovem a queda dos déficits, mas, sim, o contrário. O que importa é o crescimento da economia, com melhor distribuição de renda e redução das desigualdades. Nisso, a lição brasileira é eloqüente.
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